sexta-feira, 31 de maio de 2024

OLUALÊ KOSSOLA NARRA SUA CAPTURA PELOS GUERREIROS DE DAOMÉ, de Zora Neale Hurston (*)

 



Os representantes da África no Novo Mundo vieram, e trabalharam, e morreram, e deixaram suas pegadas, mas nenhum pensamento registrado.

De todos os milhões transportados da África para o continente americano, só restou um homem. Ele se chama Cudjo Lewis e, no momento, vive em Plateau, Alabama, um subúrbio de Mobile. Esta é a história desse Cudjo.

Encontrei Cudjo Lewis pela primeira vez em julho de 1927. Dr. Franz Boas me enviou com o objetivo de obter para o Dr. Carter G. Woodson, do Journal of Negro History, um relato em primeira mão do ataque que trouxe Cudjo para os Estados Unidos e para a escravização. Conversei com ele em dezembro daquele mesmo ano e novamente em 1928. Assim, de Cudjo e dos registros da Sociedade Histórica de Mobile obtive a história do último carregamento de pessoas escravizadas trazido para os Estados Unidos.

Os quatro homens responsáveis por essa última negociação de carne humana, antes de a rendição de Lee em Appomattox ter dado fim aos 364 anos do comércio de pessoas escravizadas, foram os três irmãos Meaher e o capitão [William “Bill”] Foster. Jim, Tim e Burns Meaher eram nativos do Maine. Eles tinham um moinho e um estaleiro no rio Alabama, na boca do riacho Chickasabogue (hoje chamado riacho Three-Mile), onde construíram embarcações velozes para furar bloqueios, obstruir expedições e para o comércio nos rios. O capitão Foster estava associado aos irmãos Meaher nos negócios. [...]

O Clotilda era o navio mais rápido que eles tinham, e foi o selecionado para fazer a viagem. Parece que o capitão Foster era o verdadeiro proprietário da embarcação. [...] O Clotilda escapuliu de Mobile, tão secretamente quanto foi possível, para não provocar a curiosidade do governo. [...] ele ancorou em segurança no golfo da Guiné, antes de Uidá. [...] O capitão Foster rapidamente desembarcou com seus barris de moedas e de bens comerciais. “Seis negros robustos” foram designados para se encontrar com ele e conduzi-lo à “presença do príncipe do Reino do Daomé”[...] O rei do Daomé, havia muito tempo, concentrava todos os seus recursos em fornecer pessoas escravizadas para o mercado estrangeiro. Havia “um mercado ativo de escravizados com preço de 50 a 60 dólares a peça em Uidá. Uma enorme quantidade de negros e negras era reunida ao longo da costa para exportação”.[...] Quando o rei daomeano marchava contra um lugar, ele escondia de seu exército “o nome ou o lugar contra o qual ele os levou”, “até que estivessem a um dia de marcha” de seu objetivo. “A investida era geralmente à luz do dia e todos os tipos de artimanha, sigilo e engenhosidade eram usados para surpreender o inimigo.” Com ou sem resistência, “todos os mais velhos eram imediatamente decapitados” e os jovens levados para os barracões em Uidá.[...]

À aldeia que esses africanos construíram depois que obtiveram liberdade deram o nome de “African Town”. A cidade é agora chamada Plateau, Alabama. O nome novo foi resultado da ferrovia Mobile & Birmingham (hoje parte do Sistema Ferroviário do Sul) construída atravessando [a cidade]. Mas o tom dominante ainda é africano.

Já sabendo dessas coisas, mais uma vez procurei a casa antiga do homem chamado Cudjo. Esse homem peculiar que sobre si mesmo diz: “Edem etie ukum edem etie upar”: A árvore de duas madeiras; literalmente, duas árvores que cresceram juntas. Uma parte ukum (mogno) e uma parte upar (ébano). Ele quer dizer: “Em parte um homem livre, em parte livre.” O único homem na terra que tem no coração a lembrança de seu lar africano; os horrores de um ataque para escravizar pessoas; o barracão; o canto quaresmal dos escravizados; e que tem 67 anos de liberdade em uma terra estrangeira.

Como uma pessoa consegue dormir com essas memórias sob o travesseiro? Como um pagão vive com um Deus cristão? Como o nigeriano “bárbaro” suportou o processo de civilização?

Fui enviada para perguntar:

“O rei de Daomé, você sabe, ele ficou muito rico pegan’o escravos. Ele mantém o exército dele o tempo todo atacando pra pegá pessoas pra vender então o povo de Daomé num tem nenhum tempo de plantar jardim e fazer comida pra eles mesmos.

“Talvez o rei de Daomé nunca chega a atacar em Takkoi, mas um traidor de Takkoi vai no Daomé. Ele um homem muito mau e o rei (de Takkoi) diz: ‘Sai dessa nação.’ Aquele homem quer grandes honras no exército então ele vai direto pro Daomé e diz pro rei: ‘Eu mostra pra você como ocupa Takkoi.’ Ele conta pra eles o segredo dos portões.

