domingo, 29 de abril de 2018

FELICIDADE É COISA QUE NÃO TEM, de Judas Isgorogota









Era órfã e infeliz. Tinha o pesar profundo

De ser só, de não ter, como as outras meninas,

O carinho, a atenção, o desvelo dos pais.

Sofria por saber que, sozinha no mundo,

Ela, que havia tido a mais negra das sinas,

Deste mundo de dor nada esperava mais…

Mas, ouvindo, por fim, a fervorosa prece

Que altas horas da noite entre prantos brotava

Daquele ingênuo coração,

O Senhor a atendeu. E eis que um dia aparece

Um casal que de há muito desejava

Uma menina assim, para sua afeição.

E ela foi a sorrir, ela que não sorria…

A mansão do casal era toda cercada

De um mimoso jardim.

Seus vestidos agora eram lindos. Dir-se-ia

Que a andrajosa infeliz se transmudara em fada

E que a sua desdita, enfim, tivera um fim…

Não tivera, porém. Há três anos

Que ela era na escola a estudante pior.

Entanto, ela fazia esforços sobre-humanos

Para ao menos dizer uma frase de cor…

A memória, porém, só lhe causava danos

E era aquilo, afinal, sua mágoa maior…

Uma noite, o casal lhe disse: "Temos pena

De lembrar que você já não é tão pequena,

Que precisa estudar…

Pois, se perder este ano, é coisa resolvida,

Você vai passar a sua vida

Na copa, a trabalhar."

Aquela repreensão como um punhal lhe doía.

Tendo a alma a afogar-se em pranto, noite e dia

Aos livros a sem-sorte inda mais se aplicou.

Não, não queria ser uma simples copeira,

Ela que, pobrezinha, a sua infância inteira

Entre angústias passou…

Dezembro. A criançada. Antegozando as férias,

Mui longe de pensar nessas coisas tão sérias

Que a vida nos impõe quando a idade já vem,

Corre aos exames, rindo a criançada…

E no meio daquela revoada

Com um riso triste e bom, a órfão sorri também…

A escola é nesse dia um ninho delicioso,

Forrado de jasmins, de palmas e florões.

E a voz do mestre é a voz de um Todo-poderoso

Que as almas infantis enche de comoções…

Chega a vez da orfãzinha. É agora a vez terceira

Que se senta naquela humílima cadeira

Tal como se sentasse em um banco de réu…

Fala o mestre o seu nome, ao que ela diz: "Presente!"

Mas, o corpo era só que estava ali…realmente,

A sua alma vagava, entre os anjos, no céu…

O mestre a conhecia: era uma retardada

Mental, um caso à parte, e mister se fazia

Que com amor procedesse à mais leve arguição.

Dentre todas talvez fosse a mais aplicada…

Mas a ideia faltava…o cérebro dormia…

E a memória vivia em profunda inação.

-"Minha filha, você sabe perfeitamente

O que é "substantivo": a palavra que indica

Um animal, um ente,

Uma coisa ou pessoa, ou mesmo uma ilusão…

Por exemplo, você, o seu nome, "Lilica";

"Palácio", "Deus", "Amor", "Jornal", "Antônio"…

"Demônio" é um ser também, muito embora "Demônio"

Somente exista na imaginação…"

-"Muito bem, - prosseguiu o mestre. Estou contente.

Agora, diga o que é "substantivo abstrato"…

Diga…Lembre-se bem…coisa mais fácil não há…

Substantivo abstrato…uma coisa em que a gente

Ouve sempre falar mas não viu, de fato,

Nunca viu nem verá…"

-"Vamos… Só um exemplo, e eu fico satisfeito…

Substantivo abstrato…um entre sobre-humano,

Um ser a cujo canto alma alguma resiste,

Mas que não passa de ilusão…

Um sentimento bom que vive em nosso peito…

Uma coisa que o mundo inteiro diz que existe

E entretanto jamais a tivemos à mão…"

Nesse instante, uma luz brilhou nos olhos pequeninos

Da orfãzinha infeliz; e eis que, rasgando o denso

Nevoeiro, a ideia acorda em lampejos divinos,

A memória reluz como uma estranha vela;

Inicia a razão sua marcha triunfal,

E o cérebro, por fim, despertando daquela

Sonolência fatal,

Começa a funcionar com um dínamo imenso!

-"Mestre…mestre…eu já sei!" – grita a coitada como

Temendo que a razão se apagasse outra vez.

E aos brados, a chorar, num doloroso assomo,

Grita como uma douda

Que quisesse dizer a sua angústia toda

Naquele instante só de estranha lucidez!

- "Mestre, eu sei o que é! Se há uma coisa, em verdade,

Que o mundo inteiro diz que existe e que ninguém

Conseguiu ver jamais, nem a sentiu também,

Essa coisa só pode ser "Felicidade"!

Felicidade é coisa que não tem" 





(Ilustração: Diego Rivera)


quinta-feira, 26 de abril de 2018

PESCARIA, de Ernest Hemingway









Lá pelos recifes onde foram fazer pesca submarina havia os destroços do naufrágio de um vapor velho e mesmo com a maré alta as caldeiras de ferro enferrujado ainda apareciam à tona da água. Naquele dia o vento soprava para o sul, e Thomas Hudson ancorou ao abrigo de uma rocha, não demasiado perto, e Roger e os meninos aprontaram as máscaras e os arpões. Os arpões eram muito toscos e de vários tipos, feitos de acordo com as ideias pessoais de Thomas Hudson e dos meninos. 

