Os representantes da África no Novo Mundo vieram, e trabalharam, e morreram, e deixaram suas pegadas, mas nenhum pensamento registrado.
De todos os milhões transportados da África para o continente americano, só restou um homem. Ele se chama Cudjo Lewis e, no momento, vive em Plateau, Alabama, um subúrbio de Mobile. Esta é a história desse Cudjo.
Encontrei Cudjo Lewis pela primeira vez em julho de 1927. Dr. Franz Boas me enviou com o objetivo de obter para o Dr. Carter G. Woodson, do Journal of Negro History, um relato em primeira mão do ataque que trouxe Cudjo para os Estados Unidos e para a escravização. Conversei com ele em dezembro daquele mesmo ano e novamente em 1928. Assim, de Cudjo e dos registros da Sociedade Histórica de Mobile obtive a história do último carregamento de pessoas escravizadas trazido para os Estados Unidos.
Os quatro homens responsáveis por essa última negociação de carne humana, antes de a rendição de Lee em Appomattox ter dado fim aos 364 anos do comércio de pessoas escravizadas, foram os três irmãos Meaher e o capitão [William “Bill”] Foster. Jim, Tim e Burns Meaher eram nativos do Maine. Eles tinham um moinho e um estaleiro no rio Alabama, na boca do riacho Chickasabogue (hoje chamado riacho Three-Mile), onde construíram embarcações velozes para furar bloqueios, obstruir expedições e para o comércio nos rios. O capitão Foster estava associado aos irmãos Meaher nos negócios. [...]
O Clotilda era o navio mais rápido que eles tinham, e foi o selecionado para fazer a viagem. Parece que o capitão Foster era o verdadeiro proprietário da embarcação. [...] O Clotilda escapuliu de Mobile, tão secretamente quanto foi possível, para não provocar a curiosidade do governo. [...] ele ancorou em segurança no golfo da Guiné, antes de Uidá. [...] O capitão Foster rapidamente desembarcou com seus barris de moedas e de bens comerciais. “Seis negros robustos” foram designados para se encontrar com ele e conduzi-lo à “presença do príncipe do Reino do Daomé”[...] O rei do Daomé, havia muito tempo, concentrava todos os seus recursos em fornecer pessoas escravizadas para o mercado estrangeiro. Havia “um mercado ativo de escravizados com preço de 50 a 60 dólares a peça em Uidá. Uma enorme quantidade de negros e negras era reunida ao longo da costa para exportação”.[...] Quando o rei daomeano marchava contra um lugar, ele escondia de seu exército “o nome ou o lugar contra o qual ele os levou”, “até que estivessem a um dia de marcha” de seu objetivo. “A investida era geralmente à luz do dia e todos os tipos de artimanha, sigilo e engenhosidade eram usados para surpreender o inimigo.” Com ou sem resistência, “todos os mais velhos eram imediatamente decapitados” e os jovens levados para os barracões em Uidá.[...]
À aldeia que esses africanos construíram depois que obtiveram liberdade deram o nome de “African Town”. A cidade é agora chamada Plateau, Alabama. O nome novo foi resultado da ferrovia Mobile & Birmingham (hoje parte do Sistema Ferroviário do Sul) construída atravessando [a cidade]. Mas o tom dominante ainda é africano.
Já sabendo dessas coisas, mais uma vez procurei a casa antiga do homem chamado Cudjo. Esse homem peculiar que sobre si mesmo diz: “Edem etie ukum edem etie upar”: A árvore de duas madeiras; literalmente, duas árvores que cresceram juntas. Uma parte ukum (mogno) e uma parte upar (ébano). Ele quer dizer: “Em parte um homem livre, em parte livre.” O único homem na terra que tem no coração a lembrança de seu lar africano; os horrores de um ataque para escravizar pessoas; o barracão; o canto quaresmal dos escravizados; e que tem 67 anos de liberdade em uma terra estrangeira.
Como uma pessoa consegue dormir com essas memórias sob o travesseiro? Como um pagão vive com um Deus cristão? Como o nigeriano “bárbaro” suportou o processo de civilização?
Fui enviada para perguntar:
“O rei de Daomé, você sabe, ele ficou muito rico pegan’o escravos. Ele mantém o exército dele o tempo todo atacando pra pegá pessoas pra vender então o povo de Daomé num tem nenhum tempo de plantar jardim e fazer comida pra eles mesmos.
“Talvez o rei de Daomé nunca chega a atacar em Takkoi, mas um traidor de Takkoi vai no Daomé. Ele um homem muito mau e o rei (de Takkoi) diz: ‘Sai dessa nação.’ Aquele homem quer grandes honras no exército então ele vai direto pro Daomé e diz pro rei: ‘Eu mostra pra você como ocupa Takkoi.’ Ele conta pra eles o segredo dos portões.
“Por isso, você m’entende, eles chega fazê guerra, mas a gente num sabe qu’eles vêm pra lutar contra a gente. Eles marcha a noite toda e a gente na cama dorme. A gente num sabe de nada.
“Perto de de manhã quando o pessoal que dorme acorda co’o barulho quando as pessoas de Daomé quebra o Grande Portão. Eu não acordado ainda. Eu ainda na cama. Eu escuta o portão quando eles quebra ele. Eu escuta o grito dos soldados quando eles despedaça o portão. Por isso eu pula da cama e olha. Eu vê os muitos soldados co’ fuzil francês na mão e a faca grande. Eles têm as mulheres soldados também e eles corre co’a faca grande e faz barulho. Eles pega pessoas e eles serra o pescoço desse jeito com a faca então eles torce a cabeça e ela sai do pescoço. Ai, Senhô, Senhô!
“Eu vê as pessoas sê morta muito rápido! Os véios, eles tenta fugir da casa, mas eles morto na porta, e as mulheres soldados têm a cabeça deles. Ai, Senhô!”
Cudjo chorou com pesar e cruzou os braços no peito com os dedos tocando os ombros. A boca e os olhos dele escancarados como se ainda pudesse ver aquele espetáculo aterrorizante.
— Todas as pessoas, elas corre pros portões pra conseguir esconder no arbusto, você m’entende. Uns nunca alcança o portão. As mulheres soldado pega os jovens e amarra eles pelo pulso. Nenhum homem consegue ser tão forte igual as mulheres soldados do Daomé. Então elas corta a cabeça. Alguns elas quebra o osso do maxilar enquanto as pessoas num ‘tão mortas. Ai, Senhô, Senhô, Senhô! As pobres pessoas co’o maxilar de baixo arrancado do rosto! Eu corre rápido pro portão, mas uns homens de Daomé eles lá também. Eu corre pro próximo portão, mas eles lá também. Eles cerca a cidade toda. Eles em todos os oito portões.
“Um portão parece que ninguém lá então eu acelera e corre na direção do arbusto. Mas o homem de Daomé, eles lá também. Logo qu’eu sai pelo portão eles me agarra e me amarra o pulso. Eu imploro pra eles, por favor, me deixa ir de volta pra minha mãe, mas eles não presta atenção no que eu fala não. Eles me amarra co’o resto.
“Enquanto eles me pega, o rei da minha nação ele sai pelo portão, e eles pega ele. Eles percebe ele é o rei então eles muito feliz. Por isso, você m’entende, eles leva ele pro arbusto onde o rei de Daomé espera co’alguns chefes ‘té Takkoi ser destruída, quando ele vê nosso rei, ele diz pros soldados deles: ‘Traz pra mim o mudador de palavras (intérprete público).’ Quando o mudador de palavras veio ele diz: ‘Pergunta esse homem por que ele coloca a fraqueza contr’o Leão de Daomé?’ O homem mudou as palavras pra nosso rei. Akia’on escuta. Então ele diz pro rei do Daomé: ‘Por que você não luta como homens? Por que você num chega de dia pra qu’a gente pode encontrar cara a cara?’ O homem mudô as palavras pro rei de Daomé saber o qu’ele falou. Então o rei de Daomé diz: ‘Entra na fila pra ir pra Daomé pras nações podê vê qu’eu conquista você e vende Akia’on no barracão.’
“Akia’on diz: ‘Eu num vai pra Daomé. Eu nasci um rei em Takkoi onde meu pai e os pais dele mandavam antes d’eu nascer. Desde qu’eu me tornei um homem eu comando. Eu morro um rei, mas eu não ser escravo.’
“O rei de Daomé pergunta pra ele: ‘Você não vai pra Daomé?’
“Ele diz pra ele: ‘Não, ele num sai da terra onde ele é o rei.’
“O rei de Daomé num fala mai’. Ele olha pro soldado e aponta pro rei. Uma soldado mulher se aproxima co’o facão e corta a cabeça do rei fora e pega ela do chão e entrega ela pro rei de Daomé. (Ver nota 4)96
“Quando eu vê o rei morto, eu tenta ‘scapar dos soldados. Eu tenta chegar no arbusto, mas todos os soldados me alcança ante’ d’eu chegá lá. Ai, Senhô, Senhô! Quando eu pensa sobr’aquele tempo eu tenta não chorar mai’. Meus olhos, eles não chora mai’, mas as lágrimas corre dentro de mim o tempo todo. Quando os homens me puxa co’eles eu chama o nome da minha mãe. Eu num sabe onde ela está. Eu não vê ninguém minha família. Eu num sabe onde eles está. Eu implora pros homens me deixar procurá meus pais. Os soldados fala eles não têm ouvidos pra choro. O rei de Daomé chega pra caçar escravo pra vender. Então eles me amarra na fila co’o resto.
“O sol está nascendo agora.
“O dia todo eles faz a gente andar. O sol tão quente!
“O rei de Daomé, ele anda dentro da rede e os chefes co’ele eles têm rede também. Pobre de mim eu anda. Os homens de Daomé, eles amarra a gente na fila pra ninguém fugir. Na mão deles eles têm a cabeça das pessoas qu’eles mata em Takkoi. Alguns têm duas, três cabeças eles carrega co’eles pra Daomé.