“Por isso, você m’entende, eles chega fazê guerra, mas a gente num sabe qu’eles vêm pra lutar contra a gente. Eles marcha a noite toda e a gente na cama dorme. A gente num sabe de nada.

“Perto de de manhã quando o pessoal que dorme acorda co’o barulho quando as pessoas de Daomé quebra o Grande Portão. Eu não acordado ainda. Eu ainda na cama. Eu escuta o portão quando eles quebra ele. Eu escuta o grito dos soldados quando eles despedaça o portão. Por isso eu pula da cama e olha. Eu vê os muitos soldados co’ fuzil francês na mão e a faca grande. Eles têm as mulheres soldados também e eles corre co’a faca grande e faz barulho. Eles pega pessoas e eles serra o pescoço desse jeito com a faca então eles torce a cabeça e ela sai do pescoço. Ai, Senhô, Senhô!

“Eu vê as pessoas sê morta muito rápido! Os véios, eles tenta fugir da casa, mas eles morto na porta, e as mulheres soldados têm a cabeça deles. Ai, Senhô!”

Cudjo chorou com pesar e cruzou os braços no peito com os dedos tocando os ombros. A boca e os olhos dele escancarados como se ainda pudesse ver aquele espetáculo aterrorizante.

— Todas as pessoas, elas corre pros portões pra conseguir esconder no arbusto, você m’entende. Uns nunca alcança o portão. As mulheres soldado pega os jovens e amarra eles pelo pulso. Nenhum homem consegue ser tão forte igual as mulheres soldados do Daomé. Então elas corta a cabeça. Alguns elas quebra o osso do maxilar enquanto as pessoas num ‘tão mortas. Ai, Senhô, Senhô, Senhô! As pobres pessoas co’o maxilar de baixo arrancado do rosto! Eu corre rápido pro portão, mas uns homens de Daomé eles lá também. Eu corre pro próximo portão, mas eles lá também. Eles cerca a cidade toda. Eles em todos os oito portões.

“Um portão parece que ninguém lá então eu acelera e corre na direção do arbusto. Mas o homem de Daomé, eles lá também. Logo qu’eu sai pelo portão eles me agarra e me amarra o pulso. Eu imploro pra eles, por favor, me deixa ir de volta pra minha mãe, mas eles não presta atenção no que eu fala não. Eles me amarra co’o resto.

“Enquanto eles me pega, o rei da minha nação ele sai pelo portão, e eles pega ele. Eles percebe ele é o rei então eles muito feliz. Por isso, você m’entende, eles leva ele pro arbusto onde o rei de Daomé espera co’alguns chefes ‘té Takkoi ser destruída, quando ele vê nosso rei, ele diz pros soldados deles: ‘Traz pra mim o mudador de palavras (intérprete público).’ Quando o mudador de palavras veio ele diz: ‘Pergunta esse homem por que ele coloca a fraqueza contr’o Leão de Daomé?’ O homem mudou as palavras pra nosso rei. Akia’on escuta. Então ele diz pro rei do Daomé: ‘Por que você não luta como homens? Por que você num chega de dia pra qu’a gente pode encontrar cara a cara?’ O homem mudô as palavras pro rei de Daomé saber o qu’ele falou. Então o rei de Daomé diz: ‘Entra na fila pra ir pra Daomé pras nações podê vê qu’eu conquista você e vende Akia’on no barracão.’

“Akia’on diz: ‘Eu num vai pra Daomé. Eu nasci um rei em Takkoi onde meu pai e os pais dele mandavam antes d’eu nascer. Desde qu’eu me tornei um homem eu comando. Eu morro um rei, mas eu não ser escravo.’

“O rei de Daomé pergunta pra ele: ‘Você não vai pra Daomé?’

“Ele diz pra ele: ‘Não, ele num sai da terra onde ele é o rei.’

“O rei de Daomé num fala mai’. Ele olha pro soldado e aponta pro rei. Uma soldado mulher se aproxima co’o facão e corta a cabeça do rei fora e pega ela do chão e entrega ela pro rei de Daomé. (Ver nota 4)96

“Quando eu vê o rei morto, eu tenta ‘scapar dos soldados. Eu tenta chegar no arbusto, mas todos os soldados me alcança ante’ d’eu chegá lá. Ai, Senhô, Senhô! Quando eu pensa sobr’aquele tempo eu tenta não chorar mai’. Meus olhos, eles não chora mai’, mas as lágrimas corre dentro de mim o tempo todo. Quando os homens me puxa co’eles eu chama o nome da minha mãe. Eu num sabe onde ela está. Eu não vê ninguém minha família. Eu num sabe onde eles está. Eu implora pros homens me deixar procurá meus pais. Os soldados fala eles não têm ouvidos pra choro. O rei de Daomé chega pra caçar escravo pra vender. Então eles me amarra na fila co’o resto.

