Para Max Weber, o sociólogo das religiões mais influente e importante de todos os tempos, a religiosidade tem íntima relação com a classe social, ou seja, com a posição relativa dos fiéis na hierarquia social. As versões mais racionais e éticas da religiosidade costumam estar relacionadas à vida citadina – em especial aos comerciantes e artesãos qualificados com seu cotidiano calculável, regular e previsível. Já os camponeses e as classes populares percebem seu cotidiano como dominado por forças externas incontroláveis, como a natureza e a opressão social associada ao trabalho desqualificado, dependente e servil.
O pentecostalismo, desde a sua vertente original nos Estados Unidos, nasce como oposição ao protestantismo histórico e ao processo de secularização que lhe foi subsequente. Como se sabe, a tese weberiana para explicar o processo de secularização parte da contradição interna ao protestantismo ascético, que constrói um “caminho para salvação” baseado no sucesso mundano. Ao interpretar o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso mundano e visível, ou seja, como riqueza material, o ascetismo protestante passa a exigir do fiel a “dominação do mundo” social e natural como precondição para ser salvo.
Para que o mundo seja dominado, ele precisa, porém, ser conhecido. É necessário que se conheça como o mundo social e natural funciona para que se tenha sucesso nele. Ora, a ciência é exatamente a dimensão criada para o conhecimento e controle do mundo externo. Existe uma forte correlação entre o advento do protestantismo e a ascensão da ciência experimental. A visão científica do mundo, no entanto, elimina pouco a pouco o “mistério”, elemento indispensável a qualquer forma de religiosidade. O estabelecimento da ciência enquanto esfera simbólica detentora de sentido hegemônico implica o enfraquecimento – não a morte – da visão religiosa. É por conta de suas contradições internas que o protestantismo é visto como a parteira do mundo moderno, secular – e, dentre outras consequências, um mundo onde a ciência substitui a religião como provedora de sentido.
Isso, por óbvio, não ocorreu sem resistências. Especialmente nos Estados Unidos – a pátria do puritanismo ascético –, foram desenvolvidas, desde o século XVIII, tendências revivalistas da religiosidade, as quais são o berço histórico do movimento pentecostal posterior. Esses movimentos eram plurais, e havia uma quantidade de oferta religiosa significativa comandadas por novos profetas que pululavam em vários lugares. Um deles foi Charles Parham, figura emblemática da novidade pentecostal, que se tornou o primeiro pregador a fazer a ligação entre experiências extáticas – com manifestações de transe e glossolalias (o falar em “língua estranha”) – e o “batismo com o Espírito Santo”.[1]
Um dos seguidores de Parham, William Seymor – que se tornaria conhecido como o “profeta negro da Rua Azuza” – assistia às suas aulas no corredor e não na sala de aula, por conta do racismo de Parham, e decidiu fundar sua própria denominação na Rua Azuza, em Los Angeles. Rua Azuza se tornou, a partir daí, uma espécie de galvanizador e campo de experiência de uma religiosidade que valorizava a tradição negra: em traços como a oralidade da liturgia, testemunhos orais, inclusão do êxtase, sonhos e visões, inclinação para o xamanismo religioso, uso de coreografia e muita música nos cultos.[2]
Essa ligação com a cultura negra explica, em boa parte, a irresistível influência desse tipo de religiosidade entre nós. Aqui podemos já visua lizar que o ancoramento social desse tipo de manifestação religiosa se dirige aos desterrados, humilhados e imigrados. São pessoas que não conseguem se sentir pertencentes à realidade social, visto que essa os humilha e não os reconhece. São pessoas que estão no mundo social, mas não se sentem parte desse mesmo mundo. Nascia então uma religiosidade, feita com precisão de alfaiate, para os abandonados e excluí dos. Como sempre, a religiosidade mágica é a arma dos despossuídos, daqueles que não têm futuro. Como diria Pierre Bourdieu, em uma de suas frases magistrais: “A esperança mágica é a visada de futuro dos que não têm futuro.”
Criada nos Estados Unidos no começo do século XX, essa forma de protestantismo popular tem se globalizado com rapidez entre as massas empobrecidas do Sul global. Descendentes do metodismo Wesleyano e do Holiness Movement [Movimento da Santidade], os pentecostais, por diferença em relação ao protestantismo histórico, acreditam que Deus, por meio do Espírito Santo – responsável pelo componente mágico desse tipo de religiosidade – continua a agir diretamente no mundo prático. Essa ação se materializa em curas, exorcismo de demônios e realização de milagres.
