1. O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode-se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário, quanto ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma "civilizada" ou "incivilizada". Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o que se pode descrever como civilização.
Mas se examinamos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais.
2. "Civilização", porém, não significa a mesma coisa para diferentes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre como ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães por outro. Para os primeiros, o conceito resume em uma única palavra o seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade. Já no emprego que lhe é dado pelos alemães, Zivilisation significa algo de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur.
3. Um fenômeno peculiar: Palavras como "civilização" em francês ou inglês, ou o alemão Kultur, são inteiramente claras no emprego interno da sociedade a que pertencem. Mas a forma pela qual uma parte do mundo está ligada a elas, a maneira pela qual incluem certas áreas e excluem outras, como a coisa mais natural, as avaliações ocultas que implicitamente fazem com elas, tudo isto torna difícil defini-las para um estranho.
O conceito francês e inglês de civilização pode se referir a fatos políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais. O conceito alemão de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos e apresenta a tendência de traçar uma nítida linha divisória entre fatos deste tipo, por um lado, e fatos políticos, econômicos e sociais, por outro. O conceito francês e inglês de civilