sexta-feira, 1 de setembro de 2023

NO MAR, MEDO, FOME, DOENÇA E O DESENCANTAMENTO DA ONÇA, de Micheliny Verunschk





No princípio eu era de carne e estava na terra.

Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais



Foram muitos de muitos dias por mar e terra. E o tempo em que eles estiveram no mar foi de medo, fome, doença. O mar, eles não sabiam, se afigurava como um grande ajuntamento de todos os rios, que os assustava com sua boca enorme, seu rugir mesmo na calmaria, sua respiração de bicho surdo e feroz por baixo de seus pés. Estremeciam. Tanta água não, nunca haviam conhecido, um espírito assustador em sua baba salgada, esturrando, mas onça é que não. Por vezes o próprio céu invertido em água. Sob seus pés, água que corria, despropositada jiboia; acima da cabeça deles, água exata em ferir, talvez borduna ou flecha em vertiginoso voo. Às vezes, sobre seus corpos, a água em cristais polidos, muito frio, coisas que cortam e matam.

Nenhum deles nunca vira um rio que falasse tantas águas, rio sem margens. Em nenhum dos rios que conheciam, tanta fúria, tanto mistério. Nem o Paranáhuazú, a mãe de todos os rios, a quem os brancos chamam de Amazonas, aquele que guarda o mundo que existe para a vida que se vive depois de morrer, nem ele se apresentava tão perigoso, tão ameaçador. Outrossim, cruzar aquela água infinita e perturbada, imenso rio sem margens, certamente era morrer sem chegar ao lugar dos antepassados. E embora o medo corresse por seus ossos e os fizesse tremer, havia ainda que a grande fera era mesmo a embarcação e aquilo que a colocava em movimento, a carne bruta e ameaçadora dos marinheiros, a força invisível, liame que lhe dera ânimo de existir e que permitia, no intestino do porão, a ânsia, o vômito, a merda já esverdeada e líquida que o lavava e rescendia a podre e, ainda, os insetos e ratos, pragas que alimentavam todo sortimento de moléstias.

O navio, pois bem, grande canoa da morte. Pessoas, plantas, bichos, macacos, kdiziba, tatus, gooi, tamanduás, heehi e, ainda, os Desencantados. Como chamá-los? Iñe-e pudera observar ainda em terra os cientistas em seu trabalho de desencantamento. E logo percebera que não se tratava apenas de matar o bicho. Era outra atividade. Primeiro, levavam sua alma para a pele do papel em tão perfeita conformidade que seria possível dizer que o bicho rastejaria, caso fosse cobra, ou voaria, caso fosse pássaro, para fora daquele frágil limite. Depois, o desencantamento prosseguia. E morrer era só uma parte muito pequena daquilo tudo. O bicho, o bicho mesmo, em força e sangue, era tornado em nada depois que tudo se dava por encerrado. Morto e destripado, o bicho era limpo, sendo raspada da pele a carne já desprovida de poder, e o corpo esvaziado de tudo o que tinha sido um dia, restando um saco mole e triste, que só depois seria reconstruído com palha ou qualquer tipo de enchimento que servisse, recebendo, pouco a pouco, a antiga forma, e sendo assoprada nele aquela outra cara, aquele outro corpo, aquela boca que, aberta, não mais comeria; que, fechada, não mais se abriria: e era daí que surgiria o novo bicho, o outro bicho, muitas vezes inventando um movimento que nunca poderia terminar, endurecido em uma posição, salto ou bote que a partir daquele momento jamais poderia se extinguir. Aos olhos de Iñe-e o desencantamento era uma coisa verdadeiramente assombrosa.

Que vida a deles, a dos Desencantados!

Iñe-e observava tudo aquilo com temor e, se em cada um daqueles bichos procurava uma voz, um movimento, procurava neles também reconhecer os olhos da mãe, do irmão, de qualquer parente que ficara para trás, como se isso fosse possível. Procurava neles até seus próprios olhos. Perguntando dentro de si mesma:

Será assim que tudo vai acabar? Iñe-e paralisada, fixada na mesma posição, eternamente, talvez com um olhar triste, talvez com um olhar surpreso, talvez com um sorriso ao mesmo tempo impassível e engraçado, ou quem sabe lábios apertados um contra o outro, numa tristeza capaz de embaraçar quem venha a me observar em qualquer tempo? E essa larga viagem, em que me levam, é também uma viagem de desencantamento, de destripamento?

Eram coisas que ela se perguntava como se já soubesse quais seriam as respostas, antevendo seu retrato na parede branca de um museu visto por centenas de pessoas que não a conheciam, que não sabiam seu nome ou o que sentira no dia em que seu captor se postara diante dela com material de desenho e tintas, muito pronto para roubar a sua alma e obrigando-a, quando já não era mais natural, a se despir. Pessoas que, mirando seu olhar cabisbaixo, ignoravam que muito dela ainda permanecia ali.

Na tarde em que vira uma grande onça destripada no terreiro, o coração se tornara muito pequeno dentro do peito, minúsculo coração de pássaro sem penas, reduzido a presa caída do ninho. Naquele dia, entre raiva e dor, chorou por si mesma pela primeira vez.



(O som do rugido da onça)



(Ilustração: Miranha e Juri - dois jovens da América do Sul que foram sequestrados e levados para Munique no século XIX, por volta de 1827 – retratos de autor desconhecido)

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