Depois da uma da madrugada o telefone toca e me acorda. Um barulho de telefone no meio da noite é sempre feroz. Parece que alguém está tentando destruir o mundo com um devastador instrumento de metal. Como um membro da humanidade, preciso impedi-lo. Por isso me levanto da cama, vou até a sala e atendo o telefone.
A voz grave de um homem me dá a notícia. Uma mulher deixou este mundo para sempre. A voz era de seu marido. Pelo menos foi o que ele disse. E depois comunicou: “Minha mulher se matou na quarta-feira da semana passada. Em todo caso, achei que tinha que avisá-lo”. Em todo caso . Não percebi um pingo de emoção na voz dele. Parecia o texto de um telegrama. Praticamente sem nenhum espaço entre as palavras. Um genuíno comunicado. Um fato sem ornamentos. Ponto final.
O que respondi a ele? Devo ter dito alguma coisa, mas não me lembro. De qualquer forma, seguiu-se um silêncio. Um silêncio como se observássemos um buraco fundo que havia entre nós no meio da rua. Ele desligou o telefone sem falar mais nada. Como se pousasse com cuidado uma frágil obra de arte no chão. Eu permaneci de pé no mesmo lugar por um tempo, segurando o telefone na mão, sem que isso tivesse algum significado especial. Usava uma camiseta branca e uma cueca azul.
Não sei como ele ficou sabendo de mim. Será que ela lhe disse que eu era um ex-namorado? Para quê? E como ele descobriu meu telefone de casa (se o número não constava da lista telefônica)? Para começar, por que eu recebi a notícia? Por que o marido tinha que me ligar só para avisar da morte dela? Não creio que ela tenha pedido isso em testamento. Fomos namorados há muito tempo. E, desde que terminamos, nunca mais nos vimos. Nem sequer falamos ao telefone.
Bem, isso não importa. O problema é que ele não me deu nenhuma explicação. Achou que tinha que me dar a notícia do suicídio dela. E de alguma forma conseguiu meu telefone. Mas achou que não havia necessidade de me explicar os detalhes. Parecia que a intenção dele era me deixar entre o conhecimento e a ignorância. Por quê? Para me fazer refletir?
Sobre o quê?
Não sei. Os pontos de interrogação só aumentavam. Como quando uma criança pressiona aleatoriamente seu carimbo de borracha no caderno.
De modo que até hoje não sei o motivo do seu suicídio nem o meio que ela escolheu para acabar com a própria vida. Mesmo querendo saber, não tenho como. Não sabia onde ela morava. Para começar, nem sabia que era casada. Naturalmente não sabia seu novo sobrenome (o homem não o disse ao telefone). Por quanto tempo ela tinha sido casada? Teria filho(s)?
Mas aceitei a notícia do jeito que ela me foi dada. Não desconfiei de nada.
Depois que terminamos nossa relação, ela continuou vivendo neste mundo, (provavelmente) apaixonou-se por alguém, casou-se e, por algum motivo e de alguma forma, deu fim à própria vida na quarta-feira passada. Em todo caso. De fato havia algo na voz dele que estava profundamente atado ao mundo dos mortos. Consegui ouvir essa conexão vívida em meio ao silêncio noturno. Consegui enxergar também a tensão da linha bem esticada e o seu brilho intenso. Nesse sentido — de forma intencional ou não —, foi uma opção acertada ele me ligar depois de uma da madrugada. Se fosse uma da tarde, provavelmente as coisas não teriam sido assim.
Quando finalmente devolvi o telefone ao gancho e voltei à cama, minha mulher estava acordada.
— Que telefonema foi esse? Quem morreu? — ela disse.
— Ninguém morreu. Foi engano — eu disse. Com uma voz sonolenta e lânguida.
Mas claro que ela não acreditou nas minhas palavras. Pois na minha voz também havia um vestígio de morte. O choque provocado por uma morte recente possui um forte poder de contágio. Ele é transmitido através da linha telefônica na forma de pequenos tremores, muda o tom das palavras e faz com que o mundo se sincronize com a sua vibração. Mas minha mulher não disse mais nada. Deitamos em meio ao breu da noite e ficamos prestando atenção na quietude que havia ali, cada um absorto em seus pensamentos.
