domingo, 17 de março de 2024

A CHEGADA DE VIRGÍLO A BRINDÍSIO, de Herman Broch



Azuladas, leves, movidas por uma branda, quase imperceptível brisa contrária, as ondas do Adriático haviam fluído ao encontro da armada imperial, quando esta, à esquerda das baixas colinas da costa calabresa, que aos poucos se avizinhavam, dirigia-se ao porto de Brindísio, e neste momento em que a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte, convertia-se na plácida alegria de atividades humanas, neste momento em que as águas suavemente abrilhantadas pela proximidade de existências e moradas dos homens povoavam-se de navios de toda espécie, alguns que, tal e qual a frota, buscavam o porto e outros que dele acabavam de sair, neste momento em que os barcos pescadores de velas pardas já abandonavam em toda a parte os protetores molhezinhos de um sem-número de aldeias e lugarejos, ao longo da beira irrigada de branca espuma, a fim de se encaminharem ao apanho noturno, o mar tornara-se liso, quase como um espelho. Acima dele abria-se, madreperolada, a concha do céu. Anoitecia, e notava-se o cheiro dos fogos de lenha das lareiras, cada vez que os sons da vida, marteladas ou um grito, chegavam dali, trazidos pela aragem.

Das sete naus acasteladas, que se seguiam em linha desenvolvida, somente a primeira e a última, ambas delgadas Penteras providas de esporões, faziam parte da frota de guerra. As cinco outras, mais lerdas e mais imponentes, com dez ou doze fileiras de remos, ostentavam o suntuoso feitio que correspondia ao estilo da corte do Augusto. Na do meio que era a mais pomposa, com o esplendor dourado da proa blindada de bronze, com o brilho jalde das cabeças de leões aplicadas sob a amurada, e que nas fauces carregavam argolas, e com as flâmulas coloridas da enxárcia, erguia-se, solene e grandiosa, abaixo das velas purpúreas, a barraca do César.

Porém, na nave que a seguia imediatamente, encontrava-se o autor da Eneida e o signo da Morte achava-se traçado em sua fronte.

Vítima de enjoos, mantido em contínua tensão pela constante iminência deles, não ousara mexer-se o dia inteiro; mas, embora preso ao leito que haviam montado para ele no centro do convés, o poeta sentia a si mesmo ou melhor a seu corpo, a sua vida corpórea, que havia muitos anos mal e mal conseguira reconhecer como sua própria, sentia-os como uma única reminiscência tateante, evocadora da relaxação que subitamente o percorrera, quando tinham alcançado a zona costeira, mais calmosa, e esse cansaço fluente, sereno e. serenizante talvez se tivesse convertido numa felicidade virtualmente completa, não houvessem aparecido mais uma vez, apesar do efeito saudável dos revigorantes ares marinhos, a tosse penosa, a prostração causada pela febre de todas as noites, e a angústia que sempre o acossava ao entardecer. Assim jazia ele ali, ele, o autor da Eneida, ele, Públio Virgílio Marão, jazia ali num estado de diminuída consciência, quase que envergonhado do seu desamparo, quase que furioso em face de tal destino, cravando os olhos na redondez madreperolada da redoma celeste. Por que, por que cedera à insistência do Augusto? Por que, por que saíra de Atenas? Com isso, extinguira-se a esperança de que o céu plácido, sagrado de Homero pudesse secundar e favorecer a conclusão da Eneida; extinguira-se qualquer esperança na imensidão de coisas novas, que em seguida deveriam ter começado, a esperança numa vida distanciada das Artes, liberta da Poesia, entregue à Filosofia e à Ciência; na cidade de Platão; extinguira-se a esperança no milagre do conhecimento e na cura pelo conhecimento. Por que renunciara a isso? Espontaneamente? Não! Houvera algo como uma ordem das irresistíveis forças da vida, daquelas forças imperiosas do destino, que jamais desaparecem totalmente, ainda que temporariamente submerjam em esferas subterrâneas, invisíveis, insondáveis, continuando mesmo assim presentes, intatas, como uma ameaça inescrutável de poderes aos quais jamais logramos subtrair-nos e sempre devemos render-nos; era o destino. O poeta deixara impelir-se pelo destino, e o destino impelia-o em direção ao fim. Não fora este sempre o seu modo de viver? Vivera ele diferentemente em qualquer época? A madreperolada redoma do céu, o mar primaveril, o canto dos montes, e aquilo que dolorosamente cantava em seu próprio peito, o som da flauta do deus — será que isso em algum instante significara para ele outra coisa que não uma ocorrência, que, igual a um receptáculo das esferas, em breve o acolheria, para levá-lo ao infinito? De origem, ele era camponês, um homem que adora a paz da existência terrena, ao qual teria sido adequada uma vida singela, sólida, na coletividade rural, e que todavia, em virtude de uma sina superior, não pôde permanecer em sua terra, que jamais o largou. Tal sina enxotara-o, para fora daquela coletividade, adentro da mais nua, da mais maligna, da mais selvagem solidão do formigueiro humano; expulsando-o do ambiente simples das suas origens, empurrara-o ao longe, rumo a uma sempre crescente multiplicidade, e se assim algo se ampliara ou aumentara, apenas se tratava da distância que o separava da vida verdadeira, pois, na verdade, unicamente a lonjura tornara-se maior. Ele caminhara apenas à beira de seus campos, vivera tão-somente à beira da sua vida; transformara-se num ser irrequieto, fugindo da morte, buscando a morte, buscando a obra, fugindo da obra, amoroso e todavia acossado, errante através das paixões íntimas e externas, só temporariamente alojado em sua vida. E hoje, quase ao fim de suas forças, ao fim de sua fuga, ao fim de suas buscas, após ter terminado a luta e se ter aprontado para a despedida, após ter alcançado a prontidão por meio da luta, quando estava prestes a aceitar a derradeira solidão e a iniciar o retorno íntimo que o conduzisse a ela, o destino com seus poderes mais uma vez se apossara dele; mais uma vez lhe vedara a singeleza e as origens: e o imo; novamente afastara dele o regresso; encurvando o caminho, convertera-o no da multiplicidade externa; forçara-o a voltar ao mal que lhe ensombreara toda a vida. Sim, parecia que o destino lhe deixava apenas uma única solução simples, a simplicidade da morte. Acima do poeta, as vergas rangiam no cordame. Entrementes ouviam-se abafados estrondos vindos das velas. Ele escutava o roçar das escumas da esteira e o jato prateado, que se punha a jorrar, cada vez que se levantavam os remos; escutava como estes guinchavam pesadamente nos toletes. Sentia como o navio dava saltos suaves, regulares ao compasso das centenas de remos. Via como a orla marítima agaloada de branco deslizava a seu lado, e pensava nos corpos de escravos silenciosos, acorrentados nos fundos fedorentos, sufocantes, do casco atroador. No mesmo compasso espasmódico, surdos estrugidos, acompanhados de golfadas argênteas, ressoavam dos dois navios vizinhos, do mais próximo e do que o seguia, semelhantes a um eco, que repercutia em todos os mares e ao qual vinham respostas de todos os mares. Pois, em toda a parte, as embarcações avançavam desta maneira, carregadas de homens, carregadas de armas, carregadas de trigo e outros cereais, carregadas de mármore, azeite, vinho e especiarias, carregadas de seda, carregadas de escravos. Em todo o mundo, havia a navegação, a permutar e comerciar, um dos piores vícios entre os muitos que assolam a terra.



(A morte de Virgílio; tradução de Herbert Caro)



(Ilustração: Mosaico anônimo da África Proconsular - Virgílio entre duas musas, início do século III dC)

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