Vi que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio dum festim as porás de parte com enfado,mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar.
Meu amigo:
Escrevo-te de longe, de muito longe, perdido nos confins deste meu bairro onde só muito fraco chega o rumor da grande cidade. De que te hei-de falar? Da vida? Pois seja. Tu vens para ela, para o imenso brouhaha. A vida é a escola do cinismo. Trazes coração? Esmaga-o ao entrar como uma coisa que nos compromete, que nos avilta. Se acaso és bom - tolice - não venhas. Aqui, para triunfar, é preciso ser mau, muito mau. Sê mau, cínico, hipócrita e persistente que vencerás. Serás aclamado, respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma e do Sentir. Ri de tudo, que é preciso que rias. Abafa um protesto com um sorriso, uma agonia com uma gargalhada, um estertor com uma praga.
Sê polido, meu amigo. Encobre a raiva sob o riso, e o riso sob o pesar.
Sê mau, sobretudo. Se a alma compromete estrangula-a, se o riso desmascara sufoca-o, se o choro atraiçoa esfibrina-o às gargalhadas.
Não ames nem creias. Todo o homem que ama é homem perdido, e todo aquele que crê nunca será ninguém. Odeia sempre. Odeia os que sobem e os que pretendem subir, odeia os que subiram e os que um dia subirão. Odeia todos e desconfia. Lembra-te que o Ódio dá mais prazeres do que o amor.
A satisfação de ver agonizar um canalha, quer ele seja um mártir, que ele seja um ladrão, é maior que a de sentir os braços opulentos duma mulher que se entrega. É menos um. Sê pois forte como o diamante e como o ódio.
No amor - gentil comédia - sê pródigo, e sobretudo nunca ames uma só mulher. Se és bom serás ridículo, se é mau serás temido. Sê mau sempre. Este farrapo a que se chama Vida foi, é, e há-de ser sempre assim.
Tudo é egoísmo. Se és bom morrerás como Cristo, se é um tolo morrerás como Judas, se és mau - meu amigo - serás lembrado como Satã.
Vem, mas vem cínico. Triunfarás, terás oiro, amantes, mulheres, o diabo.
Acredita que metade da humanidade nasceu para se rojar pela lama, para que tu, eu, todos os maus, todos os cínicos, a esmagássemos, e lhe cingíssemos fraternalmente as carnes com um chicote. Depois da morte há o Nada. Portanto, meu caro, aqueles que o sabem, o que pensam é em sugar a vida com um furor de agiotas sem entranhas. Isto é como no mar; já Shakespeare dizia que o "mugem vive para ser tragado pelo lúcio".
Ou serás vencido ou vencedor. Se vencido esperam-te todas as humilhações desde o desprezo até a compaixão. Se vencedor todos os triunfos desde o respeito ao Capitólio. Luta sempre, calado, fino, sabido que se não tens jeito para isto será um eunuco eterno, castrado para a Vida, para o Amor, e para o sonho.
A raiva também tem o seu gozo, o Ódio também tem o seu amor. E o amor do Ódio é maior porque é mais forte.
Não poderás gozar e serás mais desprezado do que uma serapilheira que o uso condenou.
A carne é matéria como a rocha, a rocha é matéria como a flor. Da mulher honesta à prostituta não há diferença, a distância duma à outra é nula.
Não beijam ambas?! Uma por prazer, outra por precisão. Pois, meu caro, eu prefiro a prostituta sempre.
Acredite que todos se vendem, homens e mulheres, palhaços e imperadores, cristos e mendigos: a questão é de preço e o preço sufoca todas as consciências, todas as revoltas.
Acredita que falta quem compre toda a gente que se quer vender.
A mulher mais honesta capitula, e aquilo a que tu chamas acaso, chamo eu persistência, e persistência gasta a vida como a água gasta a rocha.
Tu és filho duma prostituta, pois que tua mãe só foi de teu pai e teu pai foi o primeiro a quem ela se entregou, que depois o egoísmo do seu amor fez conservar junto de si...