Então ela foi a terceira ex-namorada minha que optou por acabar com a própria vida. Pensando bem, ou melhor, mesmo não pensando bem, é uma taxa de mortalidade muito alta. É inacreditável. Afinal, eu não namorei tantas mulheres assim. Não consigo mesmo compreender por que elas acabaram com a própria vida tão novas, uma após a outra, e por que elas precisaram acabar com a própria vida. Espero que a causa não esteja em mim. Espero que eu não tenha nenhuma relação com a morte delas. Espero também que elas não tenham me considerado uma testemunha, um historiador. Espero isso do fundo do coração. E, como posso dizer, ela — a terceira ex-namorada (provisoriamente vou chamála de Eme, por conveniência) — não era, de jeito nenhum, o tipo de pessoa que cometeria suicídio. Afinal, ela era protegida e vigiada pelos marinheiros destemidos do mundo inteiro.
Não posso contar em detalhes como era Eme, onde e como nos conhecemos e o que fizemos. Peço desculpas, mas, se revelar esses detalhes, terei problemas. Provavelmente causarei transtornos às pessoas próximas que (ainda) estão vivas. Por isso agora só posso revelar que há muito tempo tivemos uma relação bem íntima durante um período, mas por alguma razão acabamos nos afastando.
Para falar a verdade, conheci Eme quando eu tinha catorze anos. Na realidade não foi bem assim, mas pelo menos agora quero presumir isso. Nos conhecemos numa sala de aula quando tínhamos catorze anos. Se não me engano, na aula de biologia. A matéria era amonites, celacantos ou algo assim. Ela estava sentada ao meu lado. Eu disse: “Esqueci minha borracha. Você me empresta se tiver uma sobrando?”. Ela partiu a dela ao meio e me deu a metade. Com um sorriso nos lábios. Literalmente me apaixonei num piscar de olhos. Ela era a garota mais bonita que eu havia visto até então. Pelo menos foi isso que pensei naquela hora. Quero pensar que Eme foi uma garota assim para mim. Que nos conhecemos desse jeito na sala de aula da escola. Pelo intermédio secreto e irresistível de amonite, celacanto ou algo assim. Pois, partindo desse pressuposto, muitas coisas fazem sentido.
Eu tinha catorze anos, funcionava bem como um produto recém-saído da fábrica e naturalmente tinha uma ereção toda vez que soprava um vento quente do oeste. Afinal, estava nessa idade. Mas ela não me causava uma ereção. Ela simplesmente suplantava todos os tipos de vento. Não só os ventos do oeste: ela era incrível a ponto de anular qualquer vento vindo de qualquer direção. Não podia ter uma ereção imunda diante de uma garota tão perfeita assim. Era a primeira vez na vida que tinha esse tipo de sentimento em relação a uma garota.
Sinto que foi assim que conheci Eme. Na verdade não foi assim, mas presumindo isso as coisas fazem sentido. Eu tinha catorze anos, ela também. Essa era a idade correta para nos conhecermos. Na verdade, nosso encontro deveria ter acontecido dessa forma.
Mas depois Eme sumiu de repente. Para onde teria ido? Perdi Eme. Aconteceu alguma coisa e, quando eu estava distraído olhando para o lado, ela partiu para algum lugar. Até um tempo atrás ela estava logo ali, mas quando me dei conta já havia desaparecido. Possivelmente foi levada para Marselha ou Costa do Marfim, seduzida por algum marinheiro esperto. Minha decepção foi mais profunda do que qualquer mar que eles atravessaram. Mais profunda do que qualquer mar onde habitam lulas gigantescas e dragões. Fiquei decepcionado comigo mesmo. Não conseguia acreditar em mais nada. Que coisa! Amava tanto a Eme. Ela era tão importante para mim. Precisava tanto dela. Por que fui olhar para o lado?