A diferença entre religiosidade ética e religiosidade mágica é a mais importante do universo religioso. A religiosidade ética, produto singular da cultura ocidental – que nasce no judaísmo antigo e influencia diretamente o cristianismo e o islamismo – cria uma tensão ética entre o mundo transcendente e o mundano. O Deus e seus mandamentos morais, na religiosidade ética, pretendem mudar o mundo profano como ele é. Pretende criticá-lo e revolucioná-lo. Por exemplo, Jeová exige dos fiéis que eles não matem, não roubem e não desejem a mulher do próximo porque na humanidade há quem tenha desejos assassinos, desejos de apropriação das coisas alheias e desejos libertinos em relação à mulher do próximo. A religiosidade ética abre a possibilidade de mudança do mundo social e do nosso comportamento nele. Ela é intrinsecamente revolucionária, ainda que os compromissos com os poderes mundanos tenham sido, historicamente, a regra.
Com a magia, temos o efeito contrário. Na magia, não há oposição entre a dimensão religiosa transcendente e a dimensão mundana, mas sim proximidade e contiguidade. Os entes transcendentes são próximos, e seus favores devem ser conquistados do mesmo modo como fazemos com os poderosos deste mundo: com presentes, bajulações, elogios e afagos. Não existe a tensão ética que possibilite transformar o fiel mágico em outra coisa que ele ainda não seja. A regra aqui é a dos rituais: vive-se da repetição, da tradição e do eterno ontem que sacraliza o mundo como ele é.
Além disso, como a moralidade mágica não pressupõe reflexão – uma vez que é mera compulsão pela repetição – inexiste o drama típico da consciência moral ética, que é representado pela questão: devo seguir o que Deus manda, ou seguir aquilo para o qual já me inclino desde sempre? Essa é a primeira forma de consciência moral individual da história – o drama consciente da escolha de caminhos alternativos de vida. Na magia, não há alternativa, nem drama de escolha, nem consciência moral. A magia é, portanto, intrinsecamente conservadora. Não há crítica social possível a partir dela. E foi esse tipo de protestantismo mágico, em forte oposição ao protestantismo histórico, a forma de religiosidade ética mais consequente de que se tem notícia – que tomou o Brasil de assalto a partir dos fins do século XX.
A novidade americana logo chegou, como sempre acontece, rápido ao Brasil. Vários missionários inspirados pela Rua Azuza chegaram aqui poucos anos mais tarde, como Louis Francescon, Daniel Berg e Gunnar
Vingren, os pioneiros do pentecostalismo no Brasil.[3] Os estudiosos dividem em três fases a história do pentecostalismo e neopentecostalismo brasileiro. A primeira onda acontece a partir de 1910, com a vinda dos missionários estrangeiros para ensinar os fundamentos da nova religião. A segunda onda se dá nos anos 1940 e 1950, sobretudo em São Paulo. A terceira onda ganha impulso a partir dos anos 1970 e 1980, em especial com a Igreja Universal do Reino de Deus – comandada com mão de ferro pelo autointitulado bispo Edir Macedo. O contexto da terceira onda é carioca.[4]
O pentecostalismo clássico brasileiro, típico da primeira onda, é representado pela Congregação Cristã do Brasil e pela Assembleia de Deus, a maior denominação pentecostal do Brasil. Suas características principais são o anticatolicismo, o dom de falar em “línguas estranhas”, a crença na volta iminente de Cristo e na salvação paradisíaca, e o radical sectarismo e ascetismo. A segunda onda teve início nos anos 1950 principalmente em São Paulo, a partir de dois missionários americanos que formaram o Evangelho Quadrangular, trazendo para o Brasil a evangelização em massa baseada na cura divina.[5]
Tal ênfase na cura divina foi o grande mecanismo para o crescimento do pentecostalismo brasileiro, como, aliás, aconteceu no mundo todo.[6] O que separa as duas ondas é a ênfase diferencial nos dons do Espírito Santo. A primeira onda enfatiza o dom de línguas; enquanto a segunda privilegia a cura divina. Existe grande influência recíproca entre as diversas denominações, e, em um processo de tentativa e erro, tudo aquilo que se mostrar bem-sucedido tende a ser imitado pelas outras denominações.
