sábado, 6 de julho de 2019

AS DORES DO ÓPIO, de Thomas de Quincey






Como quando algum grande pintor molhar 

Seu pincel na obscuridade do terremoto ou do eclipse. 



Shelley, em Revolt of Islam 



Ao leitor que me acompanhou até tão longe, peço atenção para uma breve explicação sobre três pontos: 

1 – Por diversas razões, não fui capaz de compor as notas desta parte da minha narrativa de uma maneira regular e concatenada. 

Apresento-as separadas como as encontrei ou tiradas neste momento da memória. Algumas delas têm sua própria data; outras eu mesmo datei, e algumas estão sem data. Sempre que correspondia ao meu propósito retirá-las da ordem natural e cronológica, não tive escrúpulos de fazê-lo. Algumas vezes falo no presente e outras vezes no passado. Poucas notas foram escritas exatamente no tempo que elas relatam, mas isso pouco afeta sua exatidão, pois as impressões foram tão intensas que jamais se apagarão de minha memória. Muito foi omitido. Não pude, apesar de todos os esforços, conter-me na tarefa de recordar, ou construir numa narrativa regular, todo o fardo de horrores que se esconde em minha mente. Por esse sentimento peço desculpas, mas devo explicar que, agora que estou em Londres, sou uma pessoa sem ajuda que mal pode arrumar sozinha seus próprios papéis, e não tenho mais as mãos que costumam realizar para mim o trabalho de secretária. 

2 – O leitor pensará, talvez, que sou confidente e comunicativo em demasia a respeito de minha história pessoal. Pode ser verdade. Mas a minha maneira de escrever é quase a mesma de pensar alto, seguindo meus próprios humores, em vez de considerar em demasia quem está me ouvindo; e se parar para pensar no que devo dizer a essa ou aquela pessoa, logo estarei em dúvida sobre se o que digo é realmente adequado. A verdade é que me coloco a uma distância de quinze a vinte anos à frente deste tempo, e imagino que estou escrevendo para aqueles que se interessarem por mim no futuro; e desejando gravar minha história, que ninguém além de mim pode conhecer, procuro fazer isso da melhor maneira que sou capaz, porque não sei se terei tempo de fazê-lo novamente. 

3 – Pode ocorrer-vos, leitor, perguntar por que não me livrei dos horrores do ópio abandonando-o ou diminuindo as doses. Responderei brevemente: pode-se supor que me deixei vencer muito facilmente pelo fascínio do ópio, mas não se pode supor que alguém se encante por seus horrores. O leitor, porém, esteja certo que fiz diversas tentativas para reduzir a quantidade. Acrescento que aqueles que testemunharam minhas angustiadas tentativas, e não eu próprio, eram os primeiros a me pedir que desistisse. Mas não poderia eu ter reduzido ao menos uma gota por dia, ou adicionado água, para diluir duas ou três vezes uma gota? Mas essa maneira certamente não teria funcionado. Esse é um erro comum entre aqueles que nada sabem da experiência do ópio; e pergunto àqueles que sabem se não é verdade que até um certo ponto o ópio ode ser reduzido com facilidade e até mesmo com prazer, e se não é menos verdade que, a partir daí, qualquer redução causará grande sofrimento? Sim, dizem muitas pessoas sem reflexões e que não sabem do que estão falando, irei sofrer de um pequeno mau humor e desânimo por alguns dias. Mas respondo que não, não há nada parecido com mau humor, pelo contrário, o humor simplesmente animal aumenta sensivelmente, o pulso melhora e assim também a saúde. Não é aí que estão os sofrimentos. Não há nenhuma semelhança com os sofrimentos causados pela renúncia ao vinho. É um estado de insuportável irritação do estômago (o que, convenhamos, não é bem um desânimo) acompanhada de intensa transpiração e sensações que não me atrevo a descrever sem mais espaço disponível. 

Entrarei agora in media res, e anteciparei, de um tempo em que minhas dores do ópio podiam ser consideradas em seu acmé, um relato dos seus efeitos paralisantes sobre as faculdades intelectuais. 

