Perseu abrigara-se da chuva na sala da estação, pousando a mala no banco. Cortara no dia anterior os cabelos. No rosto, mais nu as orelhas pareciam separadas da cabeça; as faces um pouco ossudas davam-lhe um ar de fraqueza obstinada e, apesar disso, de tranquilida
Seu aspecto se transformara bastante desde a época em que andava com Lucrécia. Estava muito mais magro, menos bonito. Agora havia nele um modo de ter doçura que não estava mais na doçura; com o impermeável solto no corpo parecia um estrangeiro que entrasse numa cidade.
Chovia muito. A chuva nos trilhos ainda desertos tinha um sentido reservado de que ele parecia fazer parte.
Como havia tempo, ligou o rádio que em breve estalava captando o temporal longínquo – percebia-se porém o fio de música através das crepitações da eletricidade. Perseu ouvia de pé, sem sonhos e sem o que se chamaria de entender. A frase musical, muito nobre, era-lhe visível como o rádio. Apreendia o esforço da música com mesmo esforço agradável, e tirava prazer dessa vaga rivalidade. Quando lhe perguntavam se gostava de música, dizia sorrindo com graça que gostar gostava, mas não compreendia, dava quase no mesmo ouvir bater na porta e ouvir música.
O rádio crepitava. Perseu escutava com força pacífica, alisando o peso de papéis da mesinha. Se vivesse em sua época seria tentado a achar que a música o fazia sofrer. Mas este rapaz insignificante não tivera verdadeiras influências nem deixava marcas. Talvez estivesse mesmo perdendo sua época, e tanta liberdade o deixasse muito aquém do que poderia se fosse constrangido. Mas ele parecia sempre arranjar-se em silêncio. Se não entendia as notas obscuras, acompanhava-as com uma pequena parte enigmática sua que se comprazia na nitidez do mistério. Quando a música cessou, desligou o rádio. As gotas tombavam da calha e a bilha que o chefe da estação deixara fora enchia-se dágua.
Perseu ficou repousando de pé. Estava cansado e tranquilo. Perto da boca duas ligeiras descidas prenunciavam as rugas de homem. Como não era particularmente de sua época, que o faria sofrer, nem possuía uma cultura de onde escolher sentimentos – estava de pé, acariciando o peso de vidro, com as duas rugas se formando: intacto, pensativo, um pouco fatigado. Sem ser pai, já não era filho. Achava-se em ponto luminoso e neutro. E esta realidade ele não transmitiria a ninguém. A nenhuma mulher sobretudo. Como jamais daria sal harmonia ou a forma de seu corpo. Poderia apaziguar uma mulher. Mas sua paz estranha, ele não comunicaria.
O sino da estação anunciava a partida. Perseu entrou no vagão, dispôs mala sob o banco. Quando o trem partiu, agitou-se feliz olhando para os lados.
Em breve saíam da zona urbana e entravam no campo. Continuava a chover, a terra ensopada parecia triste com árvores tão escuras. Dentro do ruído adormecido das rodas e do vento chuvoso, o carro prosseguia calmo nesse fim de tarde. Perseu tomara dois cálices de vinho-do-porto para não se resfriar pois continuava a ser minucioso quanto à saúde e aos exercícios. Com o álcool no coração sentia-se um pouco bem demais, quase inquieto. Aplicava seu mal-estar em coisas concreta: olhava cada objeto do vagão emprestando-lhes sombrio contentamento.
No carro cada pessoa tinha uma cara, extremamente visível à luz transmutada da tarde. Cara era como o nome, pensou com prazer e desassossego. Seu pensamento era apenas o ritmo das rodas. Perseu tinha apenas a forma para um pensamento extraordinário, e não o pensamento, e isso o exaltava – cara é uma coisa, corpo é outra, vinho no corpo é outra. Embora ele se sentisse todo inteiro com o impermeável num trem.