O seu corpo tinha gozos inusitados, que ele demandou primeiro. E se teu pai não fosse dela, seria o primeiro que lhe agradasse, o primeiro que a sua carne lhe impusesse, o primeiro que passasse à sua rua. Assim, tu és filho dum operário como poderias ser dum assassino. Podia mais a sua carne do que ela, mas o seu egoísmo foi maior do que a sua carne.
"A vida é uma luta brutal". (Tourgueneff).
Tu crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai dizer-lhe que eu o odeio com toda a força do meu ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és amigo dele, vai dizer-lhe que ele é mais vil do que as coisas vis. Vai dizer-lhe que eu o odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis filhos abandonados me vieram comer o meu jantar. Vai dizer-lhe o ódio lhe tenho por ele deixar morrer aquele justo, que por ser bom teve de se matar; diz-lhe finalmente que nada disto se deve fazer quando se é Deus.
Que me odeie agora também porque eu dei o jantar ao pequenos que o não tinham; que me odeie porque a última camisa a dei a um pobre que quase ma roubou; que me odeie porque eu o castigo como no outro dia castiguei um velho que maltratava um cão. Anda, vai dizer-lhe que me odeie, que se avilte ainda mais se é capaz...
A geração é de cobardes e "cada ano que passa está mais corrupto o mundo". (Maximo Gorki).
Ah! Não ter eu muito que dar a este pequeno miserável que me bate agora à porta, para que ele, recebida a esmola, me chame o mais vil que o sol cobre, o mais canalha de todos, o mais indigno, o mais bandido!
Ele não se engana. Lá tem o seu raciocínio que não falha nunca.
Dei-lhe tudo o que tinha e todavia vai a resmungar baixinho que um dia, um dia que virá cedo, me virá bater à porta com uma coronha e me há-de fuzilar a mim, o maior dos patifes que o socorri.
Vai-se embora a pensar que se fosse rico, havia de azorragar toda essa ralé que pede esmola e toda aquela que dá tudo o que tem.
E cisma em ser um dia o maior dos Neros que o mundo tem visto; em ter um chicote com que possa duma vez só azorragar a Terra, ele, cujo corpo devia ser balouçado no candeeiro ali defronte.
De trinta mendigos a quem dei esmola hão-de nascer noventa patifes para me apedrejar. Abençoada esmola! Mas explica-se. É que a minha esmola - esmola humana - fecunda lá dentro todo o meu cinismo e toda a minha canalhice.
Deste-me esmola? Muito bem, odeio-te. Odeio-te porque não posso também dar esmolas e porque me curvei a ti. Toda a vida tu me fizeste bem, socorreste-me, agasalhaste-me. Um dia eu - mau como sou - estou por cima. Então eu havia de perder a ocasião de me vingar de tudo o que tu me fizeste? Chegou o meu dia. Agora, meu velho, eu sou maior, ouves? Eu dobrei-me e tu socorreste-me, mas eu dobrei-me. Eu era um faminto e tu sentaste-me à mesa, mas eu dobrei-me. Tive fome tu encheste-me, tive frio tu agasalhaste-me. Irritante Tu, sempre Tu.
E eu não podia vingar-me, mas agora chegou a minha vez.
Acredita que todos aqueles a quem fazemos bem, nutrem lá dentro a secreta esperança dum dia nos correrem a pontapé. Logo no primeiro dia em que não temam desconjuntar a bota, quando o fizerem, percebes?
Escutaste? Vem, se te sentes com forças. Demais és pobre. Então para ti a vida é tudo isto e tudo o mais que tu tiveres coragem de inventar. "O pobre será odioso até ao seu parente mais chegado" (Provérbios, XVI-20), que "não merece carinhos quem não tem para caldo" (Silva Pinto), ouves? Tu virás e triunfarás. Tu serás mau e cínico e traidor.
A Vida? "Seria loucura, na verdade, conservarmos alguns sentimentos compassivos quando vivemos em semelhantes cavernas". (M. Du Camp).
A vida é uma canalhice, uma farçada, "uma luta brutal", como diz ali o Tourguen.
(Palavras Cínicas)
(Ilustração: Anthony Christian – Oedipus Fingers Oedipus Finx)
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