Meus estudos foram longamente interrompidos. Não consigo ler com prazer, e dificilmente em momentos de tranquilidade. Entretanto, de vez em quando leio em voz alta para o prazer de outros, porque a leitura é um dos meus talentos e, no sentido de talento como uma aquisição superficial e ornamental, quase o único que possuo. Antigamente, se tinha qualquer veleidade ligada a qualquer das minhas aquisições ou enriquecimentos, era com esse talento, pois observava que nenhuma perfeição era muito difícil. Atores são os piores leitores possíveis: - lê vilmente; e a famosa – não consegue ler nada bem além de composições dramáticas; nem Milton ela lê suportavelmente. As pessoas, em geral, ou leem poesias sem nenhuma paixão, ou então sobrepujam a modéstia da natureza e não leem como eruditos. Mais tarde, se me senti movido por alguma coisa dos livros foi pelas grandes lamentações de Samson Agonistes, ou pelas grandes harmonias dos satânicos discursos do Paradise Regained, quando lidos em voz alta para mim mesmo. Uma jovem senhora algumas vezes vinha tomar chá conosco: a seu pedido e ao de M. eu costumava ler os poemas de W [*] – (W. por sinal foi o único poeta que conheci que podia ler seus próprios poemas: com muita frequência ele lia admiravelmente). 

Por quase dois anos, acredito que só li um livro: e devo ao seu autor, em consequência de um grande débito de gratidão, mencionar que livro foi esse. Dos poetas mais apaixonados e sublimes ainda leio, como já disse, certas partes e ocasionalmente. Mas a minha verdadeira vocação, como eu bem sabia, era o exercício da compreensão analítica. Mas, na sua maioria, os estudos analíticos são contínuos e não devem ser perseguidos por acessos e esforços fragmentados. Matemática, por exemplo, e filosofia eram todas insuportáveis para mim. Com elas, era tomado por um sentimento de impotência e uma infantil falta de fibra que me causavam angústia ainda maior quando me lembrava dos tempos em que me agarrava a elas por simples prazer; e, por esta mesma razão, porque devotei todos os esforços da minha vida inteira, e dediquei o meu intelecto, flores e frutos, à lenta e elaborada ocupação de construir um único trabalho, ao qual pretendia dar o título de uma obra inacabada de Spinoza: De Emendatione Humani Intellectus. Isso está agora fechado, como que congelado, como alguma ponte espanhola ou aqueduto, numa escala grande demais para os recursos do arquiteto. E, em vez de sobreviver a mim como um monumento de desejos, ao menos -, de uma vida de trabalho dedicada à exaltação da natureza humana, naquela maneira que Deus melhor me criou para promover um objetivo tão grande, este trabalho resulta mais como um memorial de esperanças vencidas, ou esforços vãos, de materiais acumulados sem uso, de fundações feitas, mas que nunca poderiam suportar uma superestrutura – pesar e ruína do arquiteto. Neste estado de imbecilidade, tive, por divertimento, minha atenção voltada para a economia política; minha compreensão, que formalmente tinha estado tão ativa e inquieta como a de uma hiena, não poderia, suponho (pelo menos enquanto eu viver), afundar-se na letargia total; e a economia política oferece uma vantagem para uma pessoa nas minhas condições, pois, apesar de ser eminentemente uma ciência orgânica (nenhuma de suas partes em particular, mas o que age como um todo e como um todo age em cada parte), as diferentes partes podem ser separadas e contempladas isoladamente. Grande como era a prostração de meus poderes nesse tempo, assim mesmo não podia deixar de lembrar meu conhecimento; minha compreensão tinha sido íntima, durante vários anos, de diversos pensadores, com a lógica e os grandes mestres do conhecimento, para não estar atento às últimas pesquisas dos modernos economistas. Fui levado, em 1811, a folhear pilhas de livros e panfletos de diversos ramos da economia; e, segundo meus desejos, M. ocasionalmente lia-me capítulos de trabalhos mais recentes, ou sessões do Parlamento. Vi que eles eram a verdadeira escória do intelecto humano, e qualquer homem com a cabeça no lugar e com prática no manejo da Lógica poderia substituir toda a academia de economistas modernos e mandá-los para os ares com o indicador e o polegar, ou transformar suas cabeças em cogumelo em pó com o leque de uma senhora. Concluindo, em 1819, um amigo de Edimburgo mandou-me o livro de David Ricardo, e, recorrendo às minhas próprias antecipações proféticas do advento de algum legislador para essa ciência, disse, após ter terminado o primeiro capítulo; “Que homem de gênio!” Suposição e curiosidades eram emoções que há muito tinham morrido em mim. Contudo supus que mais uma vez seria capaz de ser estimulado pelos esforços da leitura; e muito mais eu supus com a leitura do livro. Esse trabalho profundo havia sido realmente escrito na Inglaterra durante o século dezenove? Seria possível? Imagina que o pensamento houvesse extinto da Inglaterra. Seria possível que um inglês, fora dos camarins acadêmicos e dedicado a cuidados mercantis e senatoriais, conseguira explorar um campo onde todas as universidades europeias e mais de um século de pensamento não haviam avançado nem um fio de cabelo? Todos os outros escritores sentiram-se esmagados pelo enorme volume de fatos e documentos; Sr. Ricardo havia deduzido, a priori, da própria compreensão, leis que pela primeira vez davam um raio de luz ao desarranjado caos de materiais, e construiu, do que havia sido uma coleção de tentativas e discussões, uma ciência de proporções regulares e pela primeira vez sobre bases eternas. 