“O sol está nascendo agora.

“O dia todo eles faz a gente andar. O sol tão quente!

“O rei de Daomé, ele anda dentro da rede e os chefes co’ele eles têm rede também. Pobre de mim eu anda. Os homens de Daomé, eles amarra a gente na fila pra ninguém fugir. Na mão deles eles têm a cabeça das pessoas qu’eles mata em Takkoi. Alguns têm duas, três cabeças eles carrega co’eles pra Daomé.

“Eu tão triste por meu lar qu’eu num fica co’ fome naquele dia, mas eu alegre quando a gente bebe a água.

“Ante’ do sol baixar a gente chega na cidade. Tem uma bandeira vermelha no arbusto. O rei de Daomé manda homens co’o mudador de palavras pra cidade e o chefe chega dentro da rede e fala co’o rei. Então ele abaixa a bandeira vermelha e pendura a bandeira branca. Que que eles fala, Cudjo num sabe. Mas ele traz pro rei um presente de inhame e milho. Os soldados faz fogo e cozinha a gororoba e come. Então a gente segue na marcha. Toda cidade o rei manda mensagem.

“A gente dorme no chão aquela noite, mas o rei e os chefes pendura a rede deles numa árvore e dorme nelas. Então nada num machuca eles no chão. Pobre de mim eu dorme no chão e chora. Eu num acostumado co’ nenhum chão. Eu pensa também sobre meus pais e eu chora. A noite toda eu chora.

“Quando o sol levanta a gente come e marcha pra Daomé. O rei manda mensagem pra todas as cidades qu’a gente passa e o líder vem. Se eles têm uma bandeira vermelha, isso significa qu’eles concorda eles num vai pagar nenhuma taxa pra Daomé. Eles fala qu’eles vai lutá. Se uma bandeira branca, eles paga pra Daomé o qu’eles pede pra eles. Se uma bandeira preta, isso significa qu’o governante está morto e o filho não véio suficiente pra assumir o trono. No solo da Áffica, quando eles vê a bandeira preta, eles num importa. Eles sabe qu’ia ser se aproveitar da situação se eles faz guerra quando ninguém no comando.

“As cabeças dos homens de Daomé começa a cheirar muito ruim. Ai, Senhô, quem me dera eles queima elas! Eu num gosta de ver cabeça de meu povo nas mãos do soldado; e o cheiro faz eu ficar muito enjoado!

“No dia seguinte, eles acampa o dia todo pras pessoas poder queimar as cabeças pra elas não estragar mai’. Ai, Senhô, Senhô, Senhô! A gente tem que sentar lá e vê as cabeças de nosso povo queiman’o numa vara. A gente fica lá naquele lugar os nove dias. Então a gente segue marcha pro solo de Daomé.”

Kossula já não estava no alpendre comigo. Ele estava de cócoras pensando no fogo em Daomé. O rosto dele estava se contorcendo em dor abismal. Era uma máscara de horror. Ele havia esquecido que eu estava lá. Ele estava pensando alto e olhando para os rostos mortos na fumaça. A agonia dele era tão aguda que ficou calado. Ele nem notou que eu me preparava para ir embora.

Então saí discretamente, o mais rápido possível, e o deixei com suas imagens de fumaça.



Nota:

(*) Em 14 de dezembro de 1927, Zora Neale Hurston pegou o trem das 15:40 na Penn Station, Nova York, para Mobile, a fim de conduzir uma série de entrevistas com o último africano de que se sabia sobrevivente do último navio negreiro dos Estados Unidos, o Clotilda. Seu nome era Kossola, mas o chamavam de Cudjo Lewis. Ele foi mantido escravizado por cinco anos e meio no Plateau-Magazine Point, Alabama, de 1860 até que soldados da União lhe informaram que estava livre. Kossola viveu o restante da vida em Africatown (Plateau).2 A viagem de Hurston para o sul foi uma continuação de sua expedição iniciada no ano anterior. Olualê Kossola sobreviveu à captura por guerreiros do Reino do Daomé, aos barracões em Uidá e à Passagem do Meio. Ele foi escravizado, viveu durante a Guerra Civil, sobreviveu ao Sul não reconstruído e sofreu com as leis Jim Crow. Ele vivenciou o alvorecer de um novo milênio, incluindo a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão. Nessa magnitude de eventos mundiais, os importantes eventos do mundo pessoal de Kossola passaram como um redemoinho. Zora Neale Hurston, como antropóloga cultural, etnógrafa e folclorista, estava ansiosa para investigar as experiências dele. “Quero saber quem você é”, ela abordou Kossola, “e como você foi escravizado; e a que parte da África você pertence, e como você lidou com o fato de estar escravizado, e como você tem vivido como um homem livre.” Kossola assimilou cada uma das perguntas dela, então ergueu um semblante choroso. “Brigado Jesus! Alguém vem perguntá sobre Cudjo! Eu quer contá pra alguém quem eu é, então talvez eles vão no solo da Áffica um dia e chama meu nome e alguém diz: ‘Sim, eu conheço Kossula.” ( Deborah G. Plant, no prefácio do livro)^



(Olualê Kossola: as palavras do último homem negro escravizado; tradução de Bhuvi Libanio)



(Ilustração: Navio negreiro; autoria desconhecida)

terça-feira, 28 de maio de 2024

A FUNÇÃO DA ARTE 1, de Eduardo Galeano



Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.

Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

– "Me ajuda a olhar!”

 

 

(O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno).

 

(Ilustração: Marcial Camilo Ayala)

  

sábado, 25 de maio de 2024

SER MULHER, de Gilka Machado

 





Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada

para os gozos da vida; a liberdade e o amor;

tentar da glória a etérea e altívola escalada,

na eterna aspiração de um sonho superior…



Ser mulher, desejar outra alma pura e alada

para poder, com ela, o infinito transpor;

sentir a vida triste, insípida, isolada,

buscar um companheiro e encontrar um senhor…



Ser mulher, calcular todo o infinito curto

para a larga expansão do desejado surto,

no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…



Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!

ficar na vida qual uma águia inerte, presa

nos pesados grilhões dos preceitos sociais!




(Ilustração: Frida Kahlo – autorretrato)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

A ARTE DE SER AVÓ, de Raquel de Queiroz

 


Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...



(Ilustração: António José Patrício (1827-1858) - A avó, Museu do Chiado)

domingo, 19 de maio de 2024

A CAROLINA, Machado de Assis

 


 

Querida! Ao pé do leito derradeiro,

em que descansas desta longa vida,

aqui venho e virei, pobre querida,

trazer-te o coração de companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

que, a despeito de toda a humana lida,

fez a nossa existência apetecida

e num recanto pôs um mundo inteiro...

 

Trago-te flores - restos arrancados

da terra que nos viu passar unidos

e ora mortos nos deixa e separados;

 

que eu, se tenho, nos olhos malferidos,

pensamentos de vida formulados,

são pensamentos idos e vividos.

 

(Obra completa)

 

(Ilustração: Paul Kleee – cimetière)

quinta-feira, 16 de maio de 2024

NOSSAS NOITES, de Contardo Calligaris

 


Imagine que você tenha 60-70 anos – ou mais. Você está sozinho ou sozinha. As "crianças", se você teve filhos, já estão longe, com suas vidas feitas. Seu companheiro ou companheira (da vida toda ou dos últimos tempos) foi-se. Você sobrou, viúvo, separado, tanto faz.

Você está bem de saúde – apenas envelhecendo. A aposentadoria é suficiente, paga o supermercado a cada semana e, de vez em quando, um restaurante, um cinema, um teatro. E os livros; você lê, sempre leu.

Há dias em que você não fala com ninguém. Às vezes, são semanas.

Você mora desde sempre, como se diz, na casa onde viveu seu tempo de casal e criou seus filhos – talvez no mesmo bairro onde você foi, por exemplo, professor de colégio. Poderia ser uma casa vitoriana, num subúrbio norte-americano, ou um sobrado, num bairro de classe média de uma cidade brasileira – ou um apartamento, num prédio da mesma cidade.

Um dia, alguém toca a campainha da sua porta ou bate de leve. É uma vizinha, que você conhece de vista e de vocês se cumprimentarem de longe. Tem a mesma idade que você, mais ou menos; ela viveu lá a vida inteira, com o marido dela, e agora é viúva ou separada, que nem você.

"Quero fazer uma sugestão para você", ela diz. "O que você acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?"

O quê? Como assim?

"É que nós dois estamos sozinhos. Já há muito tempo. Há anos. Eu me sinto sozinha. E acho que é possível que você também se sinta. Então fiquei pensando se você gostaria de ir para minha casa à noite e dormir comigo. E conversar."

Ela não está falando de sexo, mas de uma companhia: falar, cada um de si, "porque as noites são a pior parte. Você não acha?".

Assim começa a história de Addie e Louis, que é contada em "Nossas Noites", o último romance de Kent Maruf, que morreu em 2014, aos 71 anos (Cia das Letras, tradução de Sonia Moreira). Li o livro numa sentada, e me tocou fundo, talvez pela minha idade, que avança.

Como o menino Jamie, neto de Addie, eu tinha medo do escuro quando criança. Acordava meu irmão; eu não pedia para ele ligar a luz (o interruptor estava ao lado da cama dele), só queria que ele me respondesse.

Anos depois, durante a minha análise, eu lia muita poesia e estudava alemão. Georg Trakl era um de meus poetas preferidos; fascinava-me ele ter morrido cedo e de overdose, mas, sobretudo, na poesia dele, percebia o medo, que me era familiar, dos conúbios ameaçadores do silêncio com a escuridão.

