1948_Estou com um leve resfriado, nada sério, mas ele tem um efeito depressivo, e a febre e a tosse seca sempre comprometeram a minha estabilidade. Além disso, às vezes tusso um pouco de sangue e isso me traz pressentimentos de morte que parecem pura petulância. Ontem à noite, por motivos que compreendo, minha esposa sugeriu que eu a deixe por um tempo, sugestão que não consigo achar razoável. Instigou-se em mim um tipo de orgulho que se pode transformar em algo perverso, como uma longa separação ou um divórcio. Uma longa separação seria perigosa, pois somos os dois pouco comunicativos e não estamos inclinados a perdoar. Ela tem um lado que não é sociável nem afetuoso, e que ela nunca manifestou a mim ou a outros sem que isso resultasse em dor. Ela passava muito tempo sozinha na juventude e esses hábitos solitários às vezes reaparecem. De vez em quando, se sente sufocada por uma total ausência de privacidade. Ela tem todo direito a isso – é algo que identifiquei quando a conheci e a pedi em casamento. Ainda por cima, há o fato de que minha vida recente tem tido todas as características de um fracasso.
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Estou cansado, mas vai passar. Amo o corpo da minha mulher e a inocência dos meus filhos. Nada mais.
1952_Quando a autodestruição brota no coração, parece ser menor do que um grão de areia. É uma dor de cabeça, uma leve indigestão, um dedo inflamado; mas você perde o trem das 8h20 e chega atrasado à reunião sobre a dívida do cartão de crédito. O velho amigo com quem você se encontra para almoçar esgota a sua paciência sem mais nem menos e num esforço para ser agradável você toma três drinques, mas a essa altura o dia já perdeu a forma, o propósito e o significado. Na esperança de lhe devolver algum sentido e beleza, você bebe demais nos coquetéis e fala demais, dá em cima da mulher de alguém e termina fazendo algo idiota e obsceno, e pela manhã você quer estar morto. Mas quando tenta reconstituir o caminho que o conduziu a esse abismo, tudo que você encontra é um grão de areia.
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Prestes a completar 40 anos sem ter realizado nada do que pretendia realizar – sem jamais ter alcançado a criatividade profunda à qual me dediquei todo esse tempo –, me sinto ocupando uma posição menor, débil e obscura, a que cheguei não por destino, mas por culpa minha, como se me tivessem faltado, a certa altura do caminho, o espírito e a coragem necessários para me encaixar com competência nos moldes que iam surgindo. Penso em Leander[1] e em todos os outros. Não é por serem histórias de fracasso; não é isso que assusta. É que esses registros são banais, eles não têm a menor importância; é porque Leander, caminhando no jardim ao entardecer, padecendo de uma paixão violenta, não interessa a ninguém. Não importa. Não importa…
1955_Você encontra na rua um colega de turma ou alguém do gênero e aceita um convite para jantar. Assim que põe o pé no apartamento, repara que algo está errado. Sua anfitriã andou chorando e seu antigo colega parece bêbado. Não a ponto de cambalear, mas demonstra aquela agressividade típica de alguns bêbados. Se você recusa os amendoins, ele fica sarcástico. Antes de chegarem à mesa do jantar, ele já começou a agredir, a difamar e a ridicularizar a esposa, e no meio da sopa ele te diz que ela é uma puta nojenta. Ela dá a impressão de ser uma mulher simples e de temperamento doce. Enquanto ela chora e ele a acusa de indecências improváveis de todo tipo, você pega o chapéu, o casaco e vai embora no meio do jantar. Dez ou quinze anos se passam até que uma noite, saindo do teatro, você é abordado de novo pelo velho colega. Ele está acompanhado da mesma esposa, e analisando com curiosidade o rosto dela você tem a impressão de que ela está feliz. O apartamento deles, por acaso, fica perto do seu, de modo que você divide o táxi com os dois e sobe para beber alguma coisa. Tudo está agradável há uns dez minutos quando o seu velho colega pergunta à esposa por que ela não prepara uns sanduíches; por que ela não levanta a bunda gorda e vai fazer algo que preste. Ela começa a soluçar e vai à cozinha, e quando você pega o chapéu e o casaco ele começa a gritar de longe que ela é uma vadia, uma puta nojenta, uma vagabunda.