Então, um único trabalho de grande profundidade foi capaz de me proporcionar prazer e me dar uma atividade que não conhecia há anos. Até me levou a escrever ou, pelo menos, a ditar, o que M. escrevia para mim. Parecia-me que algumas verdades importantes haviam escapado até do olho inevitável do Sr. Ricardo; e, como era, a maior parte, de uma tal natureza que poderia expressá-las ou ilustrá-las mais rápida e elegantemente por símbolos algébricos, em vez da linguagem usualmente obscura e prolixa dos economistas, essas verdades não tomariam mais espaço do que um livro de bolso. Sendo tão breves, e com M. como minha secretária, escrevi o meu Prolegômenos a Todos os Futuros Sistemas de Economia Política. Espero que esse trabalho não tenha a presença visível do ópio, pois para muitas pessoas o próprio assunto já é um opiário suficiente. 

Esta exercitação, contudo, foi um brilho temporário. Pretendia publicar meu trabalho. Foram feitos contatos com uma editora da província para editá-lo, mas ela fica a dezoito milhas de distância. Um tipógrafo extra foi contratado, durante alguns dias, sob esse argumento. O trabalho foi anunciado por duas vezes, e eu estava de certa maneira em dívida com o cumprimento de minhas intenções. 

Tinha um prefácio para escrever e uma dedicatória, que desejava que fosse esplêndida, para o Sr. Ricardo. Sentia-me quase incapaz de realizar essas coisas. Os contatos foram interrompidos, o tipógrafo demitido e meus Prolegômenos descansavam em paz ao lado de seu irmão mais velho e famoso. 

Assim, foi como descrevi e ilustrei meu torpor intelectual, em termos que se identificam, mais ou menos, com os quatro anos que estive sob o encantamento do ópio. A miséria e o sofrimento estiveram, por assim dizer, em estado latente. Raramente podia contar com minhas faculdades para escrever uma carta; uma resposta em poucas palavras era o máximo que eu podia executar, e assim mesmo só depois de a carta ficar semanas ou meses sobre minha mesa de trabalho. Sem ajuda de M. todas as contas a pagar teriam se perdido, e todas as minhas economias domésticas, quanto mais a Economia Política, teriam se transformado em uma confusão insuportável. 



(Confissões de um comedor de ópio; tradução de Ibañez Filho) 



[*] De Quincey refere-se a William Wordsworth (Cockermouth, 7 de abril de 1770 – Rydal Mount, 23 de abril de 1850), com quem conviveu. 



(Ilustração: Bozena Dusseau Labedz – opium)




Nenhum comentário:

Postar um comentário