Joseph tinha vindo junto para remar o escaler. Levando Andrew consigo, dirigiu-se para os recifes, enquanto os outros escorregavam pela amurada para nadar. 

- Você não vem? – gritou David ao pai, que havia ficado na segunda ponte de comando do barco de pesca. O círculo de vidro encobrindo os olhos, o nariz e a testa, com a armação de borracha que pressionava as faces, o nariz e a testa presa com firmeza na carne pela tira de borracha em torno da nuca, deixava-o semelhante às personagens de histórias pseudocientíficas em quadrinhos. 

- Daqui a pouco eu vou. 

- Não espere demais senão os peixes se assustam. 

- Há recifes que cheguem. Vocês não vão esgotar tudo. 

- Mas eu sei de duas tocas ali adiante, depois das caldeiras, que são uma maravilha. Descobri no dia em que viemos sozinhos. Estavam tão intatas e cheias de peixe que deixei pra quando a gente viesse todos juntos. 

- Eu me lembro. Daqui a uma hora, mais ou menos, irei. 

- Vou deixá-las pra quando você vier – disse David, e se pôs a nadar atrás dos outros, mão direita segurando a haste de quase dois metros de madeira dura, o arpão talhado à mão, de pontas gêmeas, fixo na extremidade e amarrado com um pedaço de corda de pescaria. Mantinha o rosto debaixo d’água, examinando o fundo pelo vidro da máscara enquanto nadava. Era um menino submarino e agora que estava tão queimado de sol e nadava apenas com a nunca molhada à mostra lembrava a Thomas Hudson mais do que nunca uma lontra. 

Observou-o contornar o barco, usando o braço esquerdo e movendo as pernas compridas e os pés em lento impulso contínuo, erguendo ocasionalmente, e cada vez por mais tempo, por tempo muito maior do que era lícito esperar, o rosto meio de lado para respirar. Roger e o filho mais velho de Hudson tinham saído nadando de máscara na testa e já se achavam longe. Andrew e Joseph estavam no escaler junto da rocha, mas Andrew ainda não havia saltado pela amurada. O vento soprava de leve e a água perto dos recifes parecia clara e espumosa, com os pardos rochedos e o distante mar azul-escuro. 

Thomas Hudson desceu à cozinha de bordo, onde Eddy descascava batatas em cima de um balde preso entre os joelhos. Espiava pela escotilha para o lado dos recifes. 

- Os meninos não deviam dispersar-se – comentou ele. – Deviam ficar perto do bote. 

- Você acha que é capaz de entrar alguma coisa por cima dos recifes? 

- A maré está muito alta. Isso aí é maré de primavera. 

- A água está tremendamente transparente – disse Thomas Hudson. 

- O oceano está infestado de bichos ruins – disse Eddy. – Estas águas por aqui são um perigo se eles chegarem a sentir o cheiro desses peixes. 

- Por enquanto ninguém pescou nada. 

- Mas não demora vão pescar. Eles têm que botar esses peixes de uma vez dentro daquela canoa, antes que o cheiro de peixe ou de sangue seja levado pela maré. 

- Vou dar um pulo até lá. 

- Não. Diga pra eles ficarem bem juntos um do outro e guardarem os peixes na canoa. 

Thomas Hudson subiu ao convés e gritou a Roger o que Eddy tinha dito. Roger levantou o arpão e acenou que havia entendido. 

Eddy veio até a popa com a panela cheia de batatas numa mão e a faca na outra. 

- Pegue aquela espingarda boa, a pequena, que é boa, e fique de olho aí em cima, Tom – disse ele. Não estou gostando disso. Não me agrada ver crianças lá longe com essa maré. A gente está muito perto do oceano verdadeiro. 

- Vamos buscá-los. 

- Não. Pode ser que seja só nervosismo meu. É que ontem tive uma noite ruim mesmo. Eu gosto deles como se fossem meus filhos e me preocupo muito com eles. – Largou a panela de batatas no chão. – Vou lhe dizer o que a gente vai fazer. Você liga o motor, eu puxo a âncora e depois a gente chega bem perto das pedras e atraca ali. Com essa maré e o vento, o barco arranca num instante. Vamos levá-lo pra lá. 

Thomas Hudson ligou o possante motor e foi para a segunda ponte de comando, nos controles externos. À frente, enquanto Eddy levantava a âncora, podia vê-los agora todos dentro d’água e, nesse tempo, David surgiu à tona com um peixe se debatendo no arpão que mantinha no alto e Thomas Hudson ouviu-o chamando pelo escaler. 

- Aponte bem em direção à rocha – gritou Eddy da proa, onde segurava a âncora. 

Thomas Hudson avançou devagar até quase encostar na rocha, avistando as enormes saliências pardas de coral, os ouriços-cacheiros presos na areia e as algas roxas oscilando na maré em sua direção. Eddy suspendeu a âncora e Thomas Hudson deu marcha à ré. O barco girou, desviando-se do recife. Eddy amarou o cabo até retesar a corrente. Thomas Hudson desligou o motor e fundearam ali. 

- Agora já dá pra gente ficar de olho neles – disse Eddy parado de pé na proa. – Não aguento preocupação com esses meninos. Estraga essa droga da minha digestão. Como se não bastasse o jeito ruim eu ela anda. 

- Vou ficar aqui cuidando. 

- Eu trago a espingarda e volto pra estas porcarias de batatas. Os meninos gostam de salada de batata, não é? Assim como a gente faz? 

- Claro. Roger também. Ponha bastante ovo duro e cebola. 

- Vou deixar as batatas bem boas. Aqui está a espingarda. 

Thomas Hudson estendeu a mão para apanhá-la. Era volumosa e pesada no estojo forrado de lã de ovelha tosquiada que conservada sempre saturado de lubrificante para que não enferrujasse com a maresia. Retirou-a pelo cabo e guardou o estojo debaixo da coberta da segunda ponte de comando. Era uma Mannlicher Shoenauer calibre 256, de cano antigo de dezoito polegadas, cuja venda hoje estava proibida. A coronha e a parte dianteira tinham adquirido uma tonalidade castanha de tanto serem polidas e lubrificadas, e o cano, depois de ter roçado meses a fio na sela de cavalos, reluzia de óleo, sem uma mancha de ferrugem. A parte da culatra onde ele apoiava o rosto estava lustrosa, pelo uso, e quando ele puxou o ferrolho, o carregador surgiu cheio de grossos cartuchos pesados, a bala comprida e fina, revestida de metal em forma de lápis, expondo apenas uma minúscula ponta de chumbo. 

Era realmente uma arma boa demais para se guardar num barco, mas Thomas Hudson se afeiçoara tanto àquela espingarda, que lhe lembrava tantas coisas, pessoas e lugares, que preferia tê-la consigo. Descobrira que no estojo de pele de ovelha, depois que a lã tosquiada já se achava bem impregnada de lubrificante, a arma não sofria dano algum com o ar salgado. Seja como for, pensava, uma espingarda é para dar tiros, não para ser preservada num estojo, e aquela era de fato uma das boas, de fácil manejo, excelente para aprender a atirar e útil no barco. Sempre se sentia mais seguro com ela quando queria disparar de distâncias curtas e médias do que com todas as outras que já possuíra. E agora se alegrava com o mero ato de retirá-la do estojo, puxar o ferrolho para trás e meter uma cápsula na culatra. 

O barco pairava quase imóvel na maré e na brisa. Pendurou a bandoleira da arma numa das alavancas de controle externo, para tê-la bem à mão, e deitou-se no colchão ensolarado da ponte de comando. De bruços, para queimar as costas, avistava o lugar onde Roger e os meninos pescavam. Estavam todos mergulhados, conservando-se no fundo por espaços de tempo diversos, voltando à tona para respirar e logo desaparecer novamente, trazendo de vez em quando peixes nos arpões. Joseph remava entre um e outro, recolhendo os peixes das pontas dos arpões e largando-os dentro do escaler. Podia ouvi-lo gritando e rindo, e ver a cor viva dos peixes, vermelha ou vermelha salpicada de marrom, ou vermelha e amarela, ou listrada de amarelo, quando Joseph os arrancava dos arpões, jogando-os outra vez à sobra da popa do escaler. 

- Eddy, quer trazer-me um drinque, por favor? – pediu Thomas Hudson pelo costado do barco. 

- O que você quer? 

Eddy esticou a cabeça para fora da cabina dianteira. Estava com o chapéu velho de feltro e uma camisa branca, e sob o sol brilhante tinha os olhos injetados de sangue. Thomas Hudson notou que ele havia passado mercurocromo nos lábios. 

- O que você fez na boca? – perguntou-lhe. 

- Uma espécie de encrenca ontem à noite. Só passei um pouco. Aparece muito? 

- Deixa você parecendo uma puta do interior da ilha. 

- Ah, porra – disse Eddy. – Passei no escuro, sem enxergar. Só pelo tato. Quer um drinque com água de coco? Tenho uns aqui. 

- Ótimo. 

- Quem sabe um Green Isaac’s Special? 

- Muito bem. Prepare um Special. 

Deitado ali no colchão, a cabeça de Thomas Hudson ficava na sombra projetada pela plataforma da extremidade dianteira da ponte, onde estavam os controles, e quando Eddy veio até a popa com o copo grande gelado, cheio de gim, suco de lima, água de coco verde, gelo picado e apenas a proporção exata de bíter de angustura para lhe dar aquele tom rosa-ferrugem, ele o manteve na sombra para que o gelo não derretesse enquanto ele olhava o mar. 

- Parece que os meninos estão com sorte – disse Eddy. – Já tem peixe que chega pro jantar. 

- Que mais vai ter? 

- Purê de batata com peixe. Um pouco de tomate também. E aquela salada de batatas pra começar. 

- Parece bom. Como vai a salada? 

- A batata ainda não esfriou, Tom. 

- Eddy, você gosta de cozinhar, não é? 

- Se gosto! Gosto de andar de barco e de cozinhar. Não gosto é de discussão, briga e encrenca. 

- Mas você sempre foi bom pra se meter em encrenca. 

- Sempre evitei, Tom. Às vezes não dá pra evitar, mas sempre tento. 

