Como vocês perceberam, meu pseudônimo literário é um trocadilho com o portador de glaucoma (glaucomatoso), e foi escolhido justamente porque sou glaucomatoso de nascença, ou seja, antes mesmo de ser batizado como Pedro José. Não acompanho a evolução da nomenclatura oftalmológica, mas meu glaucoma congênito era caracterizado pelo tamanho grande do olho logo ao nascer, anomalia chamada na época de "buftalmo". Meu olho direito era maior e mais duro que o esquerdo, e bem cedo notei que enxergava menos com ele, enquanto o esquerdo tinha visão praticamente normal. Já na idade escolar fui notando que ambos eram míopes, o direito em maior grau. Ainda no primário comecei a usar óculos e aos oito anos fui operado pela primeira vez, no Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Mais tarde, meus pais foram aconselhados a procurar tratamento no Instituto Penido Burnier, em Campinas, que então era um centro de referência. Os médicos não quiseram tentar nova operação até que eu estivesse adulto, e fui sendo tratado com um colírio de pilocarpina e comprimidos diuréticos.
Aos dezoito anos comecei a perder o olho direito, cujo volume foi aumentando junto com a miopia. Operei-o aos vinte e um anos, com o professor da USP Celso Antônio de Carvalho, mas houve perda total na própria mesa de cirurgia. Desde então fiquei caolho, com a miopia progredindo proporcionalmente à pressão ocular do esquerdo. Cheguei a usar óculos com mais de dez graus, e mesmo depois de outra intervenção (com o Dr. Hilton Rocha, famoso cirurgião mineiro), a pressão continuava subindo. Aos trinta anos fui novamente operado, desta vez pelo médico paulista John Helal Jr., discípulo de Celso Carvalho, e a pressão se estabilizou por alguns anos. Aos quarenta o Dr. John operou-me a catarata e implantou uma lente de grau, que diminuiu as grossas lentes dos óculos, mas a pressão voltou a subir. Nova operação aos quarenta e dois anos, mas àquela altura as cirurgias indicadas (trabeculotomia, trabeculectomia) já não davam resultado.
Dois anos depois ainda tentei nova operação, com um médico do hospital Albert Einstein, mas a hemorragia pôs definitivamente a perder minha visão já muito fraca. No olho direito, o mais afetado, a pressão atingiu picos superiores a sessenta pontos, enquanto a do esquerdo, nos momentos mais críticos, passou de cinquenta. Mesmo depois da perda total tive que continuar usando colírios, e atualmente a pressão do esquerdo se mantém em torno dos vinte pontos, graças ao colírio Xalatan, que substituiu todos os outros colírios e comprimidos, mas que não evitou a cegueira, já que meu campo visual estava muito reduzido pelos escotomas e pelos descolamentos internos, sangramentos, inflamações, etc. Pode-se dizer que a medicina não tem solução para casos como o meu, apenas consegue adiar a cegueira.
Hoje não enxergo nada, nem mesmo as sombras e claridades que conseguia distinguir antes da última cirurgia, mas até os quarenta pude ler e escrever o suficiente para estudar, me formar (cursei biblioteconomia e letras), trabalhar (fui funcionário do Banco do Brasil, onde me aposentei por invalidez) e desenvolver minha carreira literária (tenho mais de vinte livros publicados), entre outras atividades. Minha visão nunca foi normal, sequer na infância, pois só conseguia ver de longe pelo olho esquerdo. O direito era tão míope que só servia para ler bem de perto. Isso não impediu que eu me dedicasse às artes visuais, como a poesia concreta e os quadrinhos (não me confundam com o cartunista Glauco, criador do Geraldão), antes pelo contrário: impedido de brincar como os outros meninos, que praticavam esportes, andavam de bicicleta e dançávamos bailinhos, tornei-me mais estudioso e amante das letras.
Com o agravamento da moléstia, tive que abrir mão da leitura até que, já cego, passei a me dedicar à produção de CDs de rock alternativo (associado a um selo independente), mas no finalzinho do século apareceu um sistema de computação sonora chamado Dos Vox que faz meu computador falar, possibilitando-me o retorno à poesia e à publicação de livros, bem como abrindo-me as portas da comunicação internáutica. Já no dia a dia a coisa é mais difícil e sofrida, pois não consigo me adaptar à cegueira nos atos mais práticos, e dependo de ajuda dentro ou fora de casa. Outro problema é o despreparo e a discriminação das pessoas em relação ao deficiente visual, o que me acarreta o sofrimento adicional de suportar maus tratos. A única compensação que consigo tirar é a fantasia masoquista, que se realiza através da minha obra, na qual me sujeito às piores humilhações e desabafo minha revolta contra as injustiças (humanas e divinas) de que me julgo vítima.
Desde adolescente eu escrevia bastante, inventava uns contos malucos, mas a poesia eu comecei a praticar nos anos 70, paralelamente àquela geração dos "poetas marginais", só que meus primeiros poemas já descreviam as sensações de quem sofre de glaucoma, daí meu pseudônimo. [...] aqueles primeiros poemas, aludindo a alguns sintomas mais perceptíveis, tais como o arco-íris circular que surge em torno de lâmpadas acesas e outros focos luminosos, as manchas cegas que surgem em vários pontos do campo visual (chamadas de escotomas), as "estrelinhas" que pipocam a qualquer momento, dependendo do movimento ou do esforço físico que a gente fizesse, e assim por diante. Outras impressões mais graves, como a perda progressiva das cores (o vermelho e o verde foram as primeiras a dar lugar a um cinza pálido), típicas da fase terminal da capacidade visual, foram descritas nos sonetos [...].
São inúmeros os complicadores para quem sofre deste mal. Contraindicações de remédios, alimentos e bebidas a evitar, esforços físicos... sem falar na miopia, que nunca estacionava, da dor de cabeça causada pela pilocarpina e por outros colírios, da angústia e da paranoia diante da perspectiva de ficar cego não se sabe quando... Mesmo depois da perda total o glaucoma não para de incomodar. Se a pressão do olho cego deixar de ser controlada com medicamentos, a dor pode ficar insuportável. No caso do olho direito (o que foi inutilizado há mais tempo), demorou para que ele perdesse a rigidez de pedra e começasse a murchar, e até nesse processo de encolhimento passei por muitos sangramentos, pontadas, pruridos e corrimentos. Enfim, a agonia tem sido longa e constante.
Claro que nem todos os glaucomas são graves e fatais como o meu, mas quem puder se prevenir que se previna.
Apenas o consolo de saber que nós, os glaucomatosos, estamos, como os cegos, em boa companhia: de Ray Charles a James Joyce, de Jânio Quadros a Sérgio Sant'Anna, temos "colegas" em todos os campos da celebridade. Pra não dizerem que sou Maria vai com as outras, resolvi me diferenciar pela atitude politicamente incorreta e escancaro meu sadomasoquismo, meu fetichismo e minha escatologia numa linguagem muito suja e violenta, razão pela qual sou conhecido como "o poeta da crueldade". Meus livros e meu sítio pessoal dão provas desse comportamento anticonvencional, mas quem tiver a curiosidade de ler o que escrevo vai perceber que por trás da baixaria está algo mais profundo, ou mais elevado, como queiram: o protesto contra todo tipo de desumanidade, venha ela do próprio homem.
(Ilustração: André Muller)