Em dezembro de 1917, no jornal O Estado de S. Paulo, Monteiro Lobato publicava o que seria o início de um mal-entendido entre o autor de Urupês e todo um movimento literário que estava deixando de ser embrionário, o Modernismo. No artigo, denominado "Paranoia ou mistificação?", Lobato dividia a arte de acordo com interpretações pessoais, citando duas espécies de artistas: "os que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura" e os que "veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes". Entre os seguidores dessa arte desclassificada, Lobato incluiu Anita Malfatti. Começavam então suas desavenças com um novo movimento artístico no Brasil. Sua concepção da arte se distanciava do Modernismo de tal modo que a "paranoia" usada no título vem da ideia de que a nova arte seria mais sincera em manicômios, já que só poderia ser fruto de uma lógica psicótica. Lobato não deixa de ver qualidades "latentes" nas obras de Malfatti, mas lamenta suas "tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias" de pintores modernos. Além disso, o autor da crítica ataca também os elogiosos insinceros, aumentando seu número de desafetos.
Se Monteiro Lobato demonstrou sua insatisfação em relação à pintura de Malfatti em um artigo infundado de crítica especializada e de percepção pictórica não adequada à dita exposição, a reação dos modernistas em relação a ele também se mostrou equivocada. No ano seguinte ao artigo, através de sua Revista do Brasil, o autor e empresário lançou Urupês, o livro que décadas mais tarde causaria o comentário do crítico Wilson Martins em A literatura brasileira: "poderia ter sido, deveria ter sido, o primeiro manifesto modernista". Mas já era tarde. A crítica de Lobato mostrou-se profunda e arraigada nos seguidores do Modernismo; em 1922, dois meses depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade prefaciou seu novo livro, A escrava que não é Isaura, com as seguintes palavras: "passadista é o que faz o papel de carro de boi numa estrada de asfalto. (...) O passadista procura na obra de arte a natureza e, como não a encontra, conclui: paranoia ou mistificação". Mário acabava de definir o lugar de Monteiro Lobato como diretamente oposto ao Modernismo; Lobato era classificado de "passadista". A desavença iniciava-se por equívocos de ambas as partes. Lobato, por ignorar as qualidades de um movimento nascedouro, Mário e os modernistas, por ignorar os elementos modernos na obra de Lobato.
A obra citada por Wilson Martins é mesmo o início literário do pensamento já modernista de Monteiro Lobato. Das suas observações como fazendeiro, Lobato aprendeu sobre a vida do caboclo brasileiro e forjou o termo "jeca" para criar um dos maiores representantes de nossa cultura multifacetada. O jeca aparece como natural do interior do Brasil, mas tem sua sabedoria ampliada por essa abstração denominada "cultura nacional": é o embrião da antropofagia modernista que se vislumbra nesse personagem também sem caráter, já que é uma mistura de várias personalidades brasileiras. O regionalismo não é mais respeitado, os limites do herói nacional ultrapassam os regionalismos fictícios criados por autores que desconhecem seus personagens.
Lilian Roeli cita uma carta de Monteiro Lobato: "a nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos por medo de carrapatos". Sua crítica de tom moderno também não poupa o herói romântico nacional: "o romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e, morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, o caboclo". Lobato ofereceu o jeca aos olhos do público e da crítica, um novo caboclo, um herói multifacetado como a cultura brasileira e de costumes antropofágicos, filho de miscigenações e de portugueses degradados, mas o movimento Modernista não teve olhos para reconhecê-lo.
Seu nacionalismo sempre o manteve conectado aos que se interessavam pela questão cultural brasileira. Ainda em sua fazenda, Lobato enumerava admirações por alguns autores que mais tarde se consagrariam na famosa Semana de Arte Moderna. E, mais tarde, publicaria vários desses autores em sua revista. Se um equívoco o separou do movimento modernista, esse mesmo equívoco o deixou livre para contestar o que lhe parecia errado no movimento.
Enquanto em texto o autor analisava a identidade nacional (aproximando-se, assim, de umas das principais propostas modernistas), o homem Monteiro Lobato aventurou-se em projetos empresariais no mundo literário. Em 1918, ele comprou a já famosa Revista do Brasil, em que havia publicado contos e críticas. A revista teve vida longa – em termos editoriais brasileiros – e foi ilustrada por nomes importantes da literatura brasileira.
Seu empreendimento também poderia ser visto como modernizador das relações do artista com os negócios. O Estado, até então, era o novo mecenas das artes, e as negociações com editoras eram precárias. Monteiro Lobato fundou sua própria editora e inaugurou uma nova relação do artista com seu negócio. A literatura é vista, assim, como um produto próprio e pronto a ser negociado. Como afirma Silviano Santiago, "é através da caracterização do papel social e político do livro entre nós que se pode conhecer, com maior propriedade, o sucesso do projeto elitista e o fracasso do projeto populista dentro dos contornos da estética modernista". Começou, então, com Monteiro Lobato, a era moderna nas relações autores-editores no Brasil.
