Um clima de festa acompanhou, principalmente na Alemanha, a deflagração da I Guerra Mundial: as fotos nos mostram a imagem de jovens que correm para alistar-se com o mesmo entusiasmo com que se vai a um encontro erótico. Quem ficou encantado por aquela guerra “grande e maravilhosa”, de acordo com a definição de Max Weber, foram também intelectuais de primeira ordem e amplas camadas da população. Uma testemunha excepcional, Stefan Zweig (1968, p. 207), assim descreveu o clima espiritual de Viena nos dias à declaração de guerra:
Cada um era chamado a jogar na multidão inflamada seu “eu” pequeno e mesquinho para purificar-se de todo egoísmo. Todas as diferenças de classe, de língua, de religião eram, naquele momento grandioso, submersas pela grande correnteza da fraternidade.
A terrível prova diante da qual o país se encontrava tornava necessária a união estreita do povo, uma fusão das existências e das consciências nunca antes experimentada. A eclosão do conflito gigantesco marcava a hora da desindividualização (Entselbstung), do arrebatamento comum na totalidade (gemeinsame Entrückung in das Ganze). O amor ardente da comunidade rompe os limites do eu. Cada um se torna um só sangue e um só corpo com os outros, todos unidos na irmandade, prontos para anular o próprio eu no serviço.
Quem se expressava assim era Marianne Weber (1926, p. 526): a linguagem da experiência mística aqui utilizada ecoava amplamente na cultura e na publicística do tempo. Na linha de frente, os soldados corriam prontos para morrer, mas, principalmente na Alemanha, a filosofia e a cultura dominantes celebravam a prova das armas e a disponibilidade ao sacrifício como uma espécie de exercícios espirituais: esses tirariam o indivíduo do pensamento calculista e da banalidade e vulgaridade da existência cotidiana, realizando a comunhão dos espíritos que, até aquele momento, era impossível por causa do conflito social e do apego unilateral aos bens materiais. Sim, os soldados na linha de frente eram obrigados a enfrentar sacrifícios e privações e a desafiar diariamente a morte, mas essa árdua provação revelava-se uma pedagogia benéfica, que transformava garotos imberbes e fracos em homens de personalidade rica e madura e com um sentido da existência mais viril e profundo; naturezas toscas e nada sociáveis voltavam do campo de batalha mais gentis e com uma percepção mais aguda dos valores da vida em comum e da solidariedade.
Benedetto Croce esperava que a guerra recém-deflagrada, na qual a Itália ainda não havia intervindo, trouxesse uma “regeneração da vida social presente”. Mas esse comunitarismo de guerra mistificador e essa procura apaixonada no front bélico da autenticidade, da intensidade e da plenitude espiritual não podiam sobreviver à posterior, dolorosa, experiência de massa: a esperar nas trincheiras estavam a lama, a arregimentação total e a morte. Para dizer a verdade, do outro lado do oceano Atlântico, logo depois do fim das hostilidades, Herbert Hoover, grande expoente da administração estadunidense e futuro presidente dos Estados Unidos, atribuía ao conflito recém-terminado uma função de “purificação dos homens”. Era, contudo, uma retomada tardia e bastante artificiosa de um tema que, naquela altura, encontrava pouco acolhimento na consciência dos homens.(*)
Vinte anos mais tarde, nem mesmo as vitórias triunfais do primeiro Blitzkrieg [ataque-relâmpago] hitleriano conseguiram despertar o entusiasmo dos meses de julho-agosto de 1914. Sem a intenção de ofender os pós-modernos, eles que não perdem ocasião de zombar da ideia de progresso, as grandes experiências históricas, com frequência trágicas, não acontecem sem deixar rastros profundos e ensinamentos mais ou menos conhecidos. Pode-se e deve-se insistir no caráter extremamente tortuoso do processo histórico, mas falar de processo significa, afinal, reconhecer a capacidade de aprendizagem dos homens e a irreversibilidade do tempo histórico, a impossibilidade de voltar a um tempo anterior às experiências históricas que marcaram gerações inteiras de homens. A atmosfera encantada dos meses de julho/agosto de 1914 nunca mais se reproduzirá: ocorreu um desencanto que deixou sua marca. A guerra não pode mais ser comparada aos exercícios espirituais, não pode mais ser acolhida como uma festa ou um momento necessário e positivo do processo de formação e de amadurecimento da existência “autêntica”. Nas palavras de Hegel, a experiência da “seriedade” e da “dor” do “negativo” não pode mais ser apagada (Hegel 1969-79, vol. III, p. 24).