Mas, em contrapartida, desde então Eme passou a estar em todo lugar. Eu a via em toda parte. Ela estava em vários lugares, em vários momentos e em várias pessoas. Sei disso. Guardei a metade da borracha em um saco plástico e a carregava sempre comigo. Como se fosse um talismã. Como se fosse uma bússola que me indicava a direção. Se a carregar no meu bolso, um dia conseguirei encontrar Eme em algum lugar deste mundo. Acreditava nisso. Ela só foi levada para longe a bordo de um grande navio, seduzida pelas falácias de um marinheiro experiente. Ela era uma pessoa que queria sempre acreditar em algo. Que era capaz de partir uma borracha nova no meio sem hesitar e oferecer a metade.
Tentei reunir o maior número possível de fragmentos dela em vários lugares, através de várias pessoas. Mas não passavam de fragmentos. Por mais que juntasse, fragmentos não passavam de fragmentos. A essência dela era sempre fugidia, como uma miragem. E o horizonte era infinito. Tanto na terra como no mar. Fui atrás dela incessantemente. Fui a Bombaim, Cidade do Cabo, Reykjavík e até Bahamas. Fui a todas as cidades portuárias. Mas, quando eu chegava, ela já tinha partido. Na cama desarrumada ainda restava um pouco do seu calor. A echarpe com estampa de pequenas espirais que ela usara ainda estava sobre o encosto da cadeira. O livro aberto estava virado para baixo sobre a mesa. A meia-calça um pouco úmida pendurada no banheiro. Mas ela não estava lá. Os ágeis marinheiros do mundo todo sentiam meu cheiro e rapidamente a escondiam em algum lugar. Naturalmente eu já não tinha mais catorze anos. Estava mais bronzeado e mais resistente. Minha barba estava mais densa, e eu sabia a diferença entre uma metáfora e uma comparação. Mas uma parte de mim não mudava, permanecia com catorze anos. E essa eterna parte adolescente aguardava sem pressa o vento do oeste acariciar o meu pênis inocente. Certamente, o lugar onde soprava o vento do oeste era onde Eme estaria.
Eme era assim para mim.
Não era de ficar em um só lugar.
Mas também não era o tipo de pessoa que cometeria suicídio.
Nem eu sei direito o que estou querendo dizer aqui. Possivelmente estou tentando descrever a essência e não um fato. Mas descrever a essência e não um fato é como marcar encontro com alguém no lado oposto da lua. É um lugar completamente escuro e não tem nenhuma sinalização. Além de tudo, é vasto demais. Enfim, o que eu quero dizer é que Eme era uma mulher por quem eu deveria ter me apaixonado com catorze anos. Mas na realidade eu me apaixonei por ela muito tempo depois, e nessa época (infelizmente) ela já não estava mais com catorze anos. Nós erramos o momento de nos conhecermos. Como quem erra a data do encontro. O horário e o local estão certos. Mas a data, não.
Mas dentro de Eme também habitava a menina de catorze anos. Essa menina dentro dela não era, em absoluto, parcial — era inteira. Se prestasse atenção, eu conseguia ver de relance essa menina transitar dentro de Eme. Quando transávamos, Eme ora envelhecia, ora virava menina nos meus braços. Ela sempre transitava assim no tempo individual. Eu amava essa Eme. Nessas horas eu a abraçava com força a ponto de ela sentir dor. Talvez eu a abraçasse forte demais. Mas eu tinha que fazer isso. Não queria que ela partisse.
Mas naturalmente chegou a hora de perdê-la mais uma vez. Afinal, os marinheiros do mundo inteiro estavam de olho nela. Sozinho eu não seria capaz de protegê-la. Qualquer um dá uma olhada para o lado de vez em quando. Eu precisava dormir e ir ao banheiro. Precisava lavar a banheira também. Cortar a cebola e tirar o talo da vagem. Precisava calibrar os pneus do carro. Assim, acabamos nos afastando. Ou, melhor dizendo, ela me deixou. Certamente havia a sombra inegável do marinheiro. Uma sombra densa e autônoma que, sozinha, parecia subir facilmente a parede de um prédio. A banheira, a cebola, a calibragem não passavam de fragmentos da metáfora que essa sombra espalhava pelo chão, como se fossem tachinhas.
