Dói-me mais assistir ao envelhecimento dos meus pais do que me confrontar no espelho dos dias com minha própria decadência. A velhice dos meus pais me parece um ultraje à própria vida. Quando falo da velhice estou a pensar no retrato que Jacques Brel fez dela numa belíssima canção, “Les Vieux”, que tantas vezes me visita enquanto tento adormecer:
“Les vieux ne bougent plus
Leurs gestes ont trop de rides
Leur monde est trop petit.
Du lit à la fenêtre
Puis du lit au fauteuil et puis
du lit au lit.”
Com perdão pela má tradução: “Os velhos não se mexem mais / Os seus gestos têm muitas rugas / o seu mundo é pequeno // Da cama à janela / depois da cama ao cadeirão / e depois da cama à cama.”
Pais não deviam envelhecer. Ao menos, os bons pais. Aliás, a velhice deveria ser um castigo destinado exclusivamente às pessoas más. Cada vez que alguém cometesse uma maldade, receberia uma ruga, seis ou sete cabelos brancos, e depois cefaleias, artrites, reumatismo, incontinência urinária, impotência e declínio cognitivo. Dentes cairiam (como minha avó ameaçava) a cada vez que mentíssemos; enfim, dependendo da gravidade das mentiras. Os canalhas, e só os canalhas, sofreriam de tremores e crescentes lapsos de memória.
Um mundo organizado dessa maneira evitaria inúmeros equívocos e dificultaria a ascensão política dos muito maus. Por exemplo, os bolsonaros seriam todos velhíssimos e desdentados, não se distinguindo os filhos do pai. É verdade que seria difícil discernir neles as consequências de certos castigos, como o declínio cognitivo. Há defeitos que não é possível piorar.
Voltando ao envelhecimento dos pais, talvez a aflição seja maior porque nos habituamos a olhar para eles como super-heróis, imunes à corrosão do tempo, e às fragilidades, defeitos e erros das pessoas comuns.
Minha mãe sabia de cor as datas de aniversário não só dos filhos e netos, mas de todos os sobrinhos, afilhados, primos e restantes parentes. Também sabia o número de telefone de todos nós. Depois que sofreu um AVC (gravíssimo) esqueceu tudo isso, e até o nome de muitos parentes, embora ainda seja capaz de declamar os sonetos mais famosos de Luís de Camões.
Enquanto o meu pai sempre manifestou extremo horror por todo o tipo de novas tecnologias, minha mãe ganhou, já depois dos 80 anos, grande intimidade com computadores e redes sociais. Fanática de scrabble, participava em competições on-line. Contudo, depois que adoeceu, tornou-se incapaz de trabalhar com o laptop, e o meu pai, já bem velhinho, inscreveu-se num curso de informática, apenas para que ela pudesse continuar a se comunicar todos os dias com os filhos e netos, através do Skype e outras ferramentas. Hoje, é ele quem se lembra dos aniversários da família.
Minha mãe perdeu a memória, perdeu os movimentos, mas não perdeu o sorriso e a bondade. Também meu pai não tem mais a energia de antigamente. Já não vai todos as manhãs ao quintal tratar das roseiras, e colher rosas para oferecer à minha mãe. Cerca-a, contudo, de pequenos gestos de ternura.
“A velhice é uma merda”, dizia Jorge Amado. E é. Mas nem ela consegue degradar o coração dos super-heróis.
(Ilustração: Donald Soffritti: superheroes - Batman e Robin)
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