Ocorreu-me há tempos investigar como a Segunda Guerra Mundial tinha sido vivida na ilha da Boa Vista. A ideia não parecia despropositada, tendo em conta que, assim ao correr das estórias, embora sem nunca as ter aprofundado, conhecia três ou quatro episódios que atestavam que, de alguma forma, tínhamos participado no esforço daquele sangrento conflito. Sem ir mais longe, havia por exemplo uma morna muito bonita mas muito crítica, feita por anónimos autores da ilha, que não só falava dos malefícios da guerra como inclusivamente responsabilizava quase pessoalmente os alemães pelo começo e terminava tomando posição clara sobre o assunto "Hitler ca ta ganhâ guerra!"
Mas não era só isso. Tínhamos também o nosso próprio Hitler, um indivíduo de baptismo Balísio, nascido num dia do aniversário do "Führer" e que conquistou essa alcunha devido à extrema maldade que o caracterizou desde pequenino ainda criança de peito, mordia cruelmente as mamas da mãe quando se sentia saciado, e depois de mais crescido divertia-se a regar os ratos com gasolina e jogar-lhes fogo, ou então a abrir o peito de corvos vivos para lhes ver os corações palpitando. Depois da tropa entrou para a polícia, onde ganhou o ódio de uma cidade inteira, pela facilidade com que puxava do cacete.
Conheci o "Hitler" já nós rapazotes, embora ele fosse alguns anos mais velho do que eu, magro que nem um cação, mas com uma característica apreciável: comia alarvemente, não havia alimento capaz de lhe dar abasto. Certa vez que lhe apeteceu ovos cozidos, apostou com a malta em como era capaz de comer 50 seguidos se os comesse pagaríamos nós, de contrário pagaria ele.
Comeu-os até ao último ovo. A princípio, rapidamente, depois mais devagar, mas até acabar tudo, tudo. Cometeu foi a imprudência de beber a seguir dois litros de água.
Vomitou desalmadamente durante três dias, num mafor de ovos podres que não permitia a ninguém se aproximar dele.
Ora a existência não só de uma morna a respeito como até de um Hitler ilheno devia querer dizer, se não que a guerra ali tinha chegado, pelo menos que ela fora vivida com emoção, tanto mais que, de tempos a tempos, vasos alemães fundeavam na baía de Sal-Rei, onde ficavam por muitos dias, sem no entanto permitir qualquer aproximação por parte das gentes da terra, antes rechaçando com brutalidade as tentativas no sentido de os visitar, embora eles se arrogassem o direito de desembarcar.
Por exemplo, contava-se a estória do Bento, que vendo uma manhã uma canhoneira alemã fundeada ao largo decidiu entrar em comércio com os de bordo. Assim foi ao recife mais próximo e juntou um saco de larau de lapas e, de seguida, meteu-se num bote rumo à canhoneira. Viram-no de longe e começaram a fazer-lhe vigorosos sinais para não se aproximar, mas Bento tinha nobres propósitos, qual fosse dar aos alemães a conhecer a nossa famosa lapa, fresquinha, que tanto podia ser comida crua, apenas temperada com vinagre, ou então fervida, ou então grelhada, uma maravilha! Sem já falar no delicioso arroz de lapa, que era quando ela atingia o seu supremo esplendor... De modo que insistiu, indiferente aos gritos, e conseguiu acostar-se. Vinda de cima, Bento continuava ouvindo aquela feroz algaraviada, mas com as duas mãos cheias de lapa mostrava-lhes os seus honestos propósitos, explicando com gestos preciosos como tirar a lapa da concha com a própria unha e fazendo sinal para lhe baixarem a escada de quebra-costa, para uma demonstração mais eficaz a bordo. E já desesperado por não estar a fazer-se entender com gestos tão claros, Bento resolveu imitar a algaraviada que tinha estado a ouvir dos alemães e pondo as mãos em concha na boca começou a gritar, repetindo dezenas de vezes "Alamata, comprata lapita, se não quer comprata trocata pa bolachita! Alamata, comprata lapita..."
Os alemães ripostaram no seu grasnar, Bento continuou naquilo que achava ser a língua deles, concitando-os ao negócio. Por fim, já desesperados daquela teimosia, os alemães atacaram-no com batata podre e tomate estragado e toda a casta de lixo que tiveram à mão e Bento chegou ao cais não só ofendido como também muito confundido.
Esse perverso procedimento viria, aliás, a estar na origem de uma feroz batalha de praia entre boavistenses e os alemães que de tempos a tempos iam a terra para espairecer, desentorpecer as pernas e comprar ovos e galinhas. Naquele tempo, a rapaziada da vila treinava-se muito na arte de pegar queda, que era uma espécie de luta de capoeira, e então resolveu vingar as afrontas por que Bento tinha passado. Certo dia esperaram os botes de borracha amarrados no cais e de seguida desafiaram-nos para a luta. Não houve como recusar, mas quando os alemães começaram a ver-se esparramados na areia da praia, vítimas dos ganchos por dentro de que não sabiam livrar-se, fugiram em debandada e a nado para o navio.
Foi a partir desses episódios que comecei sonhando com material suficiente para um desenvolvido livro histórico, mas acabei chegando à conclusão que a eles se resumiam as nossas memórias da guerra.
(Ilustração: Clotilde Fava – peixeiras)
Eu estava fazendo uma pesquisa na internet e acabei achando esta figura, fiquei encantada, resolvi "clicar", me deparei com esse blog inspirador e já estou seguindo-o. Sou uma simples artesã e vou recomendar seu blog na minha página.
ResponderExcluirContinue postando imagens e textos, e, de quando em quando vou dar uma passada por aqui para viajar pelo mundo das cores e letras.
Um grande abraço.
Andrea