Pertenço ao século do rádio, da revista
semanal, do bonde e de uma praia onde o banho de mar era obrigatório. Íamos só
de "calção de banho" e não comíamos nada. As "meninas"
levavam as "barracas" que os mais bem apanhados "armavam"
vendo de perto o espetáculo gracioso e "casual" de observar como elas
despiam as suas "saídas de praia", revelando corpos impecáveis. A
praia parava para ver a chegada de certas moças, como a irmã do Nilton. Ou a
mãe do Manuão, especialista - diziam - em freudianamente desvirginar os amigos
do filho.
A ponte entre a fantasia do sexo real e a
irrealidade do romance ideal, que invariavelmente terminava na confissão
arrependida, era preenchida pelo rádio no canto de um Tony Bennett quando ele
entoava Stranger in Paradise (Estranho no Paraíso). O paraíso representado pelo
corpo desejado, mas ainda desconhecido de uma mulher - esse outro do qual
saímos e ao qual, numa hora encantada, voltamos inventando a nossa
masculinidade. Lembro que a belíssima canção era uma versão americanizada das
Danças Polovitisianas, da ópera Príncipe Igor, de Alexander Bodorin,
popularizada num musical da Broadway chamado Kismet, que os mais grosseiros
chamavam de "quis meter", numa falta de gosto que feria a sensibilidade
dos mais cultos e puros de coração.
Tudo era construído pelo rádio e foi pelo
rádio lá de casa que testemunhei o poder do drama no choro aberto de mamãe e
nas lágrimas contidas de meu pai ao ouvirem religiosamente a novela O Direito
de Nascer. Desse mesmo rádio, ouvi o fim da 2.ª Guerra Mundial, o suicídio de
Vargas e aprendi a imaginar campos de futebol e seus jogos maravilhosos pela
voz de Oduvaldo Cozzi. Ao lado de suas pilhas chorei quando vencemos a Copa em
1958 e ouvi o programa humorístico Balança mas não Cai, que os mais velhos
censuravam com o eterno "este mundo está perdido", no que eu, hoje
mais velho que eles, reitero que sempre esteve e vai estar. O rádio era o meio
e o mundo brasileiro (falado, ouvido e cantado), a mensagem.
Naquele Brasil de "80% de analfabetos
de pai e mãe", conforme era banal dizer com um certo gosto e, às vezes,
superioridade, quem não tinha rádio não estava no mundo.
Jaz aqui na minha frente a caixinha
retangular de um velho rádio Sharp de duas bandas e dez transistores que comprei
em Marabá no dia 3 de outubro de 1961, quando - em meio ao meu trabalho de
campo com os índios Gaviões - me alienei dos acontecimentos políticos nacionais
deflagrados pela renúncia de Jânio Quadros. O comerciante sírio-brasileiro que
me vendeu o aparelho disse que o "bichinho pegava tudo". As
estruturas eletrônicas do rádio iam me tirar das tais "estruturas
sociais" tocadas a Lévi-Strauss que eu perseguia com tanto ardor.
Voltamos para a aldeia com o rádio.
Queríamos notícias, mas os nossos constrangidos anfitriões - pois fomos nós que
nos intrometemos autoritariamente em suas vidas - queriam música. E música
sertaneja, naquela época representada pelo baião.
Uma noite, quando ouvíamos o noticiário
político, o nosso mais dedicado instrutor, Aproronenum - conhecido entre os
sertanejos pelo nobre apelido de Zarolho -, pediu música. Girei o indicador
para satisfazê-lo e em torno do rádio formou-se uma alegre plateia.
Logo descobri que a novidade não era bem a
música, mas o fato de ouvir e ver uma caixa cheia falante. Quando a música
terminou, um índio que eu mal conhecia, um sujeito mal encarado, demandou
exprimindo o desejo do grupo:
- Manda ele cantar de novo!
- Não posso - respondi atônito, diante do
radiozinho falante, mas surdo diante do meu problema.
- Mas como não pode? Se ele fala, ele
ouve!, disse o Gavião que havia chegado à aldeia durante os dias que estive em
Marabá.
Recordando muito mal o que sabia de
transmissores, tentei explicar o rádio. Esse rádio que havia permeado a minha
vida e que eu descobria não saber sobre como ele funcionava. Vi, então, que
sabia pouco do meu próprio mundo. Eu simplesmente, como Weber denunciou faz
tempo no seu A Ciência como Vocação, era moderno. Nada sabia das entranhas
dessas entidades mágicas que constituíam o meu mundo.
(OESP/17.4.2013)
(Ilustração: rádio Sharp antigo - autor não identificado)
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