domingo, 24 de janeiro de 2021

METÁFORAS SOBRE ONDE CANTA O SABIÁ, de Everardo Norões

 



Numa conversa sobre a importância do trabalho do escritor fora de seu "lugar", veio o mote: Onde canta o sabiá.

Esse mote sugere duas metáforas: a primeira refere-se a um exílio consentido por lembrar o conhecido poema de Gonçalves Dias, repetido nas escolas à época da ditadura do Estado Novo. A segunda, a da letra de Chico Buarque.

Gonçalves Dias não é um proscrito. Vai estudar em Coimbra, para onde eram encaminhados os que viriam a ser os letrados da época. O sabiá do Chico Buarque diz respeito aos anos 1970. É obrigado a fugir da gaiola.

Ao contrário de Gonçalves Dias, Chico Buarque deve ter tido o sentimento de alguém fora de um lugar que considera seu e para o qual não sabe se vai voltar.

Para o escritor, qualquer uma dessas situações desemboca numa indagação:

Qual o “lugar” do texto?

Toda existência supõe relação com locais onde vivemos, com pessoas que nos deixaram luzes ou cicatrizes. São artefatos armazenados nas estantes de nossa memória. Literatura é ficção. Ao mesmo tempo, é reconstrução do mundo da experiência. Movimenta personagens de um romance, ergue os andaimes de um poema. Ela está sempre diante de dois espelhos: um, o que reflete a realidade; outro, o que revela a fantasia. A construção de um lugar dentro da escrita, mesmo fictício, também desvenda novas alternativas ao existir, o que resulta numa forma de utopia, que pode ser chamada a "utopia do texto".

Por isso, o desterro é, ao mesmo tempo, o lugar da metáfora e a metáfora do lugar. E o essencial, para o escritor, sobretudo o poeta, é como essa metáfora toma forma.

Primeiro, ele busca descobrir o que passa despercebido.

Intitulei um de meus livros Poeiras na réstia. É uma imagem que traduz esse pensamento. Numa casa de telha-vã, um furo produzido pelo vento ou pela passagem de algum bicho deixa-se filtrar por um raio de sol.

A luz forte do sol ofusca, queima. Mas, através da fresta, podemos observar partículas microscópicas navegando na réstia.

É possível perceber a poeira da casa: o mínimo, o minúsculo.

O artista consegue observar através desse fiapo de luz porque está munido de uma espécie de antena.

Ele se sente tocado por alguma coisa que se assemelha a um fulgor ou espanto. Às vezes, um duende. Então, trabalha sua matéria-prima para nos desvelar uma obra susceptível de transmudar a tristeza ou o desassossego em algo que eleva ou consola.

No momento em que Picasso se depara com um guidom de bicicleta e o transforma numa cabeça de touro, essa cabeça de touro sofre uma metamorfose. E, de repente, passa a ser a própria imagem da Espanha.

Também o escritor se serve dessa aptidão para captar a aura que percebe em torno de circunstâncias ou de coisas. Em seguida, ele as transfigura de tal jeito que elas nunca mais serão vistas da mesma maneira.

Se o escritor possui uma antena assim, pouco importa o lugar onde se encontre. Pode ser uma sala, pode ser um país.

Ernest Hemingway andou pelo mundo de seu século enfrentando guerras e bichos. Giacomo Leopardi, enclausurado e doentio, quase nunca abandonou seu castelo de Recanati. Mas foi ali que escreveu o Zibaldone e compôs Il infinito, um dos mais preciosos poemas da literatura.

O escritor até pode "edificar" sua própria cidade com andaimes e tijolos imaginários. Assim o fez Juan Carlos Onetti, ao erguer sua Santa María, do romance Juntacadaveres. E, ao lermos Borges, ficamos com a sensação de que seu universo era uma biblioteca. Até poderíamos concluir que há uma espécie de livro a brotar de outros livros.

Além dessa matéria-prima, além dessa antena, a conversa em torno do Onde canta o sabiá acabou por escorrer para a importância do “lugar” na literatura. Esses “lugares” podem ser vários. Pois, no fundo, são apenas suportes onde ocorreram nossas vivências, aquelas que acabam por tecer uma espécie de colcha de retalhos. Há passagens que nos marcam mais do que um simples endereço. São esses contatos, aproximações, que nos levam a outras culturas, à apreensão de contextos estrangeiros. Quem sabe, nem tanto "estrangeiros", na medida em que são próximos de nós por serem, quase sempre, manifestações dos repetitivos acontecimentos humanos.

Num conto publicado no livro Entre moscas e na revista Granta, escrevi algo assim: "Quando alguém emigra, carrega sempre algum sabor estrangeiro: fruta invisível que contamina a língua para sempre. Um cheiro que fica encoberto por outros odores. A exemplo do sabor da goiabada com queijo ou do cheiro dos pequis".

Se me perguntassem sobre qual o meu “lugar”, diria que ele é múltiplo. Talvez por isso não me considere apenas da cidade onde demorei mais tempo. Apenas a observo como quem olha um rio cortando-lhe a carne feito um gume de navalha. Mesmo assim, em nós permanece o reflexo de tudo o que testemunhamos em nosso passear humano, num mundo do qual somos fragmentos. Donde, o poema:

Fractais


Pelo mergulho

das sombras,

calculo

o itinerário da luz.

Meço

os contornos de nossas ruínas

na matemática particular

dos desesperos.

Abro a janela

da página do sonho:

soletro, devagar, o Aywu rapitá:

o ser do ser da palavra,

(flor pronunciada

entre as estrelas).



A noite

desaba sobre as telhas

na explosão de um meteoro.

Conto estilhaços,

recomponho parábolas:

um mínimo do que sou

lembra as fronteiras

do Universo.


O humano não tem fronteiras.

As culturas acabam sempre por derrubar os muros que lhes são impostos. Por isso, o artista, o escritor, nunca está fora do lugar. Seu país é o de dentro, onde encontra o fermento de seu ofício.

Apesar de seu trabalho ser o de dentro, tampouco é mais importante do que outro trabalho.

Coincido com a observação do gênio instigante de Roberto Arlt (que rompeu com o preciosismo da gramática para dar mais luz ao romance argentino), quando observa que a diferença entre o pedreiro que constrói casas e o fabricante de livros é que livros não são tão úteis quanto as casas. E o fabricante de casas não é tão vaidoso quanto o escritor!



(Ilustração: Valery Koroshilov - writer Michail Shishkin)



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