Será que alguém consegue entender o tamanho da minha agonia, a profundidade do abismo em que caí quando ela partiu? Creio que não. Nem eu consigo mais me lembrar direito. O quanto eu sofri? Como foi a dor do meu coração? Como seria bom se existisse uma máquina neste mundo capaz de medir corretamente a tristeza. Assim seria possível deixá-la registrada em números. Seria perfeito se essa máquina coubesse na palma da mão. Penso nisso toda vez que vou calibrar o pneu.
E, no final das contas, ela morreu. Um telefonema no meio da noite me dá a notícia. Não sei o lugar, o meio, o motivo nem o objetivo, mas de qualquer forma Eme resolveu dar fim à própria vida e conseguiu. Partiu (provavelmente) em silêncio deste mundo real. Mesmo os marinheiros do mundo todo, fazendo uso de toda sua falácia habilidosa, não conseguem mais resgatar — nem sequestrar — Eme, que está no profundo mundo dos mortos. Você também, se prestar atenção no meio da noite, conseguirá ouvir o canto fúnebre dos marinheiros ao longe.
Com a morte dela, sinto que perdi para sempre a parte de mim que tinha catorze anos. Como a camisa aposentada de beisebol, a parte de mim que tinha catorze anos foi arrancada da minha vida pelas raízes. Ela foi guardada em algum cofre robusto que foi fechado com uma chave complexa e afundado no mar. Possivelmente ele não será aberto no próximo bilhão de anos. Está sendo observado em silêncio pelos amonites e celacantos. O encantador vento do oeste já parou. Os marinheiros do mundo inteiro estão lamentando a morte dela. E os antimarinheiros do mundo inteiro também.
Quando recebi a notícia da morte de Eme, senti que eu era o segundo homem mais solitário do mundo.
O homem mais solitário do mundo deveria ser o marido dela. Deixo reservado esse posto para ele. Não sei como é o marido dela. Não sei a idade, a profissão, se é que tem alguma, não tenho nenhuma informação sobre ele. Só sei que ele tem a voz grave. Mas esse fato não me diz nada concreto. Seria ele marinheiro?
Ou não? Se for o último caso, temos uma parceria. Mas se for o primeiro... Mesmo assim eu me compadeço dele. Gostaria de ajudá-lo de alguma forma.
Mas não tenho como me aproximar dele. Não sei o seu nome nem onde mora. Talvez ele já tenha perdido nome e endereço. Afinal, é o homem mais solitário do mundo. Durante minha caminhada, sento na frente de uma estátua de unicórnio (no meu trajeto sempre passo pelo parque em que ela está) e, observando o chafariz com água refrescante, penso muito no marido dela. E imagino, a meu modo, como é ser o homem mais solitário do mundo. Eu já sei como é ser o segundo mais solitário. Mas ainda não sei como é ser o homem mais solitário do mundo. Há um abismo entre ser o segundo mais solitário e o mais solitário do mundo. Possivelmente. Ele não é só profundo. É assustadoramente largo. Tão largo que há, no fundo do abismo, um monte alto formado por cadáveres de pássaros que não conseguiram atravessar de uma ponta à outra e caíram.
Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre os “homens sem mulheres”. Em um plural infinitamente indiferente.
Somente os homens sem mulheres conseguem compreender o tamanho da dor e do sofrimento de ser homens sem mulheres. É perder o vento encantador do oeste. É ser privado para sempre — um bilhão de anos talvez seja um tempo aproximado de “para sempre” — dos catorze anos. É ouvir o canto melancólico e doloroso dos marinheiros ao longe. É se esconder no fundo do mar escuro junto dos amonites e celacantos. É ligar depois da uma da madrugada para a casa de alguém. É receber um telefonema depois da uma da madrugada. É marcar um encontro com um desconhecido em algum lugar entre o conhecimento e a ignorância. É derramar lágrimas na pista seca enquanto calibra o pneu.
