No primeiro contato entre a tropa de Cortez e os índios, os espanhóis declaram (hipocritamente) que não buscam a guerra, e sim a paz e o amor; “não se deram ao trabalho de responder com palavras, mas fizeram-no com uma nuvem de flechas” (Cortez, 1). Os índios não se dão conta de que as palavras podem ser uma arma tão poderosa quanto as flechas. Alguns dias antes da queda da Cidade do México, a cena se repete: às propostas de paz formuladas por Cortez, na verdade já vencedor, os astecas respondem obstinadamente: “Por isso não voltem a falar de paz, pois as palavras são para as mulheres e as armas são para os homens!” (Bernal Diaz, 154).
Esta repartição das funções não é fortuita. Pode-se dizer que a oposição guerreiro/mulher com papel estruturador no imaginário social asteca como um todo. Embora várias opções se apresentem para o jovem em busca de uma profissão (soldado, sacerdote, mercador), sem dúvida a carreira de guerreiro é a mais prestigiosa de todas. O respeito pela palavra não chega a erigir os especialistas do discurso acima dos chefes guerreiros (o chefe de estado combina as duas supremacias, pois é simultaneamente guerreiro e sacerdote). O soldado e o macho por excelência, pois tem o poder de dar a morte. As mulheres, geradoras, não podem aspirar a esse ideal; todavia, as ocupações e atitudes delas não constituem um segundo polo valorizado da axiologia asteca; não se surpreendem com a fraqueza das mulheres, mas nunca a elogiam. E a sociedade trata de fazer com que ninguém ignore seu papel: no berço do recém-nascido colocam-se, se for menino, uma espadinha e um escudinho, e se for menina, utensílios para tecelagem.
A pior coisa que se pode fazer com um homem é chamá-lo de mulher; em certa ocasião os guerreiros adversários são obrigados a se vestirem com roupas de mulher, por não terem aceito o desafio que lhes tinha sido feito ao combate. Vemos também que as mulheres assumem essa imagem (de origem masculina, suspeitamos), e elas mesmas contribuem para manter essa oposição, atacando os jovens que ainda não se distinguiram nos campos de batalha assim: ‘De fato, aquele dos longos cabelos trançados também fala! Falas realmente? (…) Tu, com esse topete fedorento, empesteado, não serás apenas uma mulher como eu?”. E o informante de Sahagun acrescenta: “Na verdade, com esse tormento as mulheres podiam incitar os homens à guerra; assim, obrigavam-nos a agir e provocavam-nos; assim as mulheres impeliam-nos a batalha” (CF, II, 23).
Tovar conta uma cena reveladora, da época da conquista, onde Cuauhtemoc, encarnação dos valores guerreiros, ataca Montezuma, assimilado às mulheres, devido a sua passividade. Montezuma fala a seu povo do terraço do palácio onde é mantido prisioneiro pelos espanhóis. “Mal terminara e um valoroso capitão, de dezoito anos, chamado Cuauhtemoc, que já queriam eleger rei, diz em voz alta: ‘Que diz esse covarde do Montezuma, essa mulher dos espanhóis, porque é esse o nome que podemos dar a ele, já que se entregou a eles como uma mulher, por medo, deixando-nos com os pés e mãos atados, atraiu sobre nós todos esses males” (Tovar, pp. 81-2).
Às mulheres as palavras, aos homens as armas… O que os guerreiros astecas não sabiam é que as “mulheres” ganhariam a guerra; apenas no sentido figurado, é verdade: no sentido próprio, as mulheres foram e são as perdedoras de todas as guerras. Contudo, talvez a assimilação não seja completamente fortuita: o modelo cultural que se impõe a partir do Renascimento, apesar de ser introduzido e assumido por homens, glorifica o que se poderia chamar de vertente feminina da cultura: a improvisação em lugar do ritual, as palavras em lugar das flechas. Mas não quaisquer palavras: nem as que designam o mundo e nem as que transmitem as tradições, e sim aquelas cuja razão de ser é a ação sobre outrem. A guerra. aliás, não passa de outro campo de aplicação dos mesmos princípios da comunicação servíveis em tempo de paz; logo, encontramos nela comportamentos semelhantes diante da escolha oferecida em cada caso. Pelo menos no início, os astecas conduzem uma guerra que está submetida à atualização e ao cerimonial: o tempo, o lugar, o modo, são previamente decididos, o que é mais harmonioso, porém menos eficaz. “Era costume geral em todas as cidades e todas as províncias deixar, nos limites extremos de cada uma, uma larga faixa de terra deserta, inculta para suas guerras’ (Motolinia, III, 18). O combate tem hora certa para começar e para acabar.
O objetivo do combate não é tanto matar, mas fazer prisioneiros (o que favorece claramente os espanhóis). A batalha começa com um primeiro envio de flechas. “Se as flechas não ferissem ninguém, e o sangue não corresse, retiravam-se como podiam, pois viam nisso um presságio seguro de que a batalha acabaria mal para eles” (Motolinia, “Carta de Introdução”).
Encontramos outro exemplo marcante dessa atitude atual pouco antes da queda da Cidade do México: tendo esgotado todos os outros recursos, Cuauhtemoc decide empregar a arma suprema. O que é? A magnifica roupa emplumada, herdada de seu pai, roupa a qual se atribuía a capacidade misteriosa de fazer o inimigo fugir por sua simples aparição; um valente guerreiro será vestido com ela e lançado contra os espanhóis. Mas as penas de quetzal não trazem a vitória aos astecas (cf. C’F XII, 38).
Assim como há duas formas de comunicação, há duas formas de guerra (ou dois aspectos da guerra, um valorizado aqui e outro lá). Os astecas não concebem e não compreendem a guerra total de assimilação que os espanhóis estão fazendo contra eles (inovando em relação a sua própria tradição); para eles, a guerra deve acabar num tratado, estabelecendo o montante dos tributos que o perdedor deverá pagar ao vencedor. Antes de ganhar a partida, os espanhóis já tinham obtido uma vitória decisiva: a que consiste em impor seu próprio tipo de guerra; a superioridade deles já não é mais posta em dúvida. Atualmente, temos dificuldade em imaginar uma guerra que seja regida por outro princípio que não a eficácia, apesar de a parte do rito não estar completamente morta: os tratados que punem o uso de armas bacteriológicas, químicas ou atômicas são esquecidos no dia em que a guerra é declarada. E, no entanto, era exatamente assim que Montezuma entendia as coisas.
(A conquista da América - a questão do outro; tradução de Beatriz Perrone Moisés)
(Ilustração: Arte azteca - plumas, foto da internet, autoria não identificada)
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