A terceira onda se inicia nos anos 1970 e ganha força nas duas décadas seguintes. Seu principal símbolo é a Igreja Universal do Reino de Deus, que é marcada pelo antiecumenismo – forte oposição aos cultos afro, forte hierarquia e centralização, uso de meios de comunicação de massas, ênfase na cura e no exorcismo de demônios. E, como característica mais marcante, as técnicas para retirar dinheiro dos fiéis em troca de bens simbólicos mediante pagamento direto em moeda sonante. Combinado a essa guinada mundana e empreendedora temos a rejeição consequente a toda forma de ascetismo mundano.
Se as ênfases das igrejas anteriores privilegiavam as “línguas estranhas” e a cura divina, na terceira onda neopentecostal a centralidade é do exorcismo de demônios. A singularidade da Universal é baseada na ênfase da luta entre Deus e o demônio, e cabe ao pastor dizer quem é um e quem é o outro (a divindade pode ser associada, inclusive, a Bolsonaro, se o pastor assim o desejar, afinal, ele tem “Messias” no nome). O contexto conservador da magia é levado ao paroxismo na teodiceia neopentecostal. Como inexiste qualquer separação entre a esfera mundana e a transcendente, a esfera mundana é percebida como subordinada à esfera transcendente, perdendo, portanto, qualquer autonomia e independência.
Isso significa que se alguém está doente e não encontra remédio, não é culpa do descaso da sociedade desigual nem da falta de adequado financiamento do sus, mas sim do diabo que invadiu seu corpo. Elimina-se, desde o início, qualquer possibilidade de crítica social à dimensão mundana. O “sacrifício do intelecto”, que Weber percebia em toda forma de religiosidade, é aqui levado ao limite lógico. O mundo social, por mais injusto e perverso que seja, não só não é criticável como passa a ser, inclusive, sacralizado. Trata-se da mais perfeita legitimação da meritocracia e do mundo desigual, visto que invisibiliza as causas da opressão social.
A teodiceia da prosperidade neopentecostal é, em alto grau, uma religiosidade “afirmativa do mundo” – ao contrário de sua negação, como acontece na religiosidade ética. Como corolário, temos a liberalização dos costumes e do apelo ao consumo material. A principal novidade do neopentecostalismo é sua inversão da “negação do mundo” pentecostal clássica em uma decidida “afirmação do mundo” por conta do maior peso do componente mágico e pragmático. O sucesso do neopentecostalismo tem contribuído para influenciar todo o mercado religioso pentecostal. A própria competição pelo controle de meios de comunicação de massas, entre as diversas denominações, traz uma urgência econômica que tende a ser suprida com os dízimos e ofertas em dinheiro.
O que de fato singulariza a Igreja Universal é a exacerbação de uma luta cósmica dualista entre Deus e o diabo pelo domínio da humanidade. Uma guerra, portanto. Pelo menos quatro características principais derivam dessa luta: 1) o embate não é apenas espiritual, mas prático, envolvendo a dimensão sociopolítica e a tentativa de dominar o mundo social segundo seus preceitos, por meio da influência na política partidária e pelo proselitismo nos meios de comunicação de massa; 2) o rompimento com a salvação extramundana e seu ascetismo e rejeição do mundo, tendo como substituta a teodiceia de afirmação e dominação do mundo. Ao contrário da resignação, os neopentecostais são triunfalistas e intervencionistas; 3) como consequência lógica dessa inversão de perspectivas, temos a criação da teologia da prosperidade para o gozo do dinheiro e dos prazeres mundanos; 4) e, como corolário, a ideia de que o serviço a Deus é mediado pelo pagamento em dinheiro: o dízimo – por óbvio – mas sobretudo “ofertas” em profusão.
Notas:
[1]. Leonildo Silveira Campos, “As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro”,2005.
[2]. Ibidem.
[3]. Ibidem.
[4]. Ricardo Mariano, Neopentecostais, 1999.
[5]. Ibidem.
[6]. Ibidem
(O pobre de direita)
(Ilustração: Templo de Salomão em São Paulo, inaugurado em 31.7.2014; foto da internet, sem indicação de autoria)
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