Isso vale também para a revolução. Na Rússia, o colapso do czarismo e o mês de fevereiro de 1917 foram saudados, naquela época, como uma Páscoa de Ressurreição. Grupos cristãos e setores importantes da sociedade esperavam, a partir dela, uma regeneração total, com o surgimento de uma nova comunidade espiritual e intimamente unificada: não haveria mais lugar para a divisão entre ricos e pobres, e nem para o roubo, a mentira, a blasfêmia, a embriaguez. Esse espetáculo conheceria uma repetição ainda mais enfáticas alguns meses depois. “Está havendo o quarto salmo das vésperas do domingo e o Magnificat: os poderosos derrubados de seus tronos e o pobre resgatado da miséria” – assim um observador, francês e cristão fervoroso (Pierre Pascal), saudava o mês de outubro bolchevique, enquanto, fora da Rússia, o jovem Ernst Bloch aguardava, na primeira edição de Espírito da utopia, o desaparecimento da “moral mercantil, que consagra tudo o que no homem há de pior”, e a “transformação do poder em amor” (cf. Losurdo 2008, pp. 56-57 e 67).
O entusiasmo ingênuo, incentivado pela queda de um Antigo Regime que se tornara universalmente odioso e, em outubro, pelo fim (ou pelo fim iminente) de uma carnificina bélica tida por todos como intolerável e monstruosa, não podia resistir às contradições e aos conflitos sangrentos que estavam vindo à tona no novo sistema. Assim como o comunitarismo de guerra mistificador e a celebração em forma espiritualista e existencial da prova das armas e da vida no combate, as decantadas esperanças revolucionárias de uma renovação total da sociedade e da existência humana enquanto tal sofriam o impacto terrível do acontecimento histórico real. Em ambos os casos, percebia-se a experiência da “seriedade” e da “dor” do “negativo” de modo indelével.
O século XX é marcado por guerras e revoluções que prometem, em modalidades diferentes, a realização da paz perpétua, ou seja, é marcado por violências cuja motivação é erradicar de uma vez por todas o flagelo da violência. Em 1900, a expedição conjunta das grandes potências para sufocar no sangue a revolta dos Boxers, na China, era celebrada pelo general francês H. N. Frey, ainda que repleta de massacres, como a realização do “sonho de políticos idealistas, os Estados Unidos do mundo civilizado”, como o advento de um mundo que não está mais marcado pelas fronteiras e pelos conflitos entre os Estados (LO, 39; 654). A unidade dos países “civilizados” na luta contra a barbárie “asiática” reforçava essa esperança. Na realidade, quatorze anos depois do horror da I Guerra Mundial estava sob o olhar de todos, e seus protagonistas eram, em primeiro lugar, os países “civilizados” anteriormente convocados para garantir a ordem e a paz com suas expedições punitivas. Nem por isso definhara a ideologia que convocava a guerra para promover a causa da civilização e da paz. Na Itália, Gaetano Salvemini (1963, p. 361) invocava com estas palavras a intervenção da Itália no massacre recém-começado: “é preciso que esta guerra mate a guerra”; não era lícito desertar “a guerra pela paz”, para retomar o título do artigo aqui citado. É a ideologia da Entente que mais tarde, em ocasião da intervenção dos Estados Unidos, será consagrada por Wilson: a derrota dos Impérios Centrais, tachados de autoritarismo, e a disseminação em grande escala da “liberdade política” e da “democracia” tornariam finalmente possível a “paz definitiva” (ultimate) do mundo (Wilson 1927, vol. I, p. 14).
Lenin não tinha dificuldade em mostrar o caráter mistificador dessa palavra de ordem: a Alemanha, que era o alvo principal da cruzada da Entente para a vitória da causa da democracia e da paz, agitava essa mesma bandeira da luta contra o despotismo belicista, e contra um país que fazia parte da coalizão antialemã, ou seja, contra a Rússia czarista; longe de promover a “paz definitiva”, o apelo à difusão por qualquer meio da liberdade política e da democracia funcionava maravilhosamente, nos lados opostos, como ideologia da guerra, ou seja, servia para alimentar um massacre interminável. Portanto, aos olhos de Lenin, era preciso buscar a realização da paz perpétua, tomando um caminho diferente, a partir da derrubada do sistema político-social que, na Alemanha como na coalizão antialemã, estimulara as ambições expansionistas e hegemônicas, a corrida armamentista e a guerra; as raízes desse flagelo seriam extirpadas, de uma vez por todas, após o triunfo do socialismo em escala planetária, e não da democracia “burguesa”.
Mas o desenvolvimento histórico foi mais uma vez bem diferente: por último, o “campo socialista” dissolveu-se, inclusive, em decorrência das tensões agudas, dos conflitos armados e das guerras entre países que deixaram o capitalismo.
Depois das tragédias ocorridas ao longo do século XX e do não cumprimento das promessas seja das guerras, seja das revoluções, temos que repetir com Karl Valentin (em Magris 2007, p. XII), o comediante e amigo de Brecht: “Antigamente o futuro era melhor!” O futuro não parece mais tão radiante para justificar a violência (seja bélica ou revolucionária) invocada para realizá-lo. Que fique bem claro: não estamos assistindo ao desaparecimento das mirabolantes construções ideológicas ou das “grandes narrativas do século XIX” de que fala Jean-François Lyotard (1985, p. 70). A esse respeito, o progresso que os pós--modernos teorizaram de fato e de maneira contraditória, justamente eles, os grandes críticos da ideia de progresso, é parcial e frágil.