1957_No dia seguinte ao nascimento do meu filho, acordo querendo tudo de bom para ele: coragem, amor, virilidade, uma visão saudável de si mesmo e um arranjo viável com Deus. Subirei o monte Chocorua a seu lado. Digo à empregada como ele é lindo, e depois às crianças. Estou eufórico e, como continuo gripado, sinto os olhos úmidos e doloridos. Não vou à igreja, julgando isso desnecessário. Pego o ônibus com Ben e Susie[2] até o hospital. Entre o ponto de ônibus e o portão, passamos por um canto escuro da rua – me refiro a uma escuridão emocional. K. me disse que um assassinato foi cometido ali e creio detectar uma atmosfera de agressão sexual, cheiro de mijo, um gato dormindo numa lata de lixo e uns rabiscos bem sacanas nas paredes, que paro para examinar. No hospital encontro Mary,[3] meu lindo filho e tudo que pretendo fazer por ele. Não me lembro de alguma vez ter amado tanto uma criança. E então voltamos para casa num ônibus lotado e malcheiroso. Tomo um drinque e me sinto bem estranho – é a gripe, acho –, e do alto da minha sacada cobiço a liberdade dos garotões que vão fazer baderna em Ostia a bordo de seus conversíveis, pensando em como um homem agraciado com quase tudo que o mundo tem a oferecer pode continuar sentindo que algo ainda falta. Vamos ao Palatino depois do almoço, e agora é o mundo que me parece um tanto estranho, talvez visto através da placenta da minha gripe. O céu está uma beleza, com uma luz viva e cintilante, mas um vento frio sopra de alguma direção, revirando e agitando as folhas, fazendo um ruído desconfortável que lembra o outono. Vou de um lado a outro no sol, mas não consigo me aquecer, e sinto que tempestades ou desarranjos químicos se alastram nas minhas veias. De volta para cá, ao descer as escadas, por algum motivo me vem à mente a luta que é admitir a existência do mal no mundo e dentro de nós mesmos, a dificuldade que é alcançar o equilíbrio entre nossa expressão interior e aquilo que sabemos ser o correto.
1958_Bebo uísque antes do almoço; vou passear com Federico.[4] Chove de novo, mas não chega a estragar o passeio. O dia está terrível, um clima de doer. Mary parece estar se esforçando para dar fim a essa tensão entre nós e estou disposto a colaborar. Mas na hora de lavar a louça, tudo vai por água abaixo. Não é obrigação minha lavar a louça, minha obrigação é tomar conta do bebê. Acho que seria melhor se eu lavasse a louça e ela tomasse conta do bebê. Então tomo conta do bebê, mas o bebê chora e ela precisa sair da pia, e eu digo: “Precisamos conversar; precisamos conversar. Isso está insuportável. Pensei em te escrever uma carta.” “Me escreva uma carta”, ela diz, rindo, e a situação é exasperante. Não há um lugar onde possamos conversar sem que as crianças escutem. Decido naquela hora, e depois de novo às três da manhã, que irei propor três coisas. 1) Ela precisa admitir que é vítima de uma depressão inconstante e tomar uma atitude em relação a isso. 2) Não a levarei de carro até New Hampshire. Será bom para ela fazer a viagem sozinha e passar um pouco de tempo ao lado do pai. 3) Se ela continuar se queixando da casa e desejando outras casas, é melhor encontrar um lugar barato para alugar e viver sozinha com as crianças. Às 3h30, porém, cai uma pancada de chuva; o vento vira, é necessário cobrir-se com o cobertor e de repente me sinto feliz, bem-disposto e animado. No mesmo instante, talvez, a grande ratazana, o monstro, bota a cabeça na armadilha e seu pescoço é quebrado ao meio. Na luz nova da manhã, todas as minhas convicções se esvaíram como fumaça. Não mencionarei a depressão; vou levá-la de carro até New Hampshire; sairemos à procura de uma casa de campo hoje à tarde.
1959_Ano após ano, leio aqui que estou bebendo demais, e não há dúvida de que isso é progressivo. Os dias desperdiçados só aumentam, sofro crises de remorso cada vez mais intensas e acordo às três da manhã me sentindo um defensor da sobriedade. A bebida, bem como seus apetrechos, ambientes e efeitos me parecem abomináveis. Mesmo assim, todo dia, ao meio-dia, pego a garrafa de uísque. Parece que não consigo beber moderadamente, e também não consigo parar.
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Esse foi o ano em que todo mundo nos Estados Unidos estava preocupado com o homossexualismo. Havia outras preocupações também, mas os outros anseios eram publicados, discutidos e trazidos à tona, enquanto os anseios ligados ao homossexualismo permaneciam no escuro, inconfessos. Será que ele é? Que ele foi? Que eles fizeram? Que eu sou? Que eu poderia ser? Era o que todos pareciam estar pensando. A título de defesa, deu-se uma grande ênfase à virilidade, ao atletismo, à caça, à pesca e ao vestuário conservador, mas a esposa solitária desconfiava de relance do marido que tinha ido ao acampamento de caça, e o próprio marido desconfiava do outro com quem havia dividido uma cama rústica de folhas de pinheiro. Será que ele é? Que ele já? Que ele tinha? Que ele queria? Que alguma vez? Mas o que eu realmente queria dizer é que isso é patético. Um homem pode ter culpa, mas apenas gente absurdamente reprimida se comporta dessa maneira.
