Iúri Andreevitch começou a colocar em ordem aquilo que criou, trechos de que lembrava e obras que Ievgraf conseguia e trazia para ele de algum lugar, parte em próprios manuscritos de Iúri Andreevitch, e parte impressos por estranhos. O caos do material obrigava Iúri Andreevitch a espalhar-se ainda mais do que a sua própria natureza já tendia a fazer. Logo largou este trabalho e da retomada do inacabado passou para a criação de algo novo, atraído pelos últimos esboços feitos.
Compunha em rascunho ensaios
de artigos, do mesmo tipo das anotações superficiais que fez na primeira estada
em Varikino, e anotava fragmentos de poemas que lhe ocorriam, inícios, fins e meios,
misturados, sem distinção. Às vezes, mal conseguia dominar as ideias que lhe
ocorriam, anotava as letras iniciais das palavras e abreviações por causa de
sua escrita, que não acompanhava a impetuosa e rápida fluência de seus
pensamentos.
Tinha pressa. Quando sua
imaginação se cansava e o trabalho atrasava, ele apressava-o e estimulava-o
fazendo desenhos nas margens das folhas. Neles retratava clareiras de florestas
e cruzamentos urbanos com postes de anúncios no meio: "Moreau e
Vettchinkin. Semeadores. Debulhadores".
Os artigos e os poemas
tinham todos o mesmo tema: a cidade.
Posteriormente, entre seus
papéis, encontraram a seguinte anotação:
"No ano de 1922, quando
retornei a Moscou, encontrei-a despovoada e semidestruída. Assim ela saiu das
provações dos primeiros anos da revolução, assim permanece até o dia de hoje. A
população diminuiu, não se constroem prédios novos, os antigos não são
conservados.
"Porém, mesmo neste
estado, permanece uma cidade grande e moderna, a única inspiradora de uma arte
verdadeiramente nova e moderna.
"A enumeração
desordenada de objetos e conceitos, aparentemente incompatíveis e colocados
lado a lado de forma espontânea, nos simbolistas Block, Verhaeren e Whitman,
não é um capricho estilístico. É uma nova ordem de impressões, observada ao
vivo e reproduzida no modelo.
"Da mesma forma como
eles percorrem uma série de imagens, a rua urbana comercial do fim do século
XIX passa navegando e faz correr diante de nós suas multidões e veículos e
depois, no início dos próximos cem anos, passarão os vagões de seus bondes, de
suas ferrovias elétricas e subterrâneas.
"Nessas condições, não
há lugar para a simplicidade pastoral. A sua falsa naturalidade é um plágio
literário, um maneirismo artificial, um fenômeno de ordem livresca, trazido não
pela aldeia mas pelas prateleiras de bibliotecas dos depósitos de livros
acadêmicos. A linguagem viva, que formou-se ao vivo e que corresponde
naturalmente ao espírito do nosso dia, é a linguagem do urbanismo.
"Moro num cruzamento
urbano movimentado. A Moscou de verão, cega pelo sol, o asfalto incandescente,
o sol que joga reflexos nos vidros das janelas dos cômodos superiores, a
respiração da floração das nuvens e dos bulevares gira em torno de mim e me
vira a cabeça e quer que eu, em sua homenagem, vire a cabeça dos outros. Com
este objetivo, a cidade educou-me e entregou-me nas mãos da arte.
"De dia e de noite, a
rua constantemente barulhenta atrás da janela, da mesma forma densa, está
estreitamente ligada ao espírito moderno, assim como a abertura musical e os
panos teatrais ainda descidos e repletos de escuridão e mistério, mas já pelas
luzes vermelhas acesas da ribalta. Incessante e ininterruptamente, a cidade que
se move e rumoreja atrás das portas e das janelas é uma infinita e imensa introdução
à vida de cada um de nós. Exatamente com estes traços eu gostaria de escrever
sobre a cidade."
No caderno de poemas de
Jivago, que fora conservado após sua morte, não se encontram tais versos.
Talvez o poema Hamlet pertencesse a esta categoria?
(Doutor Jivago - título original em
russo: Doktor Zivago; tradução de Zoia Prestes; prefácio e tradução de
poemas: Marco Lucchesi)
(Ilustração: museu artes xfig
Leonid Afremov - Old Moscow.jpg)
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