Desde os tempos da conquista e da escravidão, aos índios e aos negros foram roubados os braços e as terras, a força de trabalho e a riqueza; e também a palavra e a memória. No Rio da Prata, quilombo significa bordel, caos, desordem, degradação, mas esta expressão africana, no idioma banto, quer dizer campo de iniciação. No Brasil, quilombos foram os espaços de liberdade fundados selva adentro pelos escravos fugitivos. Alguns desses santuários resistiram durante muito tempo. Um século inteiro durou o reino livre de Palmares, no interior de Alagoas, que resistiu a mais de trinta expedições militares dos exércitos da Holanda e de Portugal. A história real da conquista e da colonização das Américas é uma história da dignidade incessante. Não houve nenhum dia sem rebelião em todos os anos daqueles séculos, mas a história oficial apagou quase todas essas revoltas, com o desprezo que merecem os atos de má conduta da mão de obra. Afinal, quando os negros e os índios se negavam a aceitar a escravidão e o trabalho forçado como destino, estavam cometendo delitos de subversão contra a organização do universo. Entre a ameba e Deus, a ordem universal se organiza numa longa cadeia de subordinações sucessivas. Assim como os planetas giram em torno do sol, devem girar os servos ao redor dos senhores. A desigualdade social e a discriminação racial integram a harmonia do cosmo desde os tempos coloniais. E assim continua sendo, e não só nas Américas. Em 1995, Pietro Ingrao fazia tal constatação na Itália: “Tenho uma empregada filipina em casa. Que estranho. É difícil aceitar a ideia de que uma família filipina tenha em sua casa uma empregada branca.”
Nunca faltaram pensadores capazes de elevar a categoria científica os preconceitos da classe dominante, mas o século XIX foi pródigo na Europa. O filósofo Auguste Comte, um dos fundadores da sociologia moderna, acreditava na superioridade da raça branca e na perpétua infância da mulher. Como quase todos os seus colegas, Comte não tinha dúvidas sobre este princípio universal: são brancos os homens aptos a exercer o mando sobre os condenados às posições subalternas.
Cesare Lombroso tornou o racismo uma questão policial. Este professor italiano, que era judeu, quis demonstrar a periculosidade dos selvagens primitivos através de um método muito semelhante ao que Hitler utilizou, meio século depois, para justificar o antissemitismo. Segundo Lombroso, os delinquentes nasciam delinquentes, e os sinais de animalidade que os denunciavam eram os mesmos sinais peculiares aos negros africanos e aos índios americanos descendentes da raça mongoloide. Os homicidas tinham pômulos largos, cabelo crespo e escuro, pouca barba, grandes caninos; os ladrões tinham nariz achatado; os violadores, pálpebras e lábios grossos. Como os selvagens, os criminosos não ruborizavam, o que lhes permitia mentir descaradamente. As mulheres, sim, ruborizavam, mas Lombroso descobriu que “até as mulheres consideradas normais têm sinais criminaloides”. Também os revolucionários: “Nunca vi um anarquista de rosto simétrico”.
Herbert Spencer situava no império da razão as desigualdades que, hoje em dia, são leis do mercado. Embora passado mais de um século, algumas de suas certezas parecem atuais em nossa era neoliberal. Segundo Spencer, o Estado devia colocar-se entre parênteses, para não interferir nos processos de seleção natural que dão o poder aos homens mais fortes e mais bem dotados. A proteção social só servia para aumentar o enxame de desocupados e a escola pública procriava descontentes. O estado devia limitar-se a instruir as raças inferiores em ofícios manuais e a mantê-las longe do álcool.
Como costuma ocorrer com a polícia em suas batidas, o racismo encontra o
que ele mesmo põe. Até os primeiros anos do século XX ainda estava na moda pesar cérebros para medir a inteligência. Esse método científico, sobre proporcionar obscena exibição de massas encefálicas, demonstrou que os índios, os negros e as mulheres tinham cérebros bem menos pesadinhos. Gabriel René Moreno, a grande figura intelectual do século passado na Bolívia, já havia constatado, balança na mão, que o cérebro indígena e o cérebro mestiço pesavam entre cinco, sete e dez onças menos do que o cérebro de raça branca. Na relação com a inteligência, o peso do cérebro tem a mesma importância que o tamanho do pênis na relação com o desempenho sexual, ou seja: nenhuma. Mas os homens da ciência andavam à caça de crânios famosos e não se abatiam, apesar dos resultados desconcertantes de suas operações. O cérebro de Anatole France, por exemplo, pesou a metade do que pesou o de Ivan Turgueniev, embora os mérito literários de ambos fossem considerados parelhos...