De qualquer forma, na frente dessa estátua de unicórnio, eu rezo para que ele consiga se recuperar um dia. Rezo para que ele se lembre somente das coisas verdadeiramente importantes — que, por acaso, nós chamamos de essência — e que ele consiga se esquecer da maioria dos fatos complementares. Desejo que ele se esqueça até do fato de ter se esquecido desses fatos. Desejo isso do fundo do coração. Não é incrível? O segundo homem mais solitário do mundo está se compadecendo do homem mais solitário do mundo (que nunca conheceu), e está rezando por ele.
Mas por que ele teve o trabalho de me ligar? Não o estou censurando, mas até hoje tenho essa dúvida, que pode ser chamada de fundamental. Por que ele sabia de mim? Por que se importou comigo? Acho que a resposta é simples. Provavelmente Eme falou de mim, falou algo de mim ao marido. Só pode ter sido isso. Não faço a menor ideia do que ela lhe contou. Que valor, que significado eu possuo, como ex-namorado, para ela (ter o trabalho de) fazer comentários sobre mim? Seria algo grave relacionado à sua morte? Será que minha existência lançou alguma sombra sobre a morte dela? Talvez Eme tenha comentado que o meu pênis tem um formato bonito. Ela costumava apreciar o meu pênis na cama no início da tarde. Colocava-o na palma da mão com cuidado, como quem admira uma joia antiga incrustada em uma coroa indiana. “O formato é muito bonito”, ela dizia. Não sei bem se dizia a verdade.
Será que o marido de Eme ligou para mim por causa disso? Depois de uma da madrugada, em respeito ao formato do meu pênis? Não, não pode ser. Além do quê, o meu pênis não tem nada de mais. Na melhor das hipóteses, pode-se dizer que é comum. Pensando bem, o senso estético de Eme nunca foi muito confiável. Seu senso de valores era curioso e bem diferente do de outras pessoas.
Possivelmente (eu só posso imaginar) ela lhe contou que, na sala de aula da escola, me dera a metade da sua borracha. Sem nenhum motivo particular, sem malícia, como se fosse uma lembrança singela. Mas, nem é preciso dizer, ele ficou com ciúmes quando soube disso. Mesmo que Eme tenha transado com dezenas de marinheiros, ele sentiu ciúmes bem mais intensos de mim, que ganhei a metade da borracha dela. É normal. O que são dezenas de marinheiros destemidos? Afinal, Eme e eu tínhamos catorze anos, e nessa época eu tinha uma ereção só com o soprar do vento oeste. Oferecer a metade da borracha nova a um rapaz assim é uma coisa bem grave. É como oferecer uma dúzia de celeiros velhos a um grande tornado.
Desde então, toda vez que passo diante da estátua do unicórnio, permaneço um tempo sentado ali e penso nos homens sem mulheres. Por que nesse lugar? Por que unicórnio? Quem sabe o unicórnio também faça parte dos homens sem mulheres. Pois nunca vi um casal de unicórnios. Ele — com certeza é macho — está sempre sozinho, com o chifre pontudo levantado vigorosamente para o alto. Talvez devêssemos elegê-lo representante dos homens sem mulheres e considerá-lo símbolo da solidão que carregamos. Talvez devêssemos marchar silenciosamente nas avenidas do mundo inteiro munidos de distintivos com formato de unicórnio no peito ou no boné. Sem músicas, sem bandeiras, sem confetes. Possivelmente (acho que estou usando essa palavra em excesso. Possivelmente).
É muito fácil ser um dos homens sem mulheres. Basta amar profundamente uma mulher e ser abandonado por ela. Na maioria das vezes (como você sabe), são os marinheiros astutos que as levam. Eles seduzem as mulheres com bajulações e as carregam rapidamente para Marselha ou para a Costa do Marfim. Não há praticamente nada que possamos fazer diante deles. Ou elas podem dar fim à própria vida, sem a ajuda dos marinheiros. Nesse caso também não há quase nada que possamos fazer. Os marinheiros tampouco.
