sexta-feira, 16 de setembro de 2022

PORTUGAL, de válter hugo mãe (*)

 




nós fizemos tudo pela igreja porque as convenções, à época, eram muito mais rígidas do que aquilo que a frescura da nossa juventude nos permitia almejar, ainda nos marcavam as heranças castradoras de uma educação com idas à missa, mas, sobretudo, uma dificuldade em contar com o que os outros esperariam da nossa conduta, de todo o modo, a laura descobriu rapidamente aquele gozo universal das noivas, aparecendo de branco e deslumbrante entre folhos e camadas de tecidos como um bolo feliz, dando o braço ao pai e percorrendo o caminho até ao altar no sorriso mais fascinado de todos, e depois dissemos que sim e assinámos tudo com alguma aceleração, pedimos encarecidamente uma cerimónia breve que condissesse com a urgência de nos unirmos e nos pertencermos, o padre viu a coisa pelo lado romântico e abençoou-nos entusiasmado com a nossa alegria, de seguida, ficámos com a família e uns poucos amigos a gastar o dia em cumprimentos e risos, comezainas e telefonias ligadas para saber como ia o futebol do domingo, estávamos em mil novecentos e cinquenta.

ainda hoje ouço os velhos comentarem que o paizinho fez tudo para que o benfica personificasse a glória da nação, era como ter um exército do desporto, uma selecção, pois, que fora constituída e adoptada por coração depois do erro que fora esperar do sporting tal coisa, o regime orgulhava-se do plantei com as importações africanas, quando ainda a europa não percebera vantagem em ir buscar negros para reforço das suas equipas, e todas as pessoas passaram a ser benfiquistas encurralados, o que significava que eram benfiquistas porque a oposição já não era nenhuma e todos queriam adorar campeões, e era ver o entusiasmo do ditador com o futebol dos encarnados, um futebol do eusébio, todo nosso, maravilhosa pantera do caraças a correr para o mérito dos portugueses, eu, que sempre fui portista, gostava do eusébio como era impossível não gostar, gostava dele em grande e estava, claro que pelo coração, do lado do paizinho e isso propunha atenuar consideravelmente as minhas desconfianças, nem sempre lúcidas, acerca do regime, porque ficava o porto para uma paixão local, e o benfica para o esplendor nacional, como pareciam ser equilibradas e correctas assim as coisas, mas em mil novecentos e cinquenta as coisas não estavam ainda tão definidas, é isso que tento dizer, o certo e o errado eram difíceis de discernir, pois o benfica ainda não se fizera o glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente, não sabíamos nada. havíamos passado ao lado da guerra e parecia que a vida se protegia no país das quinas, igual a termos uns muros nas fronteiras, um peito viril erguido contra malandros estrangeiros, e foi assim que nos casámos, cheios de vivacidade e entrega ao futuro num país que se punha de orgulhos e valentias. quando as crianças daquele tempo estudavam lá lá ri lá lá ela ele eles elas alto altar altura lusitos lusitas viva salazar viva salazar, toda a gente achava que se estudava assim por bem, e rezava-se na escola para que deus e a nossa senhora e aquele séquito de santinhos e santinhas pairassem sobre a cabeça de uma cidadania temente e tão bem comportada, assim se aguentava a pobreza com uma paciência endurecida, porque éramos todos muito robustos, na verdade.

que povo robusto o nosso, a atravessar aquele deserto de liberdade que nunca mais acabava mas que também não saberíamos ainda contestar, havia uma decência, com um tanto de massacre, sem dúvida, mas uma decência que criava um porreirismo fiável que incutia em todos um respeito inegável pelo colectivo, porque estávamos comprometidos em sociedade, por todos os lados cercados pela ideia de sacrifício, pela crença de que o sacrifício nos levaria à candura e de que a pureza era possível. íamos ser todos dignos da cabeça aos pés. tínhamos ainda palavra de honra, que coisa tão estranha essa da palavra de honra, chegar a um lugar, dizer com ar grave que tal promessa era por nossa honra, e todos estremeciam, porque se manifestava o mais sagrado que se podia ser. ninguém duvidava de tal verdade nem menos gozava.

viva salazar viva salazar maria imaculada mês de maio mês dos lírios e das rosas mês de maria coração de maria, dai-nos o vosso amor santa maria.

