Examinou o terreiro, viu Baleia
coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto.
A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando,
até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as
pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela,
esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou
de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse
bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou
a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e
inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinha
Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.
Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o
barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às
panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em
três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o
chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois
sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe
a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés,
arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e
esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a
raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali:
cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava,
tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos
outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada.
Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o
resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo,
agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras
onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a
garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a
visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava
baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (…)
Abriu os olhos a custo. Agora havia
uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras
tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela
vizinhança. Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A
obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas,
procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha
havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que
se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia
apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros
de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas.
Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha
Vitória guardava o cachimbo. (…)
Baleia queria dormir. Acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano
enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme,
num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
(Vidas Secas)
(Ilustração: Vinícius Mattoso -
casal de retirantes)
Nenhum comentário:
Postar um comentário