- O que houve ontem à noite? 

- Nada. 

Não queria falar naquilo. Nunca falava nos velhos tempos tampouco, quando tinha se metido em várias encrencas. 

- Está bem. Que mais teremos para comer? Precisamos alimentar esses meninos. Eles estão crescendo. 

- Trouxe um bolo que fiz em casa e tem dois abacaxis frescos no gelo. Vou partir em fatias. 

- Ótimo. Como é que vai ser o peixe? 

- Do jeito você quiser. Vamos esperar pra ver qual é o melhor que eles pegam, pra depois cozinhar como eles, você e o Roger quiserem. O David acabou de pegar um bom olho-de-boi. Tinha outro, mas ele o deixou escapar. Esse é grandão, todo mole. Mas ele está se distanciando mito. Ainda segura o peixe e o Joe está muito longe com a canoa, está perto do Andy. 

Thomas Hudson largou o copo no chão e se pôs de pé. 

- Caramba – exclamou Eddy. – Olhe só aquilo ali! 

Aparecendo ao longe no mar azul, feito uma vela parda de embarcação e cortando a superfície em veloz investida impelida pelo rabo, a alta barbatana dorsal vinha chispando em direção ao barco à beira do rochedo onde o menino de máscara no rosto segurava um peixe fora d’água. 

- Minha nossa – disse Eddy. – Que cação mais filha da puta. Puxa vida, Tom. Santo Deus. 

Mais tarde Thomas Hudson lembrou que a primeira impressão que teve foi da grande altura da barbatana, do modo como ela mudava de direção, como um cão de caça rastreando a presa, e como parecia avançar feito uma tesoura e no entanto hesitar. 

Levantou a espingarda e atirou bem na frente da barbatana. O tiro disparou e lançou um esguicho d’água. O cano estava pegajoso de óleo. O peixe continuou avançando em curvas, sem parar. 

- Jogue pra ele essa droga de peixe – gritou Eddy a David, recuando de um salto e descendo depressa para a cabina. 

Thomas Hudson atirou de novo e errou, com outro esguicho d’água na retaguarda. Sentiu uma náusea no estômago, como se alguma coisa o estivesse apertando e espremendo por dentro, e tornou a atirar com toda a firmeza e cuidado possível, sabendo perfeitamente a importância do tiro, e o esguicho d'água jorrou à frente da barbatana. Ele prosseguia em seu caminho com a mesma pertinácia horrenda. Agora só lhe restava uma bala, não tinha cartuchos extras, e o tubarão se achava a cerca de trinta metros do menino, adiantando-se no mesmo movimento cortante. David arrancara o peixe do arpão e o segurava na mão, com a máscara no alto da testa, sem tirar os olhos do tubarão já próximo. 

Thomas Hudson procurou manter-se calmo mas firme, lutando para prender a respiração e não pensar em nada além do tiro; para comprimir e acertar a apenas um átimo de distância da base da barbatana, que agora avançava mais sinuosamente do que antes. Nisso ouviu a metralhadora portátil abrindo fogo da popa e viu a água começar a esguichar ao redor da barbatana. Tornou a ouvir uma curta rajada e a água espirrou numa área mais compacta bem na base da barbatana. Quando atirou, ouviu outra vez a descarga, rápida e tensa. A barbatana mergulhou, provocando uma ebulição na superfície, e depois o maior cação que jamais vira ergueu a barriga branca fora do mar e começou a retorcer-se loucamente à tona, de costas, espalhando água como um esqui aquático. A barriga reluziu com um branco obsceno, a boca de um metro de largura contorcida numa espécie de sorriso, as grandes trompas da cabeça com os olhos na ponta, esbugalhados, ao descrever um salto e deslizar para baixo d’água, enquanto a metralhadora de Eddy retinia e rompia a alvura da barriga com manchas pretas que avermelharam antes que girasse para submergir e Thomas Hudson pudesse vê-lo mergulhando em lenta espiral. 

- Chame esses meninos desgraçados pra cá – escutou Eddy gritar. – Não aguento esse tipo de coisa. 

Roger tinha nadado depressa em direção a David, e Joseph estava puxando Andy para dentro do escaler e depois remando para perto dos outros dois. 

- Puta que o pariu – exclamou Eddy. – Já se viu cação desse tamanho? Graças a Deus que eles aparecem na superfície quando querem pegar alguém. Graças a Deus. Os miseráveis sempre vêm à tona. Viu como ele afundou? 

- Me dê uma caixa de cartuchos – pediu Thomas Hudson. Estava trêmulo e sentia uma fraqueza no estômago. – Voltem pra cá – gritou. 

Nadavam em torno do escaler e Roger puxava David para cima da amurada. 

- Agora eles podem pescar – disse Eddy. – Qualquer tubarão no oceano só vai querer saber dele. O oceano em peso vai cair em cima dele. Viu como ele virou de costas, Tom, e depois deu aquele salto desgraçado? Nossa mãe, que cação. E  o menino pronto pra jogar o peixe pra ele? Só o meu David, mesmo. Ah, que colosso esse Davy. 

- É melhor eles voltarem. 

- Lógico que é melhor. Falei só por falar. Eles vão voltar. Não se impressione que eles voltam. 

- Santo Deus, que coisa terrível. Onde é que você tinha guardado a metralhadora? 