1960_Passo a noite com C., e o que pensar disso? Não tenho vergonha do que fiz, acho, mas ao mesmo tempo sinto ou apreendo o peso das restrições sociais, a ameaça de punição. Mas agi somente com base em meus instintos, tentei atenuar discretamente a minha solidão embriagada, o meu inoportuno apetite de carinho sexual. Talvez o incidente tenha algo de pecaminoso, e só tive esse tipo de relação três vezes na minha vida adulta. Conheço minha natureza atormentada e procurei contê-la nos limites da criatividade. Não escolhi estar aqui sozinho, exposto à tentação, mas espero sinceramente que isso não aconteça de novo. Não acredito ter feito nada errado. Não acredito ter prejudicado ninguém que amo. O pior talvez seja ter me colocado numa posição em que serei forçado a mentir.
1961_Levanto às 6h30 para tomar café – de bom humor, acho, mas enquanto faço a barba Mary também levanta, me olha feio, tosse e emite pequenos grunhidos de dor até que eu fale em tom agressivo: “Além de cair morto, tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar?” Não tomo café da manhã porque ele não me é oferecido – olhe só para nós, a essa altura da vida e a essa hora do dia, reencenando as brigas horríveis e amarguradas dos nossos pais, girando com ódio em volta da torradeira e do espremedor de laranja como gladiadores encolhidos e desdentados, exalando veneno, bile, maldade e petulância na cara do outro! “Posso torrar o meu pão?” “Se importa de esperar até que eu termine de torrar o meu?” Minha mãe finalmente tirando seu prato de café da mesa e comendo no guarda-louça, de costas para a mesa, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Meu pai sentado à mesa, perguntando: “Pelo amor de Deus, o que foi que eu fiz para merecer isso?” “Me deixe em paz, apenas me deixe em paz, é tudo que peço”, ela diz. “A única coisa que eu quero”, ele diz, “é um ovo cozido. Será que é pedir demais?” “Bom, então cozinhe o seu próprio ovo”, ela grita; e essa é a voz plena da tragédia, o canto do bode. “Cozinhe o seu próprio ovo, então, mas me deixe em paz.” “Mas diabo, como é que eu vou cozinhar um ovo”, ele berra, “se você não me deixa usar a panela?” “Eu deixaria você usar a panela”, ela grita, “se você não a deixasse imunda depois. Não sei como consegue, mas tudo que você toca fica imundo.” “Eu comprei a panela”, ele ruge, “o sabão, os ovos. Pago a água e a conta do gás, e estou na minha própria casa sem conseguir cozinhar um ovo. Morrendo de fome.” “Tome”, ela diz, “coma o meu. Não consigo mais. Você acabou com o meu apetite. Destruiu o meu dia.” Ela empurra o prato para cima dele e o larga sobre a mesa. “Mas eu não quero o seu prato”, ele diz. “Não gosto de ovos fritos. Detesto ovos fritos. Por que eu deveria comer o seu café da manhã?” “Porque eu não consigo mais comer”, ela grita. “Eu não consigo comer nada nesse ambiente. Coma o meu café da manhã. Coma e faça bom proveito, mas cale a boca e me deixe em paz.” Ele afasta o prato e afunda o rosto entre as mãos. Ela pega o prato e joga os ovos fritos no lixo, soluçando terrivelmente. Ela sobe para o quarto. As crianças, que foram acordadas por esse diálogo calamitoso e heroico, tentam entender por que esse bom dia criado pelo Senhor precisa ser essa calamidade.
1962_Mary maldisposta hoje cedo, mas então penso como é maravilhoso que o casamento possa comportar uma tamanha profusão de equívocos, tempestades, infidelidades, rios de lágrimas e mesmo assim seguir seu rumo, passageiros com alguns arranhões leves, mas nada grave.
[...]
1972_Vinte anos atrás, depois de uma briga particularmente feroz, fiquei parado em pé na garagem, chorando por amor. Não temos garagem aqui, mas tirando isso a situação é a mesma. Não me divorcio porque tenho medo – medo da solidão, do alcoolismo e do suicídio. Esses cômodos, esses jardins e a companhia do meu filho me ajudam a permanecer vivo. Não posso discutir esses assuntos sem incitar um ataque venenoso à minha memória, ao meu intelecto, aos meus órgãos sexuais e à minha conta bancária. Tudo isso se justifica, eu acho, por eu ter trepado com as pessoas erradas, mas sob uma determinada luz – a luz do dia – parece que não tive muita escolha.
***
Quero dormir. Digo isso com uma aparente serenidade. Estou cansado de me preocupar com prisão de ventre, homossexualismo, alcoolismo, e de ficar ruminando como deve ser um bar gay. Será que estão cheios de elfos perfumados, jovens andróginos, beldades ensimesmadas? Jamais saberei. Desejo mulheres e de vez em quando homens, mas não seria melhor explorar minha sexualidade em vez de me chicotear até sangrar? Nunca ficarei em paz comigo mesmo, é claro, mas alguns desses conflitos de fronteira me parecem dispensáveis.
Notas:
[1] Leander Wapshot, personagem do primeiro romance de Cheever, A Crônica dos Wapshot.
[2] Seus dois primeiros filhos.
[3] Esposa de Cheever.
[4] Seu terceiro filho.
(The Journals of John Cheever; tradução de Daniel Galera)
(Ilustração: escultura de Albert Gyorgy)
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