“Eu tão triste por meu lar qu’eu num fica co’ fome naquele dia, mas eu alegre quando a gente bebe a água.
“Ante’ do sol baixar a gente chega na cidade. Tem uma bandeira vermelha no arbusto. O rei de Daomé manda homens co’o mudador de palavras pra cidade e o chefe chega dentro da rede e fala co’o rei. Então ele abaixa a bandeira vermelha e pendura a bandeira branca. Que que eles fala, Cudjo num sabe. Mas ele traz pro rei um presente de inhame e milho. Os soldados faz fogo e cozinha a gororoba e come. Então a gente segue na marcha. Toda cidade o rei manda mensagem.
“A gente dorme no chão aquela noite, mas o rei e os chefes pendura a rede deles numa árvore e dorme nelas. Então nada num machuca eles no chão. Pobre de mim eu dorme no chão e chora. Eu num acostumado co’ nenhum chão. Eu pensa também sobre meus pais e eu chora. A noite toda eu chora.
“Quando o sol levanta a gente come e marcha pra Daomé. O rei manda mensagem pra todas as cidades qu’a gente passa e o líder vem. Se eles têm uma bandeira vermelha, isso significa qu’eles concorda eles num vai pagar nenhuma taxa pra Daomé. Eles fala qu’eles vai lutá. Se uma bandeira branca, eles paga pra Daomé o qu’eles pede pra eles. Se uma bandeira preta, isso significa qu’o governante está morto e o filho não véio suficiente pra assumir o trono. No solo da Áffica, quando eles vê a bandeira preta, eles num importa. Eles sabe qu’ia ser se aproveitar da situação se eles faz guerra quando ninguém no comando.
“As cabeças dos homens de Daomé começa a cheirar muito ruim. Ai, Senhô, quem me dera eles queima elas! Eu num gosta de ver cabeça de meu povo nas mãos do soldado; e o cheiro faz eu ficar muito enjoado!
“No dia seguinte, eles acampa o dia todo pras pessoas poder queimar as cabeças pra elas não estragar mai’. Ai, Senhô, Senhô, Senhô! A gente tem que sentar lá e vê as cabeças de nosso povo queiman’o numa vara. A gente fica lá naquele lugar os nove dias. Então a gente segue marcha pro solo de Daomé.”
Kossula já não estava no alpendre comigo. Ele estava de cócoras pensando no fogo em Daomé. O rosto dele estava se contorcendo em dor abismal. Era uma máscara de horror. Ele havia esquecido que eu estava lá. Ele estava pensando alto e olhando para os rostos mortos na fumaça. A agonia dele era tão aguda que ficou calado. Ele nem notou que eu me preparava para ir embora.
Então saí discretamente, o mais rápido possível, e o deixei com suas imagens de fumaça.
Nota:
(*) Em 14 de dezembro de 1927, Zora Neale Hurston pegou o trem das 15:40 na Penn Station, Nova York, para Mobile, a fim de conduzir uma série de entrevistas com o último africano de que se sabia sobrevivente do último navio negreiro dos Estados Unidos, o Clotilda. Seu nome era Kossola, mas o chamavam de Cudjo Lewis. Ele foi mantido escravizado por cinco anos e meio no Plateau-Magazine Point, Alabama, de 1860 até que soldados da União lhe informaram que estava livre. Kossola viveu o restante da vida em Africatown (Plateau).2 A viagem de Hurston para o sul foi uma continuação de sua expedição iniciada no ano anterior. Olualê Kossola sobreviveu à captura por guerreiros do Reino do Daomé, aos barracões em Uidá e à Passagem do Meio. Ele foi escravizado, viveu durante a Guerra Civil, sobreviveu ao Sul não reconstruído e sofreu com as leis Jim Crow. Ele vivenciou o alvorecer de um novo milênio, incluindo a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão. Nessa magnitude de eventos mundiais, os importantes eventos do mundo pessoal de Kossola passaram como um redemoinho. Zora Neale Hurston, como antropóloga cultural, etnógrafa e folclorista, estava ansiosa para investigar as experiências dele. “Quero saber quem você é”, ela abordou Kossola, “e como você foi escravizado; e a que parte da África você pertence, e como você lidou com o fato de estar escravizado, e como você tem vivido como um homem livre.” Kossola assimilou cada uma das perguntas dela, então ergueu um semblante choroso. “Brigado Jesus! Alguém vem perguntá sobre Cudjo! Eu quer contá pra alguém quem eu é, então talvez eles vão no solo da Áffica um dia e chama meu nome e alguém diz: ‘Sim, eu conheço Kossula.” ( Deborah G. Plant, no prefácio do livro)^
(Olualê Kossola: as palavras do último homem negro escravizado; tradução de Bhuvi
Libanio)
(Ilustração: Navio negreiro; autoria desconhecida)
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