terça-feira, 15 de junho de 2010

W.H. AUDEN FICCIONA SOBRE CHRISTOPHER ISHERWOOD, de Amadeu Baptista









1.


Ignoro o paradeiro de Christopher Isherwood,

há muito que o outro lado do muro do internato o fascinava,

muitas vezes me perguntou que poderia pensar-se

da separação das águas e também pelas ignotas terras

do mundo e sobre quais seriam as melhores embarcações

para atravessar o mar. Não raro o observei a perscrutar

o infinito, cada noite procurava uma determinada estrela
no firmamento, enquanto fazia rodar a caneta

entre os dedos a uma velocidade inverosímil, uma velocidade

que me deixava atónito. – " Wystan, você acredita

na grande máquina? ". E ficava

a olhar além do vazio, além de tudo, como se a existência

fosse algo bem mais significativo que o tédio intensíssimo

de todos os fins de tarde e a dúvida apenas esboçada

no seu rosto fosse o único objectivo da sua vida. – " Wystan,

não tenho notícias de Manchester há cinco meses, é bem

provável que tal sítio do mundo já não exista." E ficava a olhar

o verde brilhante que inundava os limites da janela
do nosso quarto comum. Esta manhã saiu cedo, não havia

qualquer sussurro que me pudesse ter despertado mas ouvi-o

a saltar da cama cautelosamente e a fechar a porta

com suave gentileza. – " Wystan, hoje não teremos

um pequeno-almoço delicioso ", disse, entredentes,

e partiu para sempre ainda mais só do que me habituei a vê-lo,

recordando talvez Manchester ou alguma escuna branca

que tivesse sonhado nessa mesma noite e o tivesse levado

mais longe, a regiões mais vastas,

do que esta infernal preparação para o precário mercado

de commodities.


2.


Vim a saber que lhe bateram com uma correia de transmissão

quanto tinha oito anos e que sempre que aceita um desafio

é como se voltasse a esse tempo de surda revolta. Compreendo

que se sinta infeliz, mais a mais tendo outras pérfidas

recordações a persegui-lo,

vitimou-o a morte da avó com essa tristeza imparável,

onde entra irradia uma premonição de algo que irá desabar

e uma corrente de ar gelado que é impossível conter.

Também soube que perdeu os pais muito cedo, num incêndio,

ao que creio,

essas tragédias abatem-se sobre nós e não nos atrevemos a olhar

para trás sem que algo estale dentro da cabeça, uma explosão

no espírito que faz com que inclinemos a cabeça para o peito

e uma pequena barragem se levante para a lágrima que ameaça

chorar

enquanto o estremecimento atravessa o corpo e se prolonga

além do olhar com o poder de transfigurar a realidade

e nos devolver
a esse passado avassalador onde tudo aconteceu. Presumo
que o fascínio tem desses sedimentos, as marcas indeléveis

acossam a memória e tudo é irremediável, fugaz

mas irremediável, uma fita de imagens lentíssimas

desenrola-se sob os olhos,

amplia-se na distância do tempo, é uma dor mais forte

que não dói já, mas há-de continuar a doer além do imaginável,

além dos ossos,

além da morte,

além do feroz instinto de prevalecer.


3.


Estou agora professor de poesia em Oxford

e o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar,

se me olho ao espelho coro de vergonha

pela traição a que me submeti,

o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar.

A poesia não me desobriga da vida

mas o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar,

desde a infância que me comovo com as estrelas,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar.

Onde quer que vá neste espaço exíguo lembro-me

que o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar,
ele estava fascinado pelo que havia além do muro,

o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço

inter-estelar.



(Jornal de Letras, Artes e Ideias , nº. 640)





(Ilustração: Koslow - Cristopher Isherwood)

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