sábado, 9 de fevereiro de 2019

HARPA XXXIV – VISÕES, de Sousândrade







(...) Eu despertava em meu delírio

Ante a realidade! a virgem morta,

Pálida e fria a reconheço, eu rujo!

E de homem ver-me, comecei chorar.

— Quis seu corpo aquecer sobre o meu corpo;

Uni sua boca à minha, a voz lhe dando,

Que o túmulo não guarda. Em verdes folhas

Nua deitei-a, as mãos postas, e as tranças

Escorreram-lhe em torno. Dias, dias

Preso a seus pés levei a contemplá-la!

Grandes e abertos sobre mim ficaram

Seus olhos fixos e vidrados, longos

Como a meditação de uma sentença!



(...)

Eu vi! — seu corpo transparente inchando;

Perderem-se os seus olhos nas suas faces;

Humor fétido escoa-se da carne,

Tão pura e fresca, tão cheirosa inda ontem,

Que ela amou apertar em mim, d'insonte

Frenética de amor, nervosa e trêmula!

Formosa ondulação das castas ancas,

Dos seios virginais, da alva cintura

Bela voluptuosa... disformou-se

Em repugnante, (quem a vira e amara!)

Em nojenta, esverdeada, monstruosa

Onda de podridão! Zumbiam moscas,

Famintos corvos sobre mim se atiram,

Recurvas unhas regaçando e abrindo

Negras asas e o bico, triunfantes

Soltando agouros! Eu a defendia

Da ave e do inseto, que irritados veem-me.



(...)



(...) Eu quis limpá-la

Desses monstros horríveis, que a comiam

Diante mim! porém, tudo era imundícia,

Oh! quantas vezes me lancei sobre ela,

Julgando tudo amores, tudo encantos

Dela emanando em límpidos arroios!

Fujo de nojo... de piedade eu volto...

Depois, como as enchentes pluviais

Escoando, que os troncos já se amostram,

Seus ossos vão ficando descobertos.

Oh! mirrado eu fiquei do sofrimento,

De tanta dor curtir! E tu, ó Deus,

Que tudo acabas, sofrerás também?

Porque tão miseráveis nos fizeste,

Deus d'escárnio? teus filhos nós não somos...

Que sorte de alimento ou de deleite

Encontras na desgraça desumana?



Belo horror da existência — formosura,

Filha da natureza engrandecida

No seu pecado e morte, meteoro

Enganoso da noite, flor vermelha

Em veneno banhada, mulher bela!

— Tudo ali 'stá! — ó mundo! mundo... mundo...



(...)

Embalde interroguei mudo cadáver,

E os ossos amarelos nem respondem!

Mas, aqui a mulher não é perjura:

Só lembrança de amor santo evapora —

A beleza se forma ao pensamento,

À saudade suas véstias se derramam.



(...) 




(Ilustração: Bernard Buffet (1928-1999) au mam, oct 2016)



Nenhum comentário:

Postar um comentário