Fui ao gabinete de doutor Paim. Recebeu-me neutro. Olhou-me como se eu fosse um irracional, nada me perguntou. Antes, falou para si mesmo: " — Está magra e abatida. Fiquei aborrecido quando aquele rapazola (Carlos Fernando Fortes de Almeida) veio tirá-la. Isto não acontecerá mais, só deixará o hospital estando em condições. Você não tem família nem alguém que a ampare. Vai ter agora um médico que te ajudará. Doutor A. é um rapaz estudioso, já te recomendei a ele. Suba à Seção Tillemont Fontes, você ficará lá com ele (mudando de tom): ninguém vai fazer-lhe mal, por que tem tanto medo? Ninguém te quer mal. Tenha confiança em doutor A.". Pensei: como sabe que não tenho família nem quem me ampare? Agiu como se tudo soubesse, ou como se fosse desnecessário ouvir-me. Julga que sou oligofrênica? E ainda teve coragem de perguntar-me por que tenho medo daqui. Como finge ignorar a realidade. Então, por que se tem medo de um hospício? Entanto:
—Ninguém te quer mal. NINGUÉM TE QUER MAL". Subi ao terceiro andar, à Seção Tillemont Fontes. Ninguém me quer mal, pensava com força, como a proteger-me de todos, principalmente de dona Júlia, a enfermeira-chefe — que tem sua residência nesta seção e me detesta.
Conheci o médico e hoje falei com ele pela terceira vez. O tratamento que me faz tem o nome de psicoterapia. Não sei ainda quem é este homem de boas maneiras que me analisa. Preciso ganhar sua confiança. Deve estar tentando o mesmo comigo. Quando entrei a primeira vez no consultório disse-me: — Estou às suas ordens". Achei-o sofisticado, olhei-o com ironia e respondi: — Sou eu quem está às suas ordens". Ele ignora que manjo um pouco de psicanálise, já comecei um tratamento com outro médico e a primeira frase que ouvi foi esta: " Estou às suas ordens". Doutor A. deve estar muito prevenido contra mim. Fiz e sofri misérias, aqui dentro. Gostaria de sentir-me mais à vontade perto dele, expor-lhe claramente minhas necessidades. Ninguém no mundo necessita mais de um amigo do que eu. Ele é correto e cerimonioso. Mostro-me petulante e cínica. Dona Dalmatie acha-o pouco inteligente. Espero que ela esteja enganada. Já pratiquei esgrima, vejo-nos perfeitamente equipados: En garde. Preciso desarmar-me, ficar curada, deixar para sempre o hospital.
Há tempos escrevi um conto, no qual dizia ser aqui "uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos". Esta cidade se compõe de seis edifícios, abrigando, normalmente, creio, dois mil e quinhentos habitantes (não estou bem certa do número). Doentes mentais, ou como tais considerados. Além do hospital onde me encontro existem: IP (Instituto de Psiquiatria), onde se fazem internações (estive lá dois meses. É caótico). Bloco Médico-Cirúrgico, Isolamento (Hospital Braule Pinto — doenças contagiosas, tuberculose principalmente), Hospital Pedro II e Instituto de Neuropsiquiatria Infantil. O Isolamento fica aqui perto. A noite, se não consigo dormir, ouço gritos dos doentes de lá. Não compreendo um hospital abrigando tuberculosos no Engenho de Dentro, onde o clima é o mais quente do Rio. Há também o Serviço de Ocupação Terapêutica do Centro. Serve, ou devia servir, a todos os hospitais. Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade — talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém — parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a menor importância. Mas e eu? Serei obriga¬da a repetir sempre que não sei? E verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. E terrível, deus. Terrível.
Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhidas sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis emprestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. E hospício, deus — e tenho frio.
Estranha a minha situação no hospital. Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa do instante em que vesti este uniforme amorfo, ou, depois disto nada existindo — a não ser uma pausa branca e muda. Estou aqui e sou. E a única afirmativa, calada e neutra como os corredores longos. Ou não sou e estou aqui? — Cada momento existe independente, tal colcha formada de retalhos diferentes: os quadradinhos sofrem alteração, se observados isolados. Entanto, formam um todo. Agora escrevo. Antes fui ao banheiro, abri a torneira da pia e tomei água. Eu tomava água. Deitada, olhei longamente o quadrado branco do teto. O teto branco quadrado. De manhã bem cedo virei-me na cama, lenta: um momento. Mantive-me atenta e quieta durante muito tempo — olhos bem abertos. No corredor a guarda gritava com as mulheres. A guarda gritava. Os dias deslizam difíceis — custa. Me entrego. E me esqueço. Ou não me esqueço? As vezes as coisas ameaçam chegar até mim, transpondo as portas (mas não. Por quê? Hein? Quando? NADA). Sinto medo. Parece reinar uma ameaça constante no ar. Ou sou eu quem se alerta para o primeiro gesto? Ando pelo quarto. Completo um instante. Depois outro quadradinho: penso fino e reto, sem ameaças, livre de pesar pelo que está guardado ou morto. Penso no amanhã de manhã: o médico. O médico é o campo luminoso onde vou todos os dias. Ou sou eu quem se ilumina perto dele?
26-10-1959
(Hospício é Deus)
(Ilustração: Francisco de Goya - Casa de loucos)
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