quinta-feira, 30 de novembro de 2017

ULRICA, de Jorge Luis Borges



  


"Hann tekr sverthit Gram okk / legger i methal theira bert"(*)




Völsunga Saga, 27



Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa.

Os fatos ocorreram faz muito pouco, porém sei que o hábito literário é assim mesmo, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez não venha a sabê-lo nunca) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, esses vitrais puros de toda imagem que os iconoclastas de Cromwell respeitaram, porém o fato é que nos conhecemos na salinha do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida e ela recusou.

- Sou feminista – disse. – Não quero arremedar os homens. Desagradam-me seu tabaco e seu álcool.

A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que a frase não era característica sua, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.

Referiu que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era norueguesa. 

Um dos presentes comentou: 

- Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.

- É verdade – disse ela. - A Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode ser perdido.

Foi então que a olhei. Um verso de William Blake fala de moças de suave prata ou de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. 

Era leve e alta, de traços afilados e olhos cinzentos. Menos que seu rosto me impressionou seu ar de tranquilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la. Vestia-se de negro, o que é raro em terras do Norte, que tratam de alegrar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco. 

Apresentaram-nos. Disse-lhe que era professor na Universidade dos Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano.

Perguntou-me de um modo pensativo:

- O que é ser colombiano?

- Não sei - respondi. - É um ato de fé.

- Como ser norueguesa - assentiu.

Nada mais posso recordar do que se disse essa noite. No dia seguinte desci cedo para a sala de jantar. Pelos cristais vi que havia nevado; os páramos se perdiam na manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou para sua mesa. Disse-me que gostava de sair a caminhar sozinha.

Lembrei um chiste de Schopenhauer e respondi: 

- A mim também. Podemos sair juntos os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria desejado a meu lado nenhuma outra pessoa. 

Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. 

Nunca ouvi um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Daí a pouco disse como se pensasse em voz alta: 

- As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, essa tarde, prosseguiria a viagem em direção a Londres; eu, para Edimburgo.

- Em Oxford Street - me disse - repetirei os passos de De Quincey, que buscava a sua Ana perdida entre as multidões de Londres.

- De Quincey - respondi - deixou de buscá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo a buscá-la.

- Talvez - disse em voz baixa - a tenhas encontrado.

Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e logo declarou:

- Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te, enquanto isto, que não me toques. É melhor que assim seja.

Para um celibatário entrado em anos o amor oferecido é um dom que já não se espera. O milagre tem direito a impor condições. Pensei em minha mocidade de Popayan e em uma moça do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de lhe perguntar se me queria. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e resoluta discípula de Ibsen.

De mãos dadas seguimos. 

- Tudo isto é como um sonho - disse eu - e eu nunca sonho.

- Como aquele rei - replicou Ulrica - que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir em uma pocilga.

Acrescentou em seguida:

- Ouve bem. Um pássaro está por cantar.

Pouco depois ouvimos o canto.

- Nestas terras - disse - pensam que quem está para morrer prevê o futuro.

- E eu estou para morrer - disse ela.

Olhei-a atônito.

- Cortemos pelo bosque – instei-a. - Chegaremos mais rápido a Thorgate.

- O bosque é perigoso - replicou.

Seguimos pelos paramos.

- Eu queria que esse momento durasse para sempre - murmurei.

- Sempre é uma palavra que não é permitida aos homens - afirmou Ulrica e, para minorar a ênfase, pediu-me que lhe repetisse meu nome que não ouvira bem.

- Javier Otárola – disse-lhe.

- Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome de Ulrikke.

- Vou te chamar Sigurd - declarou com um sorriso.

- Se sou Sigurd – repliquei - tu serás Brynhild.

Havia atrasado o passo. 

- Conheces a saga? – perguntei-lhe.

- Naturalmente - disse. - A trágica história que os alemães desperdiçaram com seus tardios Nibelungos.

Não quis discutir e respondi:

- Brynhild, caminhas como se quisesses que entre nós houvesse uma espada.

Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn. 

Do alto da escada, Ulrica me gritou:

- Ouviste o lobo? Já não há lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Ao subir ao andar de cima, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, com um vermelho muito profundo, com pássaros e frutos entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento obscuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a caoba polida me recordou o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não havia móveis nem espelhos. Não havia uma espada entre nós. Como a areia, se ia o tempo. Secular na sombra fluiu o amor e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.



(*) "Ele pegou sua espada, Gram, e colocou entre eles dois o aço nu."



(O livro de areia; tradução de Lígia Morrone Averbuck)




(Ilustração: foto - lápide do túmulo de Jorge Luis Borges)



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