eu e a laura começámos por pensar que nada nos faria mal. que a custo nos tornaríamos úteis na máquina social e estaríamos abrigados num tecto onde os nossos filhos nascessem com os nossos nomes portugueses e orgulhosos, começámos por achar que até da igreja adviria uma benignidade tranquila e natural, por isso nos acercávamos mais da vida religiosa e tentávamos acreditar que aquela especulação das almas e o improvável do invisível serviria para nos levar a uma melhor humanidade, onde se erradicassem erros profundos que resultavam em atrocidades inaceitáveis, eu e a laura assistíamos às missas de domingo, muito esperançados na ideia de que começar uma vida a dois seria melhor assim, com as bênçãos sagradas, e aqueles crentes todos em nosso redor, com cara de quem nos ajudaria por ofício de fé, com ar de quem gostava de nós e se preocuparia com as nossas misérias, e nós gostávamos deles.

aprendi tudo ao contrário depois, ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito, um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos, esperar por deus é como esperar pelo peter pan e querer que traga a fada sininho com a sua minissaia erótica tão desadequada à ingenuidade das crianças, o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas, eu aprendi que aqueles crentes se esfolavam uns aos outros de tanto preconceito e estigmatização. e aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo, atirados para o fundo de um quarto sem qualquer ajuda, e eu ainda fui pedir ao padre que nos fizesse chegar a um hospital, que fosse rápido, porque as águas tinham rompido e a laura não se mexia, não temos carros neste bairro, dizia-lhe eu, é um bairro pobre, ninguém tem dessas máquinas, mas, como está, não há parteira que lhe pegue, está a sangrar, padre, a laura está a sangrar do nosso filho, e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus e queria com isso afirmar que correria bem. era para que eu não me preocupasse, e depois foi lá ele com duas velhas e não se pensou em nenhum carro, o nosso filho já estava no colo da laura e ela estava sem sentidos, afastada pela dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.

não foi culpa do padre, nem da igreja e nem de deus. foi só o triste acaso de sermos miseráveis num país de miséria que não esperava de nós mais do que o brio e o sacrifício mudo. havíamos sacrificado o nosso primeiro filho, e saído com duas moedas no bolso que pagariam quatro ou cinco sopas e nos deixariam para o resto do mês à deriva da sorte, começaram os outros a benzer-se e a rezar e levaram-me para uma cadeira onde me estenderam o crucifixo que tínhamos sobre a cómoda, e esperaram que deus, ou o peter pan, entrasse na minha vida com explicações perfeitas sobre o que sucedera, esperaram que a vida se prezasse ainda, feita de dor e aprendizagem, feita de dor e esperança, feita de dor e coragem, feita de dor e cidadania, feita de dor e futuro, feita de dor e deus e salazar.

naquele dia o mais importante de tudo era salvar a laura. à revelia do catolicismo, eu preferia abdicar de um filho que não conhecera para continuar partilhando a minha vida e crescendo como indivíduo ao lado da mulher que trazia definição a todas as incompletudes do meu ser e as colmatava, eu queria mesmo a laura muitos pontos acima daquele filho que se perdia para sempre, e nisso tive sorte, pousei aterrorizado o crucifixo na cómoda novamente e aproximei-me do mulherio que debicava a minha esposa, quis saber se a mantinham viva, se já lhe haviam desligado o cordão para que se autonomizasse à morte e ficasse inteira do lado imenso da vida. e assim foi. a laura levaria umas horas a recuperar os sentidos e a vislumbrar o meu sorriso triste mas inequívoco, ganháramos nós. nós dois. o lugar já amadurecido do amor. o lugar em exercício, e ela chorou e aceitou, como eu, que nos faríamos mais fortes e cortaríamos caminho pelo tempo fora com garras mais afiadas, que nada do que nos haviam dito nos preparara para aquela tragédia, e nada do que nos diriam haveria de voltar a iludir os nossos intentos, os nossos gestos.

durante muito tempo, portugal foi um país cujas crianças nasceram em frança, tantas, caramba, e eu pensava, já ali por mil novecentos e sessenta e dois, que em frança estaríamos a salvo, escapando da fome e do jugo de um trabalho sem retribuição suficiente para um raio de sol por dia. mas os nossos sonhos de frança nunca iriam a lado algum, não sabíamos quem nos traficaria em segurança e, honestamente, não tínhamos suborno que se visse e, pior ainda, não havia coragem para entrar matos adentro e a laura acabara de engravidar novamente. não podíamos ir a salto para frança, como não podíamos correr risco algum de que aquela nova criança padecesse também, quando a laura pariu, torturada de expectativas, a nossa elisa nasceu na felicidade e na frustração, podias ser francesa, elisa. podias ter sido francesa, embora nos dê um orgulho tão grande a resistência que te permitiu ser portuguesa e, assim, herdar portugal. portugal é teu, minha filha, é teu, mesmo assim difícil de compreender.



(*) À publicação desta obra, o autor ainda só usava letras minúsculas, inclusive em seu nome. Contrariamo-lo no título do texto, por padrão do blog.



(a máquina de fazer espanhóis)



(Ilustração: Paula Rego)


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