Quando eu era menino em Fortaleza, a
reação das pessoas ao nome de meu pai me deixava encafifado. Anajarino. Ninguém
tinha esse nome, nenhum pai de meus amigos ou colegas. Cada vez que por algum
motivo eu tinha de dizê-lo, ficava nervoso, na expectativa das inevitáveis
perguntas e gozações, era um incômodo ter de explicar seu significado.
E a explicação era bastante simples.
Meus avós haviam saído do Ceará para cuidar de um pequeno negócio no interior
do Pará, na cidade de Anajás, centro da região hidrográfica de Marajó, onde
passaram a morar. Anajarino, portanto, refere-se a alguém proveniente de
Anajás, tal como Amazonino indica o mesmo em relação ao Amazonas. Ambos são
antropônimos, variantes de amazonense e anajaense. Anajás, por sua vez, designa
o povo indígena que habitara a Ilha de Marajó.
De modo geral, o conhecimento do
significado do nome esvaziava sua estranheza, eliminava sua ressonância bizarra
e o revestia de um certo prosaísmo.
Para mim mesmo, essas explicações
eram desnecessárias. Era como se meu pai preenchesse de tal forma seu nome que
eu o tomava como uma imagem sua e não como a palavra que eu passei a entender
que os demais achavam esquisita, uma série de letras, um agrupamento de
sílabas, um vocábulo do léxico, que, como todos os outros, tem uma origem e uma
significação. Esses elementos, que passei a convocar no interesse daqueles a
quem eu tinha de ensinar a origem do nome, no fundo pouco me interessavam,
tornados insignificantes pela presença concreta de meu pai.
Com sua morte e o correr dos anos,
aos poucos sua pessoa se desprendeu do nome, deixando-o esvaziado, o que me
permitiu finalmente enxergá-lo como tal e atentar para sua etimologia.
Levando-a em conta, pareceu-me provável que outros homens nascidos naquele
lugar o usassem, sem que me preocupasse em averiguar a veracidade de tal hipótese.
Essa antiga história veio à tona
recentemente de forma inesperada. Estava procurando algo no Google -
instrumento cuja amplitude e acurácia não cessam de me espantar - quando me
ocorreu colocá-lo à prova, pesquisando minha hipótese sobre os homônimos de meu
pai. Comprovei então, mais uma vez, o incrível poder do buscador e quão correta
estava minha suposição, pois encontrei vários outros Anajarinos.
Essa descoberta teve um efeito
curioso. Senti como se perdesse meu pai de novo numa segunda morte, pois ela
como que banalizava seu nome, fazendo com que ele deixasse de ser seu emblema
privado e restrito, seu inusitado galardão, sua marca registrada, por mais
embaraçosa que me tivesse parecido durante um certo período. Passada essa
primeira impressão, vi que a exclusividade do nome de meu pai, que o Google
anulava de forma definitiva ao mostrar que muitos outros o compartilhavam, não
colocava em risco o que realmente importava - sua posição única e especial,
que, afinal, não residia em seu nome, mas no fato em si de ser meu pai, traço
indelével em mim mesmo, no qual ele de certa forma sobrevivia e que jamais
perderia seu significado e importância fundamentais.
Lembrando aquela época, quando tinha
uns 10 anos e o nome do meu pai me constrangia, pensei que se então alguém me
dissesse que anos depois eu estaria calmamente dizendo para todos, como estou
fazendo agora, em alto e bom som, que era Anajarino o seu nome, isso me
pareceria inacreditável, impossível, algo que jamais poderia acontecer, a não ser
pela intervenção de forças que rompessem com a ordem natural das coisas, alguma
mágica ou um milagre, pois naquela ocasião eu acreditava que tais coisas
acontecessem.
Talvez tenha pensado tudo isso
porque nesta época de Natal ficamos nostálgicos e saudosos do tempo em que
acreditávamos em milagres, acontecimentos extraordinários como o nascimento de
um messias cuja importância passa despercebida aos circunstantes, mas é
detectada por reis de lugares distantes que, guiados por uma estrela, chegam
para lhe render homenagens.
É frequente que a crença em
magníficos milagres própria da infância desapareça com ela. A partir de um
determinado momento, somos forçados a nos contentar com milagres bem mais
modestos, embora não menos espantosos. Milagres advindos não da emergência do
sobrenatural na realidade humana, mas decorrentes dos próprios movimentos da
vida, que, em sua perseverante luta contra a destruição e a morte e com seus
ininterruptos processos de transformação, tomam rumos e desdobramentos
imprevisíveis, impondo mudanças e criando o novo.
Movimentos e transformações como,
por exemplo, os que me distanciam hoje daquele menino que tanto se afligia em
dizer que o pai se chamava Anajarino.
(OESP/22.12.2012)
(Ilustração: José Luis Muñoz)
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