- O delegado começou a implicar comigo porque eu estava com ela lá em casa, por isso guardei-a aqui no paiol, embaixo do meu beliche. 

- Não há dúvida de que você sabe lidar com ela. 

- Porra, e não haveria de saber, com aquele tubarão vindo zunindo pra cima do meu Davy, esperando lá, quietinho, pronto pra jogar aquele peixe? Olhando firme pra onde o tubarão vinha vindo? Porra, por mim podia ser a última coisa que eu havia de enxergar nesta bosta de vida. 

O escaler se aproximou da lancha e eles subiram pelo costado. Os garotos estavam molhados e animadíssimos. Roger parecia muito abalado. Dirigiu-se a Eddy e apertou-lhe a mão. 

- A gente nunca deveria ter deixado que eles saíssem com essa maré – disse Eddy. 

Roger sacudiu a cabeça e passou o braço pelo ombro de Eddy. 

- A culpa foi minha – insistiu Eddy. – Eu nasci aqui. O senhor é de fora. Não podia saber. Eu é que sou o responsável. 

- Você se comportou à altura – disse Roger. 

- Porra – retrucou Eddy. – Como é que alguém ia errar àquela distância? 

- Você chegou a vê-lo, Dave? – perguntou Andrew, com toda a delicadeza. 

- Só a barbatana dele até bem quase no fim. Depois pude ver antes do Eddy acertar nele. Ele mergulhou e aí então apareceu de costas. 

Eddy estava esfregando-o com uma tolha e Thomas Hudson viu que tinha a pele ainda arrepiada nas pernas, costas e ombros. 

- Nunca vi nada semelhante àquilo, quando ele saiu da água e começou a virar de lado – afirmou Tom Jr. – Nunca vi nada no mundo parecido com aquilo. 

- Você não verá muita coisa igual a essa – retrucou o pai. 

- Devia pesar mais de meia tonelada – disse Eddy. – Acho que nem existe cação maior do que esse. Caramba, Roger, você viu a barbatana que ele tinha? 

- Vi, sim – respondeu Roger. 

- Será que não dá pra gente ir buscá-lo? – perguntou David. 

- Claro que não, porra – disse Eddy. – Ele afundou girando sem parar sabe lá até onde. Está a umas oitenta braças de profundidade e o oceano em peso vai se banquetear. A estas horas já tão caindo em cima dele. 

- Eu gostaria que a gente pudesse ir buscá-lo – insistiu David. 

- Calma, menino. Você ainda está com a pele toda arrepiada. 

- Você sentiu muito medo, Dave? – perguntou Andrew. 

- Senti, sim – confessou David. 

- Que é que você ia fazer? – perguntou Tom, cheio de respeito. 

- Ia jogar o peixe pra ele – respondeu David, e enquanto Thomas Hudson o observava, a pequena erupção aguda de arrepio se espalhou pelos ombros. – Depois ia bater com o arpão bem no focinho dele. 

- Ora essa – disse Eddy, afastando-se com a toalha. – O que você vai tomar, Roger? 

- Não tem um pouco de cicuta? – indagou Roger. 

- Não amole, Roger – respondeu Thomas Hudson. – Todos nós fomos responsáveis. 

- Irresponsáveis. 

- Está tudo terminado. 

- Muito bem. 

- Vou preparar um gim – disse Eddy. – O Tom estava bebendo um quando o negócio aconteceu. 

- Ainda está lá em cima. 

- Agora já deve ter ficado uma droga – disse Eddy. - Vou fazer um novo. 

- Você se saiu muito bem, Davy – afirmou Tom Jr., todo orgulhoso. – Espere até eu contar isso aos rapazes no colégio. 

- Não vão acreditar – disse David. – Não conte pra eles, se eu for pra lá. 

- Por quê? – estranhou Tom Jr. 

- Sei lá – respondeu David. E de repente rompeu a chorar feito uma criança. – Ah, merda, eu não suportaria se não acreditassem. 

Thomas Hudson tomou-o nos braços, segurando-lhe a cabeça contra o peito. Os outros meninos viraram o rosto. Roger desviou o olhar e depois Eddy surgiu com três drinques, o polegar enfiado num dos copos. Thomas Hudson notou logo que ele havia bebido na cozinha. 

- O que é que há com você, Davy? – perguntou. 

- Nada. 

- Ótimo – disse Eddy. – Assim é que eu gosto de ouvir você falar, seu desgraçado filho da mãe. Vá lá pra baixo, pare de choramingar e deixe o seu velho beber. 



(As ilhas da corrente; tradução de Milton Persson) 






(Ilustração: foto Fabien Michenet)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

DEIXEM-ME ENVELHECER, de Concita Weber






Deixem-me envelhecer sem compromissos e cobranças

Sem a obrigação de parecer jovem e ser bonita para alguém

Quero ao meu lado quem me entenda e me ame como eu sou

Um amor para dividirmos tropeços desta nossa última jornada

Quero envelhecer com dignidade, com sabedoria e esperança

Amar minha vida, agradecer pelos dias que ainda me restam

Eu não quero perder meu tempo precioso com aventuras

Paixões perniciosas que nada acrescentam e nada valem.



