A Grande Falácia Beethoven existe em vários formatos. Peter e Jean Medawar (o primeiro ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1960), em Life Science, atribuem a versão a seguir a Norman St. John Stevas (hoje lorde St. John), um membro do Parlamento britânico e proeminente leigo da Igreja Apostólica Romana. Ele, por sua vez, pegou-a de Maurice Baring (1874-1945), um destacado convertido à Igreja Católica e ligado aos vigorosos católicos G. K. Chesterton e Hilaire Belloc. Ele a encenou na forma de um diálogo hipotético entre dois médicos.
"Sobre a interrupção da gravidez, quero sua opinião. O pai era sifilítico, a mãe tuberculosa. Das quatro crianças que nasceram, a primeira era cega, a segunda morreu, a terceira era surda-muda e a quarta também era tuberculosa. O que você teria feito?"
"Eu teria interrompido a gravidez."
"Então você teria assassinado Beethoven."
A internet está coalhada de chamados sites pró-vida que repetem essa história ridícula, e mudam as premissas factuais sem pudores. Aqui está outra versão: "Se você conhecesse uma mulher que estivesse grávida, que já tivesse oito filhos, sendo que três deles eram surdos, dois eram cegos, um com deficiência mental (tudo porque ela tinha sífilis), recomendaria que ela fizesse um aborto? Então você teria matado Beethoven". Essa apresentação da lenda rebaixa o grande compositor de quinto a nono na ordem de nascimento, aumenta o número de surdos para três e o número de cegos para dois, e dá a sífilis à mãe em vez de ao pai. A maioria dos 43 sites que encontrei quando procurei versões da história a atribui não a Maurice Baring, mas a um certo professor L. R. Agnew da Faculdade de Medicina da UCLA, que, diz-se, propôs o dilema aos alunos e depois lhes disse: "Parabéns, vocês acabaram de assassinar Beethoven". Podemos ser caridosos e dar a L. R. Agnew o benefício de duvidar de sua existência - é incrível como essas lendas urbanas nascem. Não consigo descobrir se foi Baring que deu origem à lenda ou se ela foi inventada antes.
Porque inventada certamente ela foi. É completamente falsa. A verdade é que Ludwig van Beethoven não era nem o nono nem o quinto filho de seus pais. Era o mais velho - em termos estritos, o segundo, mas seu irmão mais velho morreu pequeno, como era comum naquela época, e não era, pelo que se sabe, nem cego nem surdo nem mudo nem tinha deficiência mental. Não há evidências de que algum de seus pais tenha tido sífilis, embora seja verdade que sua mãe morreu de tuberculose. Havia muita tuberculose naqueles tempos.
Trata-se, na verdade, de uma lenda urbana completa, uma fabricação, deliberadamente disseminada por gente com interesses velados em espalhá-la. Mas, de qualquer maneira, o fato de que ela seja mentira não vem ao caso. Mesmo que fosse, o argumento que deriva dela é um argumento muito ruim. Peter e Jean Medawar não precisaram duvidar da veracidade da história para apontar a falácia do argumento: "O raciocínio por trás desse argumentozinho horrível é falacioso de tirar o fôlego, pois, a menos que se esteja sugerindo que haja alguma conexão causal entre o fato de ter uma mãe tuberculosa e um pai sifilítico e o nascimento de um gênio da música, é mais provável que o mundo seja privado de um Beethoven não por um aborto, mas pela abstinência casta de relações sexuais". O descarte lacônico e ridicularizante dos Medawar é irrespondível (para tomar emprestada a trama de um dos contos negros de Roald Dahl, uma decisão igualmente fortuita de não fazer um aborto, em 1888, deu-nos Adolf Hitler). Mas é preciso um bocadinho de inteligência - ou talvez estar livre de certo tipo de criação religiosa - para entender. Dos 43 sites "pró-vida" da internet que citam alguma versão da lenda de Beethoven e que apareceram na minha busca no Google, no dia em que escrevi (+ ou - 2006), nenhum notou a falta de lógica do argumento. Todos (eram todos sites religiosos, por sinal) caíam direitinho na falácia. Um deles até reconhecia Medawar (grafado Medavvar) como fonte. Essa gente queria tanto acreditar numa falácia adequada a sua fé que nem percebeu que Medawar só tinha citado o argumento para derrubá-lo.
Como apontaram com toda a razão os Medawar, a conclusão lógica para o argumento do "potencial humano" é que potencialmente privamos uma alma humana do dom da existência toda vez que deixamos de aproveitar uma oportunidade para manter relações sexuais. Toda recusa a qualquer oferta de cópula por um indivíduo fértil equivale, por essa lógica "pró-vida" capenga, ao assassinato de uma criança em potencial. Até mesmo resistir a um estupro poderia ser representado como assassinar um bebê em potencial (e, aliás, há um monte de ativistas "pró-vida" que negariam o aborto até a mulheres vítimas de estupros brutais). O argumento Beethoven é, como se pode ver, lógica de péssima qualidade. Sua estupidez surreal é bem resumida pela esplêndida canção "Todo espermatozoide é sagrado", cantada por Michael Palin, com coro de centenas de crianças, no filme do Monty Python O sentido da vida (se você não viu, por favor veja). A Grande Falácia Beethoven é um exemplo típico da confusão lógica em que entramos quando nossa cabeça está confusa pelo absolutismo inspirado pela religião.
(Deus, um delírio; tradução de Fernanda Ravagnani)
(Ilustração:Beethoven after the portrait by Joseph W. Mahler)
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