Freud conta ("Introdução à Psicanálise", 1923): "Um menino, angustiado por estar no escuro, chama a tia, que está num quarto ao lado. 'Tia, fala comigo; estou com medo'; 'De que te serve que eu fale, se no escuro você não me enxergaria?' responde a tia. E o menino: 'Quando alguém fala, tem sempre um pouco de luz'".

Tenho a lembrança de uma estrofe de um poema de Hölderlin (não sei mais qual) em que o andarilho, de noite, canta para se dar coragem. Deveria ter um provérbio que diz: quem canta seu medo espanta; e outro: quem conversa seu medo espanta.

Addie e Louis são parecidos com Jamie. Eles não têm medo do escuro que está no fim do caminho, mas é porque acharam um jeito de resistir. Jamie, quando acorda no escuro, vai para a cama deles, e eles, no escuro, contam suas vidas, um para o outro. Cada um com o seu remédio.

Não seria mais fácil dormir? De novo, Hölderlin: um verso de "Pão e Vinho" diz: "Besser zu schlafen, wie so ohne Genossen zu sein", melhor dormir do que estar sem companheiro. O problema é que nem sempre é fácil dormir sem companheiro.

Há uma insônia típica da terceira idade, pela qual a gente acorda de madrugada e espera a luz do dia, para poder dormir de novo. Cai bem, nessa estranha suspensão do sono, contemplar o outro que continua dormindo ao seu lado ou acordá-lo, para que converse conosco.

"Nossas Noites" é um história de resistência à morte e ao tempo que passa, pela descoberta que ainda é possível encontrar amizade e amor.

Os idosos sabem disso como nunca. Hoje, aliás, 80% dos adultos entre 50 e 90 anos são amorosa e sexualmente ativos.

Só não sei se os jovens aguentam isso. Os filhos sempre acham escandalosos os prazeres dos pais idosos.

E, contrariamente ao que reza a lenda, eles aguentam bem a morte dos pais, que é natural. O que eles acham contrário à natureza não é que os pais morram, mas que os pais vivam.



(Folha de São Paulo; 20/4/2017)



(Ilustração: Vladimir Yegorovich Makovsky - the old drunk man)

segunda-feira, 13 de maio de 2024

ODE TO A NIGHTINGALE / ODE A UM ROUXINOL, John Keats

 





My heart aches, and a drowsy numbness pains

My sense, as though of hemlock I had drunk,

Or emptied some dull opiate to the drains

One minute past, and Lethe-wards had sunk:

‘Tis not through envy of thy happy lot,

But being too happy in thine happiness,—

That thou, light-winged Dryad of the trees

In some melodious plot

Of beechen green, and shadows numberless,

Singest of summer in full-throated ease.



O, for a draught of vintage! that hath been

Cool’d a long age in the deep-delved earth,

Tasting of Flora and the country green,

Dance, and Provençal song, and sunburnt mirth!

O for a beaker full of the warm South,

Full of the true, the blushful Hippocrene,

With beaded bubbles winking at the brim,

And purple-stained mouth;

That I might drink, and leave the world unseen,

And with thee fade away into the forest dim:



Fade far away, dissolve, and quite forget

What thou among the leaves hast never known,

The weariness, the fever, and the fret

Here, where men sit and hear each other groan;

Where palsy shakes a few, sad, last gray hairs,

Where youth grows pale, and spectre-thin, and dies;

Where but to think is to be full of sorrow

And leaden-eyed despairs,

Where Beauty cannot keep her lustrous eyes,

Or new Love pine at them beyond to-morrow.



Away! away! for I will fly to thee,

Not charioted by Bacchus and his pards,

But on the viewless wings of Poesy,

Though the dull brain perplexes and retards:

Already with thee! tender is the night,

And haply the Queen-Moon is on her throne,

Cluster’d around by all her starry Fays;

But here there is no light,

Save what from heaven is with the breezes blown

Through verdurous glooms and winding mossy ways.



I cannot see what flowers are at my feet,

Nor what soft incense hangs upon the boughs,

But, in embalmed darkness, guess each sweet

Wherewith the seasonable month endows

The grass, the thicket, and the fruit-tree wild;

White hawthorn, and the pastoral eglantine;

Fast fading violets cover’d up in leaves;

And mid-May’s eldest child,

The coming musk-rose, full of dewy wine,

The murmurous haunt of flies on summer eves.



Darkling I listen; and, for many a time

I have been half in love with easeful Death,

Call’d him soft names in many a mused rhyme,

To take into the air my quiet breath;

Now more than ever seems it rich to die,

To cease upon the midnight with no pain,

While thou art pouring forth thy soul abroad

In such an ecstasy!

Still wouldst thou sing, and I have ears in vain—

To thy high requiem become a sod.



Thou wast not born for death, immortal Bird!

