Em torno de mim reina a tranqüilidade, e minha alma está tão calma! Agradeço-vos, ó Deus, por me concederes, em meus últimos momentos, este calor e esta força!
Aproximo-me da janela, ó minha amiga, e vejo ainda, através das nuvens que o vento tempestuoso, ao longe, dispersa, brilhar aqui e além as estrelas do céu eterno. Não, vós não tombareis! O Eterno vos retém em seu seio, e a mim também! Vejo as rodas do Carro, a mais querida das constelações. Quando ontem a deixei, quando saí de sua casa, eu vi diante de mim essa constelação. Com que inebriamento a tenho tantas vezes contemplado! Quantas vezes, erguendo as mãos ao céu, tomei-a como sinal, como monumento sagrado da felicidade que então fruía! E, no entanto, ainda... ó Carlota, que é que não me faz pensar em você? Você não está em tudo quanto me cerca? E não tenho eu, como uma criança, furtado avidamente mil ninharias que você tocou, ó minha santa?
Querida silhueta! A você a lego, pedindo-lhe que a venere. Quando entrava, ou quando saía, imprimia nela milhares de beijos; mil vezes lhe disse adeus.
Escrevi um bilhete ao seu pai, pedindo-lhe que proteja meu corpo. No cemitério, bem ao fundo, no canto que dá para o campo, há duas tílias: é lá que desejo repousar. Ele poderá fazer isso, há de fazê-lo pelo seu amigo. Peça-lho também! Não exigirei dos piedosos cristãos que deixem depositar seus corpos ao lado de um infeliz! Ah! eu queria que me enterrassem à beira da estrada, ou no vale solitário! Ao passar, o sacrificador e o levita haveriam de persignar-se diante da pedra que marcaria o meu túmulo, e o Samaritano me concederia uma lagrima.
Veja, Carlota, que não tremo ao pegar a fria e terrível taça por onde quero beber a embriaguez da morte! É você quem ma apresenta e eu não hesito um só momento. É assim que se consumam todos os votos, todas as esperanças da minha vida, todas! Quero bater, gelado e rígido, à porta de bronze da morte!
Se eu tivesse alcançado a ventura de morrer, de sacrificar-me por você, Carlota! Eu morreria corajosamente, e com que alegria, se pudesse restituir-lhe o repouso e a felicidade! Mas, ai de mim, a muito poucas e nobres criaturas é dado derramar o sangue pelos seus e, com a morte, iluminar uma vida nova e centuplicada para aqueles que amam!
É com esta roupa, Carlota, que quero ser enterrado; você a tocou, você a santificou; também isto pedi a seu pai. Minha alma flutuará sobre o caixão. Que ninguém remexa em meus bolsos. O nó cor-de-rosa que você trazia no corpete, quando a vi pela primeira vez em meio das suas crianças ... Oh! beije-as mil vezes por mim e conte-lhes a história do seu desgraçado amigo! Queridas crianças! Vejo-as alvoroçadas em torno de mim! Ah! como me prendi a este nó cor-de-rosa, como, desde o primeiro momento, não mais pude deixá-lo ... Irá comigo para o túmulo; você mo deu no dia do meu aniversario natalício. Com que sofreguidão o recebi! Não pensava que tudo me havia de conduzir até aqui. ... Calma, peço-lhe, calma!
Elas estão carregadas ... bateu meia-noite. Assim seja, então! ... Carlota, Carlota! Adeus, adeus!
Um vizinho viu o clarão da pólvora e ouviu o estampido, mas, como tudo voltou ao completo silencio, não se inquietou mais.
Às 6 horas da manhã, ao entrar com uma lâmpada, o criado encontrou o amo estendido no solo. Vendo as pistolas e o sangue, chamou-o, sacudindo-o. Nenhuma resposta. Werther estertorava. Correu ao médico, foi à casa de Alberto. Carlota ouviu bater e sentiu um arrepio por todo o corpo. Despertou o marido e ambos saltaram da cama. O criado, gritando e gaguejando, deu-lhes a notícia. Carlota caiu sem sentidos aos pés de Alberto.
(Os Sofrimentos de Werther)
(Ilustração: Henry Wallis - the death of Chatterton - 1856)
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