“Jamais gostei tanto de uma mulher, de um irmão, de um amigo, como gostei de Febo. Era um cão igual a mim. E foi para ele que escrevi as páginas afetuosas de “Um Cão Igual a Mim”. Era um ser nobre, a mais nobre criatura que encontrei na minha vida. Pertencia àquela rara e delicada família dos galgos, vindos das terras da Ásia...
A sua pele era cor da lua, rosa e dourada, a cor da lua sobre o mar, a cor da lua sobre as escuras e brilhantes folhas dos limoeiros e das laranjeiras, sobre as escamas de peixes mortos que o mar, depois das tempestades, deixava no litoral, diante da porta da minha casa...
Jamais se afastava de mim um passo que fosse. Seguia-me como um cão. Digo que me seguia como um cão...
Dele, muito mais que dos homens e da sua cultura, e da sua vaidade, aprendi que a moral é gratuita, que é um fim em si mesma, que não pretende nem sequer salvar o mundo (nem sequer salvar o mundo!), mas unicamente inventar sempre novos pretextos para o seu desinteresse, para o seu livre exercício. O encontro de um homem e de um cão é sempre o encontro de dois espíritos livres, de duas formas de dignidade, de duas morais gratuitas...
Um dia saiu e não voltou mais. Esperei-o até ao fim da tarde e, caída a noite, corri pelas ruas chamando-o pelo nome...
Levei a manhã a correr de canil em canil, e finalmente um tosqueador, numa lojeca próxima perguntou-me se eu estivera na Clínica Veterinária da Universidade, onde os ladrões de cães vendem, por pouco dinheiro, os animais destinados a experiências clínicas...
Quando entramos, todos os cães nos olharam, fitando-nos com uma expressão implorativa e, simultaneamente, carregada de uma atroz suspeita: seguiam com o olhar cada gesto nosso e, tremendo, espiavam-nos as bocas...
De repente vi Febo.
Estava estendido sobre o lombo, o ventre aberto, uma sonda mergulhada no fígado. Olhava-me fixamente e tinha os olhos cheios de lágrimas. Mostrava no olhar uma maravilhosa doçura. Respirava levemente, com a boca entreaberta, sacudido por um tremor horrível. Olhava-me fixamente, e uma dor atroz roía-me por dentro. “Febo”, disse eu em voz baixa. E Febo olhou-me com uma maravilhosa doçura nos olhos. Eu vi Cristo nele, vi Cristo nele crucificado, vi Cristo que me olhava com os olhos cheios de uma doçura maravilhosa. “Febo”, disse eu em voz baixa, curvando-me para ele, acariciando-lhe a testa. Febo beijou-me a mão e não soltou um gemido.
O médico aproximou-se, pegou-me no braço:
- Não posso interromper a experiência – disse. – É proibido. Mas por sua causa... dou-lhe uma injecção. Não sofrerá.
Tomei a mão do médico entre as minhas mãos e disse, com as lágrimas a descerem-me pelo rosto:
- Jure-me que não sofrerá.
- Ficará a dormir para sempre - assegurou o médico. - Desejaria que a minha morte fosse tão suave como a dele.
- Fecharei os olhos. Não quero vê-lo morrer. Mas trabalhe depressa, trabalhe depressa! - respondi.
- Um momento só - disse o médico e afastou-se sem ruído, deslizando no oleado. Foi ao fundo da sala, abriu o armário.
Eu fiquei de pé diante de Febo; tremia horrivelmente, as lágrimas sulcavam-me o rosto. Febo olhava-me fixamente e nem o mais leve gemido lhe saía da garganta, olhava-me fixamente com uma maravilhosa doçura nos olhos. Também os outros cães, estendidos sobre o lombo, nos seus berços, me olhavam fixamente, com a mesma maravilhosa doçura nos olhos, e nem o mais leve gemido lhes saía das gargantas.
De repente, um grito de pavor saiu-me do peito:
- Por que este silêncio? - gritei - Que é este silêncio?
Era um silêncio horrível. Um silêncio imenso, glacial, morto, um silêncio de neve.
O médico aproximou-se com uma seringa na mão:
- Antes de os operarmos - explicou - cortamos-lhes as cordas vocais.
(A pele; tradução de Alexandre O’Neil)
(Ilustração: Mark Barone)
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