Em nossos dias, a “grande narrativa” segundo a qual a disseminação da democracia em escala global, ainda que pela força das armas, extirparia de vez as raízes da guerra e abriria o caminho para a paz perpétua, continua provocando suas consequências nefastas. É em nome dessa perspectiva exaltante que são lançadas “operações de polícia internacional” devastadoras e sangrentas. Entretanto, embora sejam propaladas e transfiguradas por um aparato gigantesco e sofisticado de multimídia, essas guerras não têm mais a capacidade de despertar o entusiasmo e o encanto de outrora. As decepções provocadas pelo desenvolvimento real do século XX estimulam um estado de ânimo e uma atitude que poderiam ser sintetizadas assim: em vez de postergar a não violência a um futuro político-social muito problemático, não seria melhor praticá-la individualmente desde já? Por que o recurso às armas com o objetivo de realizar mudanças no plano interno e internacional não deveria seguir o mesmo declínio de outras práticas violentas (a caça às bruxas, a escravidão, o duelo), que no passado tiveram muito sucesso, mas que agora não são mais compreensíveis?
Assim argumentava Lev Tolstoi, que, em 1896, ao desejar e prever um mundo sem guerra, apontava: “Este tempo está próximo […] Restará apenas uma vaga lembrança da guerra e do exército na forma em que hoje existem” (Tolstoi 1983, pp. 35-38). É uma profecia formulada poucos anos antes do começo século XX, o século que depois veria deflagrar a guerra por longo tempo, em cada canto do mundo e em modalidades particularmente monstruosas. Em 1905, enquanto na Rússia ocorria a revolução que estava abalando a autocracia czarista, Tolstoi fazia outra profecia: “A revolução violenta sobreviveu a si mesma” (ibidem, pp. 118-19); um ciclo se fechava e outro se abria, no qual a transformação radical da sociedade aconteceria pacificamente. É só lembrar que os desenvolvimentos sucessivos, tanto na Rússia como em outras partes do mundo, desmentiram radicalmente também essa profecia.
Conhecemos as lágrimas e o sangue de onde jorraram, com modalidades e resultados bem diferentes entre si, os projetos de transformação do mundo através da guerra ou da revolução. A filosofia do século XX, a partir do ensaio publicado em 1921 por Walter Benjamin, comprometeu-se com a “crítica à violência” inclusive quando ela tem a pretensão de ser “meio para fins justos” (Benjamin 1982, p. 5); mas o que sabemos nós dos dilemas, das “traições”, das decepções e das verdadeiras tragédias que viveu o movimento que se inspirou no ideal da não violência?
Nota:
(*) Para a Alemanha, cf. Losurdo 1991, cap. 1; para Croce e Hoover, cf. Losurdo 1997, cap. II, item 3.
Referências:
Zweig S. (1968), Die Welt von gestern. Erinnerungen eines Europäers (1944), reimpr. anast., Fischer, Frankfurt a.M.
Weber Marianne (1926), Max Weber. Ein Lebensbild, Mohr, Tübingen.
Hegel G.W.F. (1969-79), Werke in zwanzig Bänden, org. E. Moldenhauer e K.M. Michel, Suhrkamp, Frankfurt a. M.
Losurdo D. (2008), Stalin. Storia e critica di uma leggenda nera, Carocci, Roma.
Salvemini G. (1963), La guerra per la pace, em L’Unità, 28 de agosto de 1914, em Id., Opere, Feltrinelli, Milano, vol. III, livro 1, pp. 359-61.
Wilson W. (1927), War and Peace. Presidential Messages, Addresses, and Public Papers (1917-1924), org. R.S. Baker e W.E. Dood, Harper & Brothers, New York-London.
Magris C. (2007), Prefazione a W. Benjamin, Immagini di città, Einaudi,Torino, nova ed.
Lyotard J.-F. (1985), La condizione postmoderna. Rapporto sul sapere (1979), Feltrinelli, Milano.
Tolstoi L. (1983), Redegegen den Krieg. Politische Flugschriften (1968), org. P. Urban, Insel, Frankfurt a.M.
Benjamin W. (1982), Per la critica dela violenza (1921), em Id., Angelus Novus. Saggi e frammenti, Einaudi, Torino.
(A não violência: uma história fora do mito; tradução Carlo Alberto Dastoli)
(Ilustração: Otto Dix: A detail from Otto Dix's Stormtroops Advancing Under a Gas Attack, from his 1924 set of first world war drawings, Der Kreig. Photograph: British Museum/DACS)
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