domingo, 30 de julho de 2023

A FALSIDADE QUE NOS FAZ MURCHAR (DIÁRIO: 26 DE ABRIL), de Alba de Céspedes

 


Esta noite me sinto sob o peso de uma grave humilhação. Talvez por ter feito uma coisa que até agora eu jamais tinha ousado fazer; ou melhor, não havia sequer imaginado poder fazer. Estávamos sentados na sala de jantar e Michele escutava o rádio; uma música que me fazia sentir leve, sonhadora, me comovia. Não sei que coisa me impeliu a falar; encontrava-me sob o influxo de uma força mais poderosa do que eu, à qual não podia, ou talvez não quisesse, resistir. Aproximei-me de Michele e baixei o volume do rádio; o aposento estava na penumbra. Ele abriu os olhos e me fitou como se acordasse. “Michele…”, eu disse, sentando no braço da poltrona: “Por que não somos mais aqueles que éramos quando recém-casados?”. Ele se mostrou surpreendido por essa pergunta, então respondeu que continuamos os mesmos. Segurei sua mão, beijei-a, acariciei-lhe o braço, abracei-o com fervor. “Sabe, Michele”, insisti, me esquivando de seus olhos; depois reuni minhas forças para fitá-lo, séria e afetuosa: “Quero dizer… à noite. Você não me adormece mais em seus braços. Lembra?”, acrescentei, corando, “você me dizia: ‘Venha aqui para descansar’. E me puxava para perto, depois me abraçava, e nós não descansávamos”. Ele começou a rir, fez um gesto evasivo: “Eram coisas de uma outra idade, você fica remoendo! Aos poucos perde-se o hábito de certas coisas e, por fim, não se pensa mais nisso”. “Pois é”, eu insistia, “você acha mesmo que não se pensa mais nisso? Ou, quem sabe, já não ousamos ser sinceros como naquele tempo?” “Quantos anos tínhamos, na época?”, ele disse; “sabia que eu tenho quase cinquenta anos? Já não somos…” “Não é verdade”, interrompi. “Se você quer dizer que já não somos jovens, eu lhe digo que está enganado. Eu sei, somos jovens, e basta não nos compararmos com nossos filhos para constatar que somos muito jovens.” “Mas como podemos não nos comparar com eles?”, Michele insistia, sempre com o mesmo sorriso fugidio; via-se que estava ansioso para pegar o jornal, ou melhor, abandonar aquele assunto. Eu me perdia em minhas próprias frases, gostaria de manter a conversa num tom genérico, não falar de mim, e a vergonha de não conseguir me dava vontade de chorar. Ele repetiu, como para me convencer: “Não se pensa mais nessas coisas, ou, quando se pensa…”. Parou, incerto, e eu queria lhe sugerir: “Você quer dizer que se pensa com uma outra pessoa, não?”. Queria ter a coragem de pronunciar essas palavras, queria tê-la a todo custo; mas algo me impedia, uma prudência natural, extrema. “Leia nos jornais”, sugeri então, “veja as estrelas de cinema, essa gente de quem falam. Não param de casar, e de casar novamente aos quarenta anos, aos cinquenta…” Ele disse que se trata de gente que é obrigada a manter aceso o interesse do público com suas extravagâncias e esquisitices. “Além do mais, casar não importa”, completou, “é sempre questão de idade. Nós dois não somos casados? E no entanto… Casar não significa agir como dois jovenzinhos de vinte anos.” “Não pode estar tudo acabado”, eu insistia, “não é verdade que acabou. Todos dizem que os últimos anos são os mais importantes. Dizem que não se deve perdê-los, jogá-los fora. Que são como uma segunda juventude, nova, maravilhosa… Michele… Depois tudo estará realmente acabado, será tarde… Muita gente se apaixona pela primeira vez aos cinquenta anos, inclusive pessoas que até poderiam estar satisfeitas com a posição que alcançaram. Mas dizem que nem mesmo a posição importa, e tampouco o dinheiro.” Nesse momento, com essas palavras temi haver confessado tudo a meu respeito, e então de repente disse: “Veja Clara”. Ele logo perguntou: “Clara está apaixonada? Ela falou alguma coisa?”. “Sei lá, não agora, ela sempre diz que está apaixonada.” Deslizei sobre os joelhos dele, acariciei-lhe os cabelos, busquei seus olhos, que se escondiam numa mirada evasiva. Então, me inclinando, beijei-o, beijei seus lábios fechados. Então ouvimos um ruído no quarto de Riccardo. Michele pulou, ajeitando os cabelos, passando o dorso da mão pelos lábios: “Os meninos poderiam entrar”, disse baixinho, irritado.