Deixem-me envelhecer com sanidade e discernimento

Com a certeza que cumpri meus deveres e minha missão

Quero aproveitar essa paz merecida para descansar e refletir

Ter amigos para compartilharmos experiências, conhecimentos

Quero envelhecer sem temer as rugas e meus cabelos brancos

Sem frustrações, terminar a etapa final desta minha existência

Não quero me deixar levar por aparências e vaidades bobas

Nem me envolver com relações que vão me fazer infeliz.



Deixem-me envelhecer, aceitar a velhice com suas mazelas

Ter a certeza que minha luta não foi em vão: teve um sentido

Quero envelhecer sem temer a morte e ter medo da despedida

Acreditar que a velhice é o retorno de uma viagem, não é o fim

Não quero ser um exemplo, quero dar um sentido ao meu viver

Ter serenidade, um sono tranquilo e andar de cabeça erguida

Fazer somente o que eu gosto, com a sensação de liberdade

Quero saber envelhecer, ser uma velha consciente e feliz.



(O Topo da Montanha)

(Ilustração: Lita Cabellut – Frida)





sexta-feira, 20 de abril de 2018

JARDINS SUSPENSOS, de Antonio Carlos Viana
















Dava pena vê-lo a tarde inteira sentado no banquinho de plástico ao lado do tanque, no quintal. Minha mãe vinha e dizia "vai, vai lavar essa xoxotinha". Ele se levantava inteiramente outro, na sua bata estampada, com a voz ranhenta e pastosa. Eu ficava intrigado com minha mãe falando aquilo e ele, em vez de ficar triste, ficava era alegre. Só assim ele saía daquele torpor em que mergulhava logo depois de arrumar a cozinha. E em mim vinha uma curiosidade intensa que crescia a cada tarde, tentando descobrir que tipo de roupa ele usava por baixo porque nunca tinha visto nada parecido com cueca na corda de estender. Ou não usava nada ou fazia de sua roupa de baixo o maior segredo. O que ele tinha mesmo era uma porção de batas coloridas que fazia à mão, com muita paciência. 


Eu ouvia então o chuveiro despencando forte sobre seus cabelos mais escorridos que de índio a lhe descerem pelos ombros. E o corpo já devia estar coberto de espuma, um corpo liso talvez, como seus braços. Me vinha uma vontade doida de olhar pela janelinha, ver como ele era, que mistério havia sob aquele rosto triste e sem idade, que vivia a maior parte do tempo olhando para nada. Mas a janelinha era alta e, se minha mãe me pega, eu estava frito. Em que estaria ele pensando todas as tardes para só ser despertado por minha mãe dizendo aquela graça mais idiota? A nossa casa ficava numa vila de casinhas iguais, com o mesmo desconforto e sujeira. Eram casas escuras, tudo com o mesmo cheiro de ovo frito ou de carne moída sem tempero, parecendo grudado para sempre nas paredes. Raro o dia em que não estouravam brigas. Mas a gente vivia bela e solitariamente. 


Não sei que moral tinha mãe para despistar todo mundo de nossa vida, fazer com que ninguém se interessasse por nada que nos acontecia. Ela dizia que era também para eu não dizer nada na escola e, quando perguntassem quantos éramos, eu dizer só dois. Fazia de conta que ela alugava o quartinho dos fundos para ter mais uma renda. A vila tinha de bonito só o nome, de civilização antiga e opulenta, como dizia a professora nas aulas de História. Nabucodonosor era o meu rei. E eu vivia sozinho naquela casinha de nada, com aquele hóspede cuja origem minha mãe mantinha em segredo e que só fazia espicaçar a minha imaginação. Ela dizia "se perguntarem alguma coisa a você, diga que é nosso inquilino", como se naquele espaço mirrado pudéssemos nos dar a esse luxo. Ela fazia tudo para eu não ir brincar no rego com os outros meninos para não pegar doença. Eu fazia meus deveres, tempo de terra molhada ia brincar de furão, tempo de terra seca, soltava arraia. E ele sempre me olhando, o tempo passando e minhas inquietações crescendo. 


Uma vez por mês, em cada primeira sexta-feira, vinha um homem de branco e que não era doutor. Nessas noites eu tinha que dormir mais cedo e acordava de madrugada com muito cheiro de vela e a casa já em silêncio. No outro dia bem cedo, minha mãe saía com uma sacola na mão, onde eu via dois pombos alvíssimos sem as cabeças. Uma galinha também degolada, pretíssima, seria o nosso almoço. Era a única ocasião em que o via um pouco diferente, se bem que mais silencioso ainda. Mudava só as feições, como de quem conheceu o Paraíso. O seu contato com o mundo era só esse e, a cada dia, eu tentava me aproximar dele sem saber como. Ele só saía mesmo de casa quando lhe doíam os dentes e voltava com o lenço na boca, onde se viam largas manchas vermelhas. Suas gengivas iam ficando cada dia mais limpas e eu acho que ele ansiava pelo dia em que já não tivesse mais nenhum dente na boca. Já arrancara quase todos e devia certamente ser o primeiro da fila, pois saía com tudo ainda muito escuro e voltava esbaforido, me pegando ainda tomando o café para ir à escola. 