Começou por olhar uma moça vulgar, de traços grandes. “Parece uma flor”, pensou agitado. Tinha olhos redondos. Vazios porque estava sozinha. Não se poderia dizer se alegres, pensativos ou atentos – olhos apenas físicos, e alguém duvidaria de que pudessem ver. No entanto batiam pálpebras com cílios ralos e comiam o ar com delicadeza. De repente Perseu pôs-se a gostar deles com obstinação e prazer. Pousavam sobre um nariz grande que respirava com esforço: a moça estava gripada, e entreabria os lábios grossos. Toda a cara era exterior, uma flor a ser tomada. Veio-lhe mesmo o desejo. O tipo de cabeça pesada que se pegaria nas duas mãos e que se olharia com inútil sinceridade – daí a pouco pensando em outra coisa, só com o objeto fatigante nas mãos, porque seria impossível concentrar-se naquele rosto de corola. Pôs-se a imaginar como seria difícil conhece-la porque ele mentiria – mal a tocassem, ela se fecharia toda em mentiras e sonhos, ficaria “interessante”, diria de como tinha tantos pretendentes, a família tão bem de vida, ela graças a Deus cheia de saúde, e mesmo de como era virgem – Perseu teve um murmúrio de satisfação ao ver que a que ponto chegara sua experiência e ao imaginar-se fingindo acreditar, beijando-a enquanto ela mentisse – o que seria muito indecente e muito terno.
Enquanto isso ela mostrou ter pressentido o rapaz: parecia pensar mais rapidamente e, quase sem transformar a cara imaculada, tornara-se interessante: Perseu desviou o olhar.
Parecia-lhe impróprio chamar a atenção. Era no entanto o que sempre lhe sucedia. Sua calma insignificância fazia as pessoas erguerem os olhos e fitá-lo em indagação, da qual estranhamente participativa alguma insolência. O que o perturbava. Mas na maior parte das vezes era percebido apenas sem consciência, como se olha o dia. De fato o casal silencioso fitou-o rapidamente, sem tempo, como se ele fosse o único passageiro. A mulher corada tinha queixo sensível e olhos pequenos. O homem era fraco, desorientado: de barba raspada e esverdeada, olhos verdes, mãos cinzentas e bem feitas.
- Os bois.
O trem corria morno na chuva.
- Alfredo, os bois, disse a mulher com voz rouca.
Perseu fixou um canto empoeirado do chão e depois a mala de uma senhora de preto – com a boca cheia de saliva, rebentada no coração a veia mais goras, ele tinha o primeiro sentimento doloroso de paixão e piedade.
- As pessoas, pensou envergonhado. Nos campos as vacas molhadas eram quentes, vagarosas. Gente, disse. Uma sensibilidade nele estava ficando homem. E esta seria sua vida mais interior.
Com o fato de ser um homem quis olhar o mundo, e viu os campos à chuva, as escadas gastas de uma casa. As pessoas eram tépidas no trem, a fumaça confortante. Olhava tudo com inocência, força e domínio.
A senhora de preto fumava, examinando-o com os olhos pintados. Perseu não gostava de mulheres às quais nada escapava. Mas experimentou certa quente promessa no peito ao ver uma mulher perfumada e sábia observá-lo. Embora o intimidasse aquele olhar direto. E atrevido?
Mas não.
Neste momento a mulher preto pensava, soprando a fumaça: sei de repente um homem. O que a maravilhava. Mas era tarde para ela. Eis de repente um homem, adivinhou e, apagando o cigarro, dirigiu a descoberta, em desafio – através da distância cada vez maior – em desafio e misericórdia a uma pessoa que durante a pequena separação não saberia o que fazer de si.
Perseu porém não a olhava mais, agora interessado em penetrar a escuridão através da vidraça. Nenhuma mulher receberia o calor de sua alma que ele um dia talvez desse a um amigo. Esquecera a mulher e espiava a noite pela vidraça – instável, grande, silencioso no impermeável. Mas não era apenas uma força cega. Ser um homem guiava-o através do mistério.
(A cidade sitiada)
(Ilustração: museum artes: Mary Gaspar - Man Sleeping in Train Rain)
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