Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.
Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruídoé mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas,tique-taque incerto.De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.
Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.
(Ilustração: João Ruas)
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