Há um século, Alfred Binet inventou em Paris o primeiro teste de coeficiente intelectual, com o saudável propósito de identificar as crianças que, nas escolas, precisassem de maior auxílio do professor. O próprio inventor foi o primeiro a advertir que tal instrumento não servia para medir a inteligência, que não pode ser medida, e que não devia ser usado para desqualificar ninguém. Mas, já em 1913, as autoridades norte-americanas impuseram o teste de Binet às portas de Nova York, bem perto da Estátua da Liberdade, aos recém-chegados imigrantes judeus, húngaros, italianos e russos, concluindo que, em cada dez imigrantes, oito tinham uma mente infantil. Três anos depois, as autoridades bolivianas aplicaram o mesmo teste nas escolas públicas de Potosí: oito de cada dez crianças eram anormais. E desde então, até nossos dias, o desprezo racial e social continua invocando o valor científico das aferições do coeficiente intelectual, que tratam as pessoas como se fossem números. Em 1994, o livro The bell curve teve um espetacular sucesso de vendas nos Estados Unidos. A obra, escrita por dois professores universitários, proclamava sem papas na língua o que muitos pensam mas não se atrevem a dizer, ou dizem em voz baixa: os negros e os pobres tem um coeficiente intelectual inevitavelmente menor do que os brancos e os ricos, por herança genética, e portanto o dinheiro empregado em sua educação e em assistência social é dinheiro jogado pela janela. Os pobres, e sobretudo os pobres de pele negra, são burros, e não são burros porque são pobres, mas pobres porque são burros.
O racismo só reconhece a força de evidência de seus próprios preconceitos. Está provado que, para os pintores e escultores mais famosos do século XX, a arte africana foi fonte primordial de inspiração e muitas vezes objeto de plágio descarado. Também parece indubitável que os ritmos de origem africana estão salvando o mundo de morrer de tristeza ou de tédio. O que seria de nós sem a música que veio da África e gerou novas magias no Brasil, nos Estados Unidos e nas costas do Mar do Caribe? No entanto, para Jorge Luis Borges, para Arnold Toynbee e para muitos outros importantes intelectuais contemporâneos, era evidente a esterilidade cultural dos negros.
Nas Américas, a cultura real é filha de várias mães. Nossa identidade, que é múltipla, realiza sua vitalidade criadora a partir da fecunda contradição das partes que a integram. Mas temos sido adestrados para não nos enxergarmos. O racismo, que é mutilador, impede que a condição humana resplandeça plenamente com todas as suas cores. A América continua doente de racismo: de norte a sul, continua cega de si mesma. Nós, os latino-americanos da minha geração, fomos educados por Hollywood. Os índios eram uns tipos de catadura amargurada, emplumados e pintados, mareados de tanto dar voltas ao redor das diligências. Da África, só sabemos o que nos ensinou o professor Tarzan, inventado por um romancista que nunca esteve lá.
As culturas de origem não europeia não são culturas, mas ignorâncias, úteis, no melhor dos casos, para comprovar a impotência das raças inferiores, atrair turistas e dar a nota típica nas festas de fim de curso ou nas datas pátrias. Na verdade, a raiz indígena ou a raiz africana, e em alguns países as duas ao mesmo tempo, florescem com tanta força como a raiz europeia nos jardins da cultura mestiça. São evidentes seus frutos prodigiosos, nas artes de alto prestígio e também nas artes que o desprezo chama de artesanato, nas culturas reduzidas ao folclore e nas religiões depreciadas como superstição. Essas raízes, ignoradas mas não ignorantes, nutrem a vida cotidiana de gente de carne e osso, embora muitas vezes as pessoas não saibam ou prefiram não saber, e estão vivas nas linguagens que a cada dia revelam o que somos através do que falamos e do que calamos, em nossas maneiras de comer e de cozinhar o que comemos, nas músicas que dançamos, nos jogos que jogamos e nos mil e um rituais, secretos ou compartilhados, que nos ajudam a viver.
(De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso; tradução de José Guadalupe Posada)
(Ilustração: Diego Rivera)
Nenhum comentário:
Postar um comentário