Enquanto isso, olhava a porta, esperando ver alguém; eu também olhava, como se esperasse um castigo, mas ninguém entrou. Talvez Riccardo, no quarto dele, tivesse arrastado uma cadeira. Compreendi o absurdo daquilo que eu havia feito, considerei que de fato um dos meninos poderia nos ter surpreendido, escutado minhas palavras; e, ao imaginar isso, uma profunda humilhação se apoderou de mim. “Desculpe”, murmurei. Michele me acariciou no ombro. “Nada disso, claro que não”, respondeu. “Bem vejo que você anda nervosa faz algum tempo. Você deveria mesmo pedir um mês de licença e ir a Verona: eles a exploram naquele escritório, fazem você mourejar desde a manhã até a noite.” À menção de Verona, comecei a chorar e Michele me enxugava as lágrimas com seu lenço. Depois pegou o jornal e começou a ler; fui para o quarto.

Enquanto me despia, me olhava no espelho; procurava me ver velha, humilhada inclusive quanto ao aspecto exterior, e não conseguia. Pelo contrário, voltei a chorar porque me via jovem: minha pele era bronzeada e lisa sobre o desenho enxuto dos ombros, a cintura fina, o busto cheio. Contive os soluços com dificuldade: Mirella dormia logo do outro lado da parede e eu temia que ela pudesse me ouvir. Talvez seja isso que há muitos anos nos impede de ser como quando éramos ainda recém-casados, ou quando os meninos eram pequenos e não compreendiam nada: é a presença deles do outro lado da parede. É preciso esperar que saiam, é preciso ter certeza de que não seremos surpreendidos; e os filhos estão por toda parte numa casa. À noite é preciso recorrer ao escuro, ao silêncio, conter qualquer palavra, qualquer gemido, e de manhã não lembrar mais o que aconteceu, no temor de que eles possam ler em nossos olhos a recordação daquilo. Com filhos em casa, já aos trinta anos é preciso fingir não mais ser jovem, exceto para brincar, rir com eles; é preciso fingir ser apenas um pai e uma mãe; e à força de fingir, à força de esperar que eles saiam, que não escutem, não imaginem, acaba-se por realmente não mais ser jovem. Quando além da porta se escutam as vozes dos filhos, os abraços entre marido e mulher num quarto fechado à chave, onde afirmaram ter entrado para dormir, soam uma coisa indecorosa, suja, um pecado maior do que o cometido por aqueles que, não casados entre si, ou até mesmo casados com outras pessoas, se encontram clandestinamente em quartos de aluguel, hotéis, apartamentos de solteiros. Se os meninos nos surpreendessem, torceriam a boca numa careta de repulsa; e eu, só de imaginar essa careta, sinto um calafrio. Diante dos próprios filhos, uma mãe deve sempre mostrar não haver jamais conhecido essas coisas, jamais ter desfrutado delas. É essa falsidade que nos faz murchar. São eles os culpados, eles. Quando os filhos estão presentes, o marido, ainda que ache a esposa bonita, não pode olhá-la com desejo; se um gesto dela, uma atitude o atrai, ele não pode abraçá-la, beijá-la; e assim pouco a pouco ele não a vê mais. Nem Michele nem os meninos me consideram jovem; no entanto, noites atrás, Riccardo contava de um amigo que se apaixonou loucamente por uma mulher de quarenta anos, uma mulher lindíssima. “Se desse certo”, dizia, “seria um homem de muita sorte.”

Pronto, de repente creio ter compreendido aquilo que nos faz temer que os filhos se deem conta de uma vida secreta nossa, aquilo que nos torna tão relutantes em nos entregar a ela: é porque sentimos que marido e mulher, que se unem numa relação encoberta, silenciosa, depois de terem falado o dia inteiro de questões domésticas, de dinheiro, depois de terem fritado ovos, lavado pratos sujos, já não obedecem a um feliz e jubiloso desejo de amor, mas a um instinto primário como sede, fome, um instinto que se satisfaz no escuro, rapidamente, de olhos fechados. Que horror.

Envergonho-me até deste caderno, de mim mesma, não ouso mais escrever, assim como na outra noite não ousava mais me olhar: me aproximei do espelho para me fundir com a casta imagem ali refletida, enquanto murmurava “Guido”.




(Caderno proibido; tradução de Joana Angélica d’Avila Melo)



(Ilustração:  Alfredo Protti, Italian, 1882-1949)

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