Se, em 1926, Mário de Andrade sentiu-se à vontade para publicar no jornal A Manhã o "necrológio" de Monteiro Lobato, foi porque o autor considerado passadista por Mário mostrava sua primeira derrota pública: a falência de sua editora. O necrológio, tal como a crítica de Lobato a Malfatti, foi um equívoco. Mas esteticamente vai além: é um exagero de mau gosto de críticas ao escritor. Mas, em 1942, também o próprio Mário expiou seus erros publicamente, incluindo Monteiro Lobato entre seus aliados e como um dos pilares do Modernismo: "quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil; é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato".
Pelas palavras dos próprios modernistas, Monteiro Lobato era, então, reconhecido como um deles.
Se existe uma crítica adequada ao modernismo de Monteiro Lobato, veio de Oswald de Andrade durante o conturbado período da Segunda Guerra Mundial. Se o mundo passava por uma transformação em sua ordem, o Brasil passava pela ameaça do Estado Novo e sua ditadura também artística: o Estado como mecenas detinha o poder financeiro nas mãos numa época em que a economia era carcomida pela guerra.
Monteiro Lobato não parecia apreciar o contentamento nacional em relação aos aliados, ou melhor, em relação ao modo como o Brasil se submeteu às forças aliadas. Ainda usando seu personagem Jeca Tatu, Lobato fez oposição à maneira com que os aliados tratavam nossos soldados: "dão-lhe armas, mas negam-lhe os mananciais do sangue que movimenta as máquinas, ergue os aviões e equipa as cavalarias mecanizadas". O Jeca foi usado para guerrear, mas o Brasil não se modernizou, não se preparou para a nova ordem mundial. Por essa crítica, Lobato fez oposição irrestrita ao cosmopolitismo que a guerra trouxe. "Trava-se uma luta entre Tarzan e a Emília", critica Oswald, ironizando o fato de o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo não aceitar as influências estrangeiras. Estava claro para Oswald que também essas novas influências deviam ser digeridas antropofagicamente, mas Lobato temia a invasão em massa que ele já via ocorrer. O nacionalismo lobatiano não permitia a dialética com os estrangeirismos, mesmo porque o cosmopolitismo pregado foi recebido com desconfiança pelo escritor. Ele já havia criticado as influências europeias na arte nacional quando Malfatti expôs suas obras, e agora reforçava sua ideologia, convencido de que a devastadora influência estrangeira vinha disfarçada de cosmopolita, mas acabaria por destruir a cultura nacional, ainda em formação.
Mesmo assim, Oswald compreende a importância de Lobato na modernização de nossa cultura e na participação de sua arte modernista. Ele se pronunciou numa carta aberta a Monteiro Lobato sobre a Semana de 22 e a então situação entre o nacionalismo e o cosmopolitismo: "Hoje, passados vinte e cinco anos, sua atitude aparece sob o ângulo legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significa a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha". Mais uma vez, os precursores do movimento modernista reconheciam em Monteiro Lobato uma referência e uma influência.
Monteiro Lobato provou-se um modernista através de seus textos. O nacionalismo, a preocupação com uma definição da cultura brasileira, o desenvolvimento do seu pensamento editorial e a resistência a uma sociedade consumidora de cultura estrangeira de massa o aproximou intelectualmente de um movimento que era, antes de tudo, favorável à dialética (o que seria a antropofagia proposta senão a dialética?).
Alguns equívocos afastaram autor e movimento. Graças a esses equívocos, jamais saberemos o que poderia propor Monteiro Lobato aliado a um movimento com a força do Modernismo brasileiro. Entretanto, também graças a esses equívocos, temos hoje a prova da capacidade crítica e intelectual de um dos autores mais genuinamente brasileiros da nossa literatura.
(Ilustração: Jeca Tatu; autoria não identificada)
Bibliografia
ANDRADE, Oswald de. Ponta de
lança. São Paulo: Globo, 1991.
AZEVEDO, Carmen Lucia de;
CAMARGOS, Marcia; SACHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato, Furacão na Botocúndia.
Edição compacta. São Paulo: Editora Senac-SP, 2000.
PASSIANI, Enio. Na trilha do
Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
SANTIAGO, Silviano. Calidoscópio
de questões. In: TOLIPAN, Sérgio
et alii. Sete Ensaios Sobre o
Modernismo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. p. 25 - 28.
Publicado em 02/02/2010
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