Uma vez tentei me comunicar com ele, como fazia minha mãe. Aí eu disse "vá, vá lavar a xoxotinha". Mas ele me lançou um olhar tão triste, tão amargo, que me fez apanhar a toalha e ir tomar um banho fora de hora. O que mais me chamava atenção nele eram os dedos finos e ágeis trabalhando tapetes de estopa que minha mãe ia vender longe, na cidade. O dinheiro dividia com ele. Não sei de que ele precisava. Seu quartinho era nu, com uma esteira e um caixote que ele arrumava, pondo em cima seus pentes de dentes finos e um pote de creme para as mãos. A manhã inteira passava fazendo esse trabalho e de tarde caía em suas cismas. Eu olhava para ele meio de banda, querendo descobrir algum segredo e via uns poucos fios de barba continuando a costeleta longa, que ele raspava com uma gilete meio embrulhada no papel da embalagem. Se a gente o pegava fazendo isso, disfarçava, como que envergonhado, escondendo a gilete na mão, com o ruído do papel de seda. 


Na escola, eu queria perguntar a alguém sobre os segredos do mundo, mas não me atrevia. Podiam rir ou pensar coisas de mim. Uma manhã me mostraram uma revistinha que me fez ficar com febre. Minha curiosidade aumentou. E eu olhava agora com mais freqüência, tantas vezes sem poder desviar os olhos de seu corpo tão encoberto. Perguntei a minha mãe por que ela dizia sempre aquela graça com ele, e ela, "você sabe que eu gosto de brincar", e pareceu ficar triste. Apesar das recomendações, eu não me continha mais dentro de casa, o mundo parecendo apertado para mim. E ele ficava agora todo inteiriçado quando me via. Até que numa tarde, sem mais nem menos, a voz ranhenta e pastosa, ao me ver, disse de repente, me tomando de surpresa: "quer ver dentro de mim?" E levantou a bata. Não usava nada mesmo por baixo. Com um riso estranho nos olhos, sentado no banquinho de plástico azul, abriu bem as pernas e de dentro delas brotou uma rosa sangrenta capaz de mudar o rumo de qualquer abelha.






(O Meio do Mundo e outros Contos)





(Ilustração: Bernard Buffet -1928-1999; 1967: tete rousse)



sábado, 14 de abril de 2018

BEING BEAUTEOUS, de Mário Cesariny





O meu amigo inglês que entrou no quarto da cama e correu de um só gesto todas as cortinas

sabia o que corria

digo disse direis era vergonha

era sermos estranhos mais do que isso: estrangeiros

e tão perto um do outro naquela casa

mas eu vejo maior mais escuro dentro do corpo

e descobri que a luz é coisa de ricos

gente que passa a vida a olhar para o sol

cultivar abelhas no sexo liras na cabeça

e mal a noite tinge a faixa branca da praia

vai a correr telefonar para a polícia



E não bem pelas joias de diamante os serviços de bolso e as criadas

digo ricos de espírito

ricos de experiência

ricos de saber bem como decorre

para um lado o sémen para o outro a caca

e nos doces intervalares

a urina as bibliotecas as estações o teatro

tudo o que já amado

e arrecadado no canto do olho a implorar mais luz para ter sido verdade



O meu amigo inglês não se lembrava

senão dos gestos simples do começo

e corria as cortinas e criava

para além do beijo flébil que podemos

a viagem sem fim e sem regresso





(Pena Capital)



(Ilustração: Paul Cadmus)








quarta-feira, 11 de abril de 2018

O MISTERIOSO HOMEM-MACACO, de Valêncio Xavier







Eu ia sozinho cantando: 

Tatu Peba 

Tatu Pe-reba 

Tatu bola 

Tatu en-rola 

Eu ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas costas uma Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartuchos dos dois calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho para mim e o Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia para outras caças, prestimoso que era. 

De vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta para abrir caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelas copas de muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever uma nesga de céu muito azul sem nuvens. 

Já ia por volta das dez horas e eu ainda não tinha caçado nada. Calorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu suava, camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de atorar cipó com o facão para beber a água de dentro dele e dar para o cão, tanta a sede de nós dois. 

Meu rosto preto daquelas abelhinhas miúdas, pretas que nem mosca. Ao cão não incomodavam por causa do pêlo, mas em mim, que não usava barba naquele tempo, me cobriam a cara sugando meu suor pegajoso, tirando dele alimento para fazer seu mel azedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se não picavam, também não arredavam dali, máscara preta cobrindo minha cara e fazendo aumentar o calor sentido. 

Depois de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Me sento num toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço uns guinchos ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziam a travessia de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessante de se ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até a pontinha, e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, até o ipê. Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apanhava o companheiro no ar e, balançando-o, atirava-o são e salvo num galhão grosso do ipê, de donde seguiam caminho. 

Se um errasse o salto, ou se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esborrachar no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco, nisso até se parece com gente. 

Não sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculosa, sabor azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora, catei a Winchester e me levantei já apontando para o alto. Divino nem reparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorro é bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se passa lá em cima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um condenado. Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo que se passa no chão. 

Quando apontei a arma quase todos já tinham passado, sobrava só um retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pendurado pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para o meio das folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então no retardatário, sem o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê. No comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder, e o tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: eu atirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritar e pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei logo, me distraí, rindo que estava de suas macaquices. 