De uma forma ou de outra, você também vai ser um dos homens sem mulheres. De repente. E, uma vez que você se tornar um dos homens sem mulheres, a cor da solidão se impregnará no seu corpo. Como se fosse uma mancha de vinho tinto em um tapete de cor clara. Por maior que seja o seu conhecimento sobre arrumação doméstica, limpar essa mancha será um trabalho assustadoramente árduo. A mancha pode clarear um pouco com o tempo, mas permanecerá lá até o seu último suspiro. Ela terá a qualificação de mancha e até poderá adquirir direito à voz pública na condição de mancha. Você não terá outra opção a não ser conviver com a lenta mudança da sua cor, junto com o seu contorno polissêmico.
Nesse mundo a ressonância do som é diferente. A secura da garganta é diferente. O crescer da barba é diferente. O atendimento do funcionário do Starbucks é diferente. O solo de Clifford Brown também parece diferente. O fechar da porta do metrô também é diferente. A distância para caminhar entre Omotesandô e Aoyama Icchôme também é muito diferente. Mesmo que depois você encontre outra mulher, por mais encantadora que ela seja (ou melhor, quanto mais encantadora ela for), você estará sempre pensando no momento em que irá perdê-la. A sombra sugestiva dos marinheiros, o som da língua estrangeira que eles falam (grego? estoniano? tagalo?) deixa você inseguro. Os nomes exóticos dos portos do mundo todo o amedrontam. Isto porque você já sabe o que é ser parte dos homens sem mulheres. Você é um tapete persa de cor clara e a solidão é uma mancha de bordeaux que jamais sai. Assim, a solidão é trazida da França, e a dor da ferida é trazida do Oriente Médio. Para os homens sem mulheres, o mundo é uma mescla vasta e dolorosa, é a personificação do outro lado da lua.
Eme e eu namoramos por cerca de dois anos. Não foi muito tempo. Mas foram dois anos intensos. Foram só dois anos, podemos dizer. Ou também podemos dizer: foram dois longos anos. Naturalmente isso varia conforme o ponto de vista. Eu disse namoramos, mas só nos encontrávamos duas ou três vezes por mês. Ela tinha os motivos dela, e eu tinha os meus. E, infelizmente, não estávamos mais com catorze anos. Esses vários motivos acabaram com a nossa relação. Por mais forte que a abraçasse para não perdê-la, a sombra densa e escura do marinheiro espalhava as tachinhas pontiagudas da metáfora.
O que lembro ainda hoje é que Eme amava “músicas de elevador”. Músicas que lembram as que tocam em elevadores — como Percy Faith, Mantovani, Raymond Lefèvre, Frank Chacksfield, Francis Lai, 101 Strings, Paul Mauriat, Billy Vaughn, esse tipo de música. Ela gostava dessas músicas, inofensivas (do meu ponto de vista). Instrumentos de corda elegantes, flautas que pairam agradavelmente no ar, metais com surdina, um som de harpa que acaricia o coração. Melodia charmosa que jamais se desfaz, harmonia agradável como um doce, gravação com ressonância adequada.
Quando dirigia sozinho, eu costumava ouvir rock ou blues. Derek and Dominos, Otis Redding e The Doors. Mas Eme não me deixava colocar essas músicas de jeito nenhum . Ela sempre trazia uma dúzia de fitas com músicas de elevador em uma sacola de papel e as tocava uma em seguida da outra. Passeávamos aleatoriamente de carro e enquanto isso ela mexia os lábios em silêncio, acompanhando “13 Jours en France”, de Francis Lai. Seus lábios sensuais e encantadores com batom suave. Ela tinha quase dez mil fitas com músicas de elevador. E tinha um conhecimento colossal sobre músicas inofensivas do mundo todo. Seria capaz de abrir um “museu de músicas de elevador”.
Era assim também na hora do sexo. Sempre colocava uma música de elevador para tocar. Quantas vezes ouvi “Theme from a Summer Place”, de Percy Faith, ao fazer amor com ela? Fico sem jeito de revelar isso, mas até hoje me excito quando escuto essa música. Minha respiração se acelera e meu rosto fica quente. Devo ser o único homem na face da Terra que fica excitado escutando a introdução dessa música. Não, talvez o marido dela também fique. Vamos deixar reservado um espaço para ele. Vamos reformular a frase. Deve haver só dois homens (incluindo eu) na face da Terra que ficam excitados escutando a introdução dessa música. Assim está melhor.
Espaço.
— Eu gosto desse tipo de música — disse Eme certa vez. — Por questão de espaço.
— Questão de espaço?
— O que eu quero dizer é que, quando ouço esse tipo de música, sinto que estou num espaço amplo e vazio. Esse lugar é realmente espaçoso e não há divisórias. Não há parede nem teto. E aí não preciso pensar em nada, não preciso dizer nada, não preciso fazer nada. Basta estar ali. Basta fechar os olhos e entregar o corpo ao belo som das cordas. Não há dor de cabeça, sensibilidade ao frio, menstruação ou ovulação. Nesse lugar tudo é belo, tranquilo e não há estagnação. Nada mais é exigido.
— É como se estivesse no céu?
— É — disse Eme. — Acho que as músicas de Percy Faith tocam como pano de fundo no céu. Olha, você pode fazer mais carinho nas minhas costas?
— Posso. Claro — eu disse.
— Seu carinho nas costas é muito bom.
Eu e Henry Mancini nos entreolhamos sem que ela percebesse. Com um leve sorriso nos lábios.
Obviamente eu também perdi as músicas de elevador. Penso nisso toda vez que dirijo sozinho. Imagino que uma garota desconhecida poderia abrir de repente a porta do passageiro enquanto estou no sinal vermelho, sem dizer nada, sem olhar para mim, e inserir sem permissão a fita com a música “13 Jours en France”. Até chego a sonhar com isso. Mas, naturalmente, isso não acontece. Para começar, nem tenho mais toca-fitas. Hoje, quando dirijo, escuto as músicas do iPod conectado com o cabo USB . Claro que não tenho as músicas de Francis Lai nem de 101 Strings. Tenho apenas Gorillaz e Black Eyed Peas.
Perder uma mulher é isso. Em alguns casos, perder uma mulher é perder todas as mulheres. Assim nos tornamos homens sem mulheres. Perdemos também Percy Faith, Francis Lai e 101 Strings. Perdemos amonites e celacantos. Obviamente também perdemos suas costas charmosas. Eu costumava acariciar de forma compenetrada as costas de Eme acompanhando o compasso ternário suave de “Moon River”, conduzida por Henry Mancini. “Waitin’ ‘round the bend, my huckleberry friend... ” Mas tudo isso já desapareceu. Só restaram a metade da borracha velha e o canto triste dos marinheiros ao longe. E o unicórnio do lado do chafariz que mantém seu chifre para o alto, solitário.
Espero que agora Eme esteja no céu — ou em algum lugar parecido — escutando “Theme from a Summer Place”. Espero que ela esteja envolvida carinhosamente nessa música espaçosa e sem divisórias. Espero que não esteja tocando Jefferson Airplane (possivelmente Deus não é tão cruel a esse ponto. Espero). E desejo que, escutando “Theme from A Summer Place” tocada em pizzicato, ela se lembre de mim de vez em quando. Mas não espero tanto. Mesmo sem mim, rezo para que ela esteja vivendo feliz e tranquila junto com as imortais músicas de elevador.
Como um dos homens sem mulheres, eu rezo do fundo do coração. Parece que não há nada que eu possa fazer agora a não ser rezar. Por enquanto. Possivelmente.
(Homens sem mulheres; tradução de Eunice Suenaga)
(Ilustração : escultura de Edgar Tolson - Temptation of Adam – 1974)