No hungry generations tread thee down;

The voice I hear this passing night was heard

In ancient days by emperor and clown:

Perhaps the self-same song that found a path

Through the sad heart of Ruth, when, sick for home,

She stood in tears amid the alien corn;

The same that oft-times hath

Charm’d magic casements, opening on the foam

Of perilous seas, in faery lands forlorn.



Forlorn! the very word is like a bell

To toll me back from thee to my sole self!

Adieu! the fancy cannot cheat so well

As she is fam’d to do, deceiving elf.

Adieu! adieu! thy plaintive anthem fades

Past the near meadows, over the still stream,

Up the hill-side; and now ‘tis buried deep

In the next valley-glades:

Was it a vision, or a waking dream?

Fled is that music:—Do I wake or sleep?



Tradução de Augusto de Campos:



Meu peito dói; um sono insano sobre mim

Pesa, como se eu me tivesse intoxicado

De ópio ou veneno que eu sorvesse até o fim,

Há um só minuto, e após no Letes me abismado:

Não é porque eu aspire ao dom de tua sorte,

É do excesso de ser que aspiro em tua paz –

Quando, Dríade leve-alada em meio à flora,

Do harmonioso recorte

Das verdes árvores e sombras estivais,

Lanças ao ar a tua dádiva sonora.



Ah! um gole de vinho refrescado longamente

Na solidão do solo muito além do chão,

Sabendo a flor, a seiva verde e a relva quente,

Dança e Provença e sol queimando na canção!

Ah! uma taça de luz do Sul, plena e solar,

Da fonte de Hipocrene enrubescida e pura,

Com bolhas de rubis à beira rebordada

Nos lábios a brilhar,

Para eu saciar a sede até chegar ao nada

E contigo fugir para a floresta escura.



Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer

O que das folhas não aprenderás jamais:

A febre, o desengano e a pena de viver

Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;

Onde o tremor move os cabelos já sem cor

E o jovem pálido e espectral se vê finar,

Onde pensar é já uma antevisão sombria

Da olhipesada dor,

Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar

E o Amor estremecer por ele mais que um dia.



Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,

Não em carro de Baco e guarda de leopardos,

Antes, nas asas invisíveis da Poesia,

Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;

Já estou contigo! suave é a noite linda,

Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz

Com a legião de suas Fadas estelares,

Mas aqui não há luz,

Salvo a que o céu por entre as brisas brinda

Em meio à sombra verde e ao musgo dos lugares.



Não posso ver as flores a meus pés se abrindo,

Nem o suave olor que desce das ramagens,

Mas no escuro odoroso eu sinto defluindo

Cada aroma que incensa as árvores selvagens,

A impregnar a grama e o bosque verde-gaio,

O alvo espinheiro e a madressilva dos pastores,

Violetas a viver sua breve estação;

E a princesa de maio,

A rosa-almíscar orvalhada de licores

Ao múrmuro zumbir das moscas do verão.



Às escuras escuto; em mais de um dia adverso

Me enamorei, de meio-amor, da Morte calma,

Pedi-lhe docemente em meditado verso

Que dissolvesse no ar meu corpo e minha alma.

Agora, mais que nunca, é válido morrer,

Cessar, à meia-noite, sem nenhum ruído,

Enquanto exalas pelo ar tua alma plena

No êxtase do ser!

Teu som, enfim, se apagaria em meu ouvido

Para o teu réquiem transmudado em relva amena.



Tu não nasceste para a morte, ave imortal!

Não te pisaram pés de ávidas gerações;

A voz que ouço cantar neste momento é igual

À que outrora encantou príncipes e aldeões:

Talvez a mesma voz com que foi consolado

O coração de Rute, quando, em meio ao pranto,

Ela colhia em terra alheia o alheio trigo;

Quem sabe o mesmo canto

Que abriu janelas encantadas ao perigo

Dos mares maus, em longes solos, desolado.



Desolado! a palavra soa como um dobre,

Tangendo-me de ti de volta à solidão!

Adeus! A fantasia é véu que não encobre

Tanto como se diz, duende da ilusão.

Adeus! Adeus! Teu salmo agora tristemente

Vai-se perder no campo, e além, no rio silente,

Nas faldas da montanha, até ser sepultado

Sob o vale deserto:

Foi só uma visão ou um sonho acordado?

A música se foi – durmo ou estou desperto?




(Ilustração: Mikhail Vasilevich Nesterov - The Nightingale is Singing)

sexta-feira, 10 de maio de 2024

A TEIMOSA MANIA DE CORTAR CABEÇAS, de Roberto Pompeu de Toledo

 

 


Faz algum tempo que não se cortam cabeças no Brasil. Mas quantas já se cortaram!

O jornal O Globo, dentro de uma série de reportagens sobre a guerrilha do PC do B no Araguaia, nos anos 70, contou em sua edição de 29 de abril como morreu Osvaldo Orlando da Costa, o "Osvaldão", um negro alto (1,98 metro) e forte, campeão de boxe e atletismo antes de virar chefe do grupo que imitava Che Guevara nos matos do Brasil Central. Osvaldão foi abatido num milharal, numa tarde de março de 1974, por uma patrulha do Exército.

De helicóptero, o corpo foi levado a Ximbioá. Cortaram-lhe a cabeça. O guerrilheiro tinha granjeado a fama de invencível, na região. Resolveu-se mostrar àquela gente crédula que ele não era invencível. Uma testemunha disse ao repórter Amaury Ribeiro Jr., de O Globo, que viu um oficial apresentando em triunfo a cabeça do guerrilheiro, e perguntando: "Cadê o homem imortal?"

Voltem-se oitenta anos. Desfecho da revolução gaúcha de 1893. O principal líder rebelde, Gumercindo Saraiva, é morto no dia 10 de agosto de 1894 e enterrado, mas os governistas ainda não se sentem saciados. O coronel Firmino de Paula manda desenterrar o cadáver e colocá-lo à beira da estrada. O general Francisco Rodrigues Lima vai dizendo, ao aproximar-se: "As orelhas são minhas". Os soldados dirigem zombarias ao cadáver. Cortam-lhe a cabeça.

Avancem-se 44 anos. Julho de 1938. Madrugada. Lampião, o "Rei do Cangaço", e sua mulher, Maria Bonita, mais nove companheiros, são finalmente localizados em seu refúgio da fazenda de Angico, no sertão de Sergipe, e mortos. Cortam-lhes as cabeças, que em seguida são exibidas nas escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema. Uma foto eternizou a cena: onze cabeças distribuídas em filas que sobem os degraus. Há filas no alto e filas embaixo, como nas poses dos times de futebol, antes do jogo. As de Lampião e Maria Bonita seriam depois levadas em peregrinação até Salvador, onde, mumificadas, ficariam expostas no Museu Nina Rodrigues.

Recue-se um ano. 1937. A comunidade messiânica do Caldeirão, liderada pelo Beato Lourenço, no Ceará, é dizimada pela polícia. Quinhentos fiéis são mortos. Cadáveres são degolados.

Recuem-se 242 anos. Novembro de 1695. Acabou o Quilombo dos Palmares e foi morto seu líder, Zumbi. O cadáver é levado a Porto Calvo, hoje Alagoas, onde é decepado por um escravo, perante as autoridades. Lavra-se um "Auto de decapitação do negro Zumbi". Em seguida a cabeça é transportada ao Recife e ali colocada em exibição pública, para, segundo o governador Melo e Castro, "satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente o julgavam imortal".

Avancem-se 97 anos. Tiradentes. Enforcado no Rio de Janeiro, ele tem o corpo esquartejado. O cadáver inicia então uma viagem de volta a Minas Gerais, durante a qual pedaços vão sendo deixados nas praças centrais de diferentes cidades. A cabeça é reservada para exibição no alto de um poste no centro de Ouro Preto.

Avancem-se 105 anos. 1897. Canudos vive seus últimos dias. Euclides da Cunha escreve, em Os Sertões: "Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, fracamente exposta a garganta, degolavam-na".

Ainda Canudos. Seis de outubro de 1897. Finalmente dentro do arraial, as tropas ficam sabendo que Antônio Conselheiro morrera duas semanas antes, de morte natural, e fora enterrado. Uma comissão dirige-se então à sepultura. Euclides da Cunha escreve:

"Desenterraram-no cuidadosamente. (...) Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita -- e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio".

A História do Brasil é assombrada por cabeças sem corpo e corpos sem cabeça.



(VEJA - Ensaio, 8/5/96)

(Ilustração : Artemisia Gentileschi - Salome with the Head of Saint John the Baptist ca. 1610-1615)

terça-feira, 7 de maio de 2024

DESIDERATA / DESIDERATA, de Max Ehrmann

 


 

Go placidly amid the noise and haste,

and remember what peace there may be in silence.

As far as possible without surrender

be on good terms with all persons.

Speak your truth quietly and clearly;

and listen to others,

even the dull and the ignorant;

they too have their story.

 

Avoid loud and aggressive persons,

they are vexations to the spirit.

If you compare yourself with others,

you may become vain and bitter;

for always there will be greater and lesser persons than yourself.

Enjoy your achievements as well as your plans.

 

Keep interested in your own career, however humble;

it is a real possession in the changing fortunes of time.

Exercise caution in your business affairs;

for the world is full of trickery.

But let this not blind you to what virtue there is;

many persons strive for high ideals;

and everywhere life is full of heroism.

 

Be yourself.

Especially, do not feign affection.

Neither be cynical about love;

for in the face of all aridity and disenchantment

it is as perennial as the grass.

 

 

Take kindly the counsel of the years,

gracefully surrendering the things of youth.

Nurture strength of spirit to shield you in sudden misfortune.

But do not distress yourself with dark imaginings.

Many fears are born of fatigue and loneliness.

Beyond a wholesome discipline,

be gentle with yourself.

 

You are a child of the universe,

no less than the trees and the stars;

you have a right to be here.

And whether or not it is clear to you,

no doubt the universe is unfolding as it should.

 

Therefore be at peace with God,

whatever you conceive Him to be,

and whatever your labors and aspirations,

in the noisy confusion of life keep peace with your soul.

 

With all its sham, drudgery, and broken dreams,

it is still a beautiful world.

Be cheerful.

Strive to be happy.

 

Tradução de Iva Sofia Gonçalves Lima:

 

Siga tranquilamente entre a pressa e a inquietude, lembrando-se que há sempre paz no silêncio.

Tanto quanto possível, sem se humilhar, mantenha boas relações com todas as pessoas.

Fale a sua verdade mansa e claramente e ouça a dos outros, mesmo a dos insensatos e ignorantes, pois eles também têm sua própria história.

 

Evite as pessoas escandalosas e agressivas. Elas afligem o nosso espírito.

Se você se comparar com os outros, tornar-se-á presunçoso e magoado, pois haverá sempre alguém superior e alguém inferior a você.

Você é filho do Universo, irmão das estrelas e árvores. Você merece estar aqui, e mesmo sem você perceber, a Terra e o Universo vão cumprir o seu destino.

Desfrute das suas realizações, bem como dos seus planos. Mantenha-se interessado em sua carreira, ainda que humilde, pois ela é um ganho real na fortuna cambiante do tempo.

Tenha cautela nos negócios, pois o mundo está cheio de astúcias, mas não se torne um cético porque a virtude sempre existirá. Muita gente luta por altos ideais e em toda a parte a vida está cheia de heroísmo.

 

Seja você mesmo, principalmente. Não simule afeição. Não seja descrente do amor, porque mesmo diante de tanta aridez e tanto desencanto ele é tão perene quanto a selva.

 

Aceite com carinho o conselho dos mais velhos e seja compreensivo com os arroubos inovadores da juventude.

Alimente a força do espírito que o protegerá no infortúnio inesperado, mas não se desespere com perigos imaginários. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão, e a despeito de uma disciplina rigorosa. Seja gentil para consigo mesmo.

Portanto, esteja em paz com Deus como quer que você o conceba e quaisquer que sejam seus trabalhos e as aspirações. Na fatigante confusão da vida, mantenha-se em paz com sua própria alma, apesar de todas as falsidades, fadigas e desencantos. O mundo ainda é bonito.

Seja prudente e faça tudo para ser feliz!

 

(Desiderata: um caminho para a vida)

 

Tradução de Isaias Edson Sidney:

 

Serenamente caminhe entre o barulho e a pressa,

e lembre-se de quanta paz pode haver no silêncio.

Não se humilhe,

mas atenda com educação a todas as pessoas.

Fale o que você pensa calma e claramente;

e ouça o que lhe dizem,

mesmo as coisas tolas e estúpidas;

todos merecem ser ouvidos.

Evite gente barulhenta e agressiva,

que só lhe trazem aborrecimentos.

Não se compare com os outros,

Isso pode torná-lo vaidoso e amargo;

sempre haverá pessoas melhores e piores que você.

Comemore suas conquistas e faça planos.

 

Orgulhe-se de seu trabalho, por mais humilde que seja;

ele é sua âncora ante as incertezas da vida.

Seja cauteloso nos negócios;

pois o mundo está cheio de trapaceiros.

Mas não deixe que isso o torne cego para as boas oportunidades;

muitas pessoas lutam por altos ideais;

em todos os lugares, a vida está cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.

Principalmente, não finja afeto.

Nem seja cínico sobre o amor;

pois diante de toda insensibilidade e desencanto

 ele é tão perene quanto a grama.

 

Aceite com tranquilidade a passagem do tempo,

conservando o frescor da juventude.

Cultive a força de espírito para protegê-lo das adversidades da vida.

 Não se angustie com pensamentos sombrios.

Muitos medos brotam do cansaço e da solidão.

Cultive uma vida saudável, cuide de si mesmo.

Você é uma criança do universo,

não menos importante que as árvores ou as estrelas;

você tem o direito de estar aqui.

E mesmo que não esteja claro para você,

não há dúvida de que o universo está em constante evolução, como sempre.

 

Portanto, esteja em paz com Deus,

seja qual for a sua concepção dele,

e quaisquer que sejam suas tarefas e aspirações,

nesta vida confusa e agitada,

esteja em paz consigo mesmo.

Com toda essa falsidade, lutas e sonhos desfeitos,

 tem ainda o mundo muitas belezas.

 Cultive a alegria.

Busque a felicidade.

 

(Ilustração: Ada Breedveld - our pleasure)


Nota: a tradução de Isaias Edson Sidney deste poema, você pode ouvi-la na voz do tradutor, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/51IS7fNfZouiPL6mzxPYDV?si=Aky-dgnKSaKuT2VFH3WoEw