Quando o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das costas um macaquinho bem pequenininho e o levantou nos braços para me mostrar. Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gritou, se ajoelhou e se pôs a chorar - macaco é quase como gente -, uma mãe me pedindo para eu não matar seu filho. 

A gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu, ali, fiz uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na ocasião não pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester, Bang. O que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macaca despencou lá de cima - queda demorada de tão alta - e veio se estatelar no chão da clareira. Só então Divino se deu conta e correu latindo para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Cheguei antes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas de mãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu um jeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando bateram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem mortinha, mas salvou o filho. 

Quando percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o filhote, dei um pontapé no focinho, Passa, Divino!, e protegi o bichinho com as minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aí abriu a bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da macaca, só deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tripas e ainda ficou lambendo o sangue do chão. 

O macaquinho tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho e miudinho, pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho dentro do bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos se acalmou, acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. E eu peguei o caminho de casa. 

Na volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, normal, depois parou e devolveu tudo que tinha comido, vômito verde, fedido. Aí passou a caminhar inquieto, parando a toda hora para se mijar, sem levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, começou a latir e a correr em roda tentando morder o próprio rabo. De repente, deu uma guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Chamei, chamei, mas ele não voltou; ainda pensei em correr atrás dele, mas a mata era muito fechada e desisti. 

Nessa hora o macaquinho pôs a cabecinha para fora do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mim me pareceu que ele até estava dando risada. Percebi então que a queda não o tinha afetado. 

Chegado ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostrei o macaquinho. Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cristão fazer. Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pequeno órfão! E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite da cabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo aprontou uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver aquele toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, tomando seu leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira. 

E como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse. Não fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra, não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois. Mamava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não sei se foi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca sua mãe, ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que lhe caiu quase todo pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha, parda, mosqueada. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana. 

Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomou de amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquanto segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas panelas com a outra. 

Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o macaquinho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo agarrado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida. Dormia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho. 

Tinha um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essa vergonha minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre que molhadas. Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eu não ligava. Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, carregava as tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não era companhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava buscando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar. 

Mulher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que não incomode os outros o melhor é deixar. 

O carinho dela pelo macaquinho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se isso trazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele rancho perdido no meio do mato, por que se incomodar, se existem tantas outras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus nos deu? 

Não é mesmo? 

Assim foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois da janta, já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despencou uma chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro dilúvio. Um frio úmido começou tão de repente que tive que me enrolar num cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimou as palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinha pavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu peito, e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com o temporal, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher. 

Foi a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nem sei como as águas não levaram embora o meu rancho, as horas foram passando e nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o acontecido: na madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhados até os ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que de repente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhando vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na hora até que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bicho esperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do que imitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espanto era ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se mantinha reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando perto de nós trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e falou com um vozeirão grosso: 

- Eu me chamo João da Silva! 

Cruz credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente, mas nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda mais macaco. 

Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o queixo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se de espanto ou terror. 

- Eu me chamo João da Silva! 

Dito isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar, mijou quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forte que abriu um buracão. 

No exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estrondoso que alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou como dia e derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do rancho, queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aquilo que talvez fosse a única beleza daquela terra. 

Eu me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. 

Foi nessa noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aquele macaco amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para dentro da minha casa. 

Esse macaco que fez o padre enlouquecer no dia do seu batizado. Que na escola onde foi aprender as primeiras letras atazanou tanto a professorinha que ela, coitada, abortou. Esse macaco que sempre tratei como filho e que abusou da inocência da minha filha, sua enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de desgosto. 

Que, com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedro pagar por ele, até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o macaco cometeu. Que de tanto me judiar, me transformou no velho aleijado que hoje eu sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisa ruim esse João da Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo, que se eu fosse contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim. 

Não gosto nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser maligno cometeu. Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se precaver, quiser saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um dia eu me armo de coragem e te conto tudo. 



(Ilustração: David Teniers  -1610-1690)







domingo, 8 de abril de 2018

A LA ORILLA DEL AGUA ESTANDO UM DIA / À BEIRA D'AGUA ESTANDO CERTO DIA, de Anônimo (século de ouro da literatura espanhola)


 




A la orilla del agua estando um dia,

ajena de cuidado, una hermosa

de mirarse su infierno deseosa,

por verse sola allí sin compañia,



la saya alzó que ver se lo empedía,

y, pegada de ver tan rica cosa,

le dice con voz mansa e amorosa:



"Por vos soy yo de tantos requebrada,

por voz me dan aljorcas, gargantilla,

chapines, saya y manto para el frio,



Um beso quiero darvos," Y abajada

a darle, por estar tan a orilla,

trompicó e cabeça y dio en el rio.



Tradução de José Paulo Paes:



À beira d'agua estando certo dia,

descuidada, uma dama primorosa

de mirar seu inferno desejosa

e vendo-se ali só, sem companhia,



a saia ergueu, que vê-lo lhe impedia

e feliz de ver coisa tão preciosa,

e que de dentro d'alma lhe saía:



"Por vós eu sou de tantos requestada,

por vós me dão colares e pulseira,

sapatos, saia e manto para o frio.



Um beijo quero dar-vos" e abaixada

para o dar escorregou na beira

e de cabeça despencou no rio.




(Ilustração: Edvard Munch - Desnudo femenino de rodillas, 1919)