Sem nos darmos conta, a letargia tinha chegado ao fim.
As pessoas passavam a enxergar a sociedade e a política com o filtro do escárnio divertido do comediante Coluche. As crianças viam todos os programas dele que tinham sido “proibidos” e todo mundo repetia “este é novo, acaba de sair”. A relação que ele tinha com a França estava em total sintonia com a nossa e fazia todo mundo “chorar de rir”. Ficamos contentíssimos quando ele quis se candidatar a presidente, mesmo não levando a sério a ideia de votar nele, que seria uma espécie de sacrifício do sufrágio universal. Recebemos, felizes, a notícia de que o arrogante Giscard d’Estaing tinha recebido diamantes de um chefe de Estado africano suspeito de esconder os cadáveres de seus inimigos no congelador de casa. Por uma inversão cuja origem tinha se perdido, já não era D’Estaing que representava a verdade, o progresso e a juventude, mas, sim, Mitterrand, que era a favor das rádios livres, de um reembolso para quem fizesse um aborto, da aposentadoria aos sessenta anos, das 39 horas de trabalho, da abolição da pena de morte etc. Ao seu redor pairava agora uma aura soberana que ganhava força com o retrato que circulava dele em uma cidadezinha com uma torre de igreja ao fundo, imagem que trazia uma verdade enraizada em antigas memórias.
Ficávamos calados por superstição. Confessar que acreditávamos de verdade na chegada da esquerda ao poder podia dar azar. O slogan “eleições, armadilha para idiotas” pertencia ao passado.
Mesmo vendo surgir na tela da tevê o estranho rosto pontilhado de François Mitterrand, ainda não acreditávamos. Então, percebemos que toda nossa vida adulta tinha passado sob governos que não nos diziam nada, 23 anos que pareciam, com exceção de um mês de maio, uma torrente sem esperança, cujos momentos de felicidade não vinham da política. Havia um sentimento de rancor que era como se alguma coisa tivesse sido roubada de nossa juventude. Depois de todo este tempo, em uma noite nebulosa de um domingo de maio que apagava o fracasso do outro, nos reconciliávamos com a História, ao lado de um grupo enorme de pessoas, jovens, mulheres, operários, professores, artistas e homossexuais, enfermeiras, carteiros, e tínhamos vontade de escrevê-la outra vez. Muitos momentos poderiam ter dado certo, 1936, a Frente Popular dos pais, a Libertação, 1968. Precisávamos de lirismo e de emoção, da rosa e do Panteão, de Jean Jaurès e de Jean Moulin, das canções “Les corons” e “Temps des cerises”, de Pierre Bachelet. Aquelas palavras vibravam e pareciam sinceras porque não se ouvia nenhuma delas havia muito tempo. Era necessário ocupar o passado outra vez, retomar a Bastilha, se embebedar de símbolos e de nostalgia antes de enfrentar o futuro. As lágrimas de alegria de Mendès France ao abraçar Mitterrand eram nossas. Foi engraçado ver os mais ricos assustados fugindo para a Suíça para esconder seu dinheiro, e foi preciso tranquilizar as secretárias que estavam persuadidas de que seu apartamento seria estatizado. O atentado contra João Paulo II, baleado por um turco, foi inoportuno e seria esquecido.
Tudo parecia possível. Tudo era novidade. Víamos com curiosidade os quatro ministros comunistas, como se fossem espécies exóticas, que nos deixavam perplexos por não terem o ar soviético e falarem sem o sotaque de Georges Marchais ou de André Lajoinie. Era comovente ver deputados de cachimbo e barba como os estudantes dos anos 1960. O clima das coisas estava mais leve, a vida, mais jovem. Algumas palavras voltavam à moda (burguesia, classe social) e a linguagem se libertava. Nas férias, na estrada, ouvindo as fitas cassete do Iron Maiden e as aventuras de David Grosexe no programa Carbono 14, tínhamos a sensação de que diante de nós se abria um novo tempo.
Por mais longe que se voltasse no passado, não dava para encontrar um momento com tantas coisas transformadas em tão poucos meses (algo que logo seria esquecido, não sendo mais concebível voltar à situação anterior). A pena de morte foi abolida, fixou-se o reembolso pela Interrupção Voluntária da Gravidez, os imigrantes clandestinos tiveram sua situação regularizada, a homossexualidade foi autorizada, os feriados se alongaram para uma semana, a semana de trabalho foi reduzida em uma hora etc. Mas a tranquilidade estava abalada. O governo solicitava dinheiro, nós emprestávamos, ele desvalorizava o dinheiro, impedia os francos de saírem do país para estabilizar a moeda. O clima das coisas estava ficando duro, o discurso — “rigor” e “austeridade” — ficava punitivo, como se ter mais tempo, dinheiro e direitos fosse algo ilegítimo, e já estivesse na hora de voltar a uma ordem natural imposta pelos economistas. Mitterrand não falava mais das “pessoas de esquerda”. As pessoas também já não gostavam mais tanto dele. Ele não era uma Thatcher, que tinha deixado Bobby Sands morrer e tinha mandado soldados para serem mortos nas Malvinas, mas dia 10 de maio se tornou uma lembrança incômoda, quase ridícula. As nacionalizações, os aumentos de salário, a redução do tempo de trabalho, tudo o que tínhamos achado que fora feito pela justiça e pelo advento de outra sociedade nos parecia agora apenas uma grande festa de comemoração da Frente Popular, de culto aos ideais escondidos em que talvez nem mesmo os adeptos acreditassem. A mudança esperada não ocorreu. Outra vez, o Estado se afastava de nós.
(Os anos; tradução de Marília Garcia)
(Ilustração: François Mitterrand - 27 de maio de 1981)
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