quinta-feira, 21 de julho de 2022

ACORDO COM A BOCA ILUMINADA, de Luiza Nilo Nunes

 




Acordo com a boca iluminada pelas pérolas da morte

e o meu sorriso é uma sinistra floração,

impetuosa gargalhada a atravessar a eternidade



Acordo inteira para o luto das manhãs

como um fresquíssimo cadáver,

com este corpo de mulher a rodear-se de corais

e esta cabeça baptismal que se levanta finalmente das águas



Quando as ervas amanhecem sobre a casa

e os galos sangram sobre as fúnebres artérias do meu sopro

Quando as larvas adoecem a roseira do outono

e a luz estala por mistério sob a língua

Ou quando range bruscamente este infecundo coração

eu quero apenas sucumbir sobre o teu rosto de

rapaz evaporado entre flores,

alvorecer em tuas mãos como um junquilho

e atravessar sobre um cavalo muito negro as regiões

bombardeadas do teu sono

onde despontam as amoras dos defuntos



Por vezes tenho aves esmagadas sob as plantas dos pés

Por vezes sofro e apodreço como um anjo

vascular,

um animal renunciando sobre a neve

e só levanto quando o sol é um batimento de chicotes,

uma lâmpada enfiada nos pulmões,

um flash branco a impregnar-se nos meandros dolorosos

dos ossos



Por vezes posso ouvir-te do outro lado da parede tumular

Posso escutar-te quando as águas estremecem

Quando à sombra já fraqueja o veio amargo do sorriso

ou quando à boca desaguam sangradouros,

bandos lívidos de pombos que debicam os nossos

sexos por baixo

e nos descarnam os espíritos

— Os peitos que inauguram o amor dessas crianças

em exílio, que aceleram o bater de uma

cardíaca necrose



Mas à hora em que as cortinas esvoaçam

e os quartos ardem como altíssimas fogueiras em seus

haustos menstruados

e um ar velado purifica as nossas carnes de penumbra

e em minha pele há um registro de perfume,

tu és o homem que fervilha para sempre sob a luz dos girassóis,

o gémeo morto que acendeu os olhos

bíblicos dos pássaros



E é de lacre esta pulseira que nos cola e ossifica os tornozelos

Esta corrente em vibração subcutânea

Este cordão umbilical que nos uniu pelos canais

apodrecidos das gargantas

e costurou eternamente as nossas línguas,

uma à outra,

até que ardêssemos à sombra de abajures fascinados

como um monstro a quem chamaram

bicéfalo



(Ilustração: Catherine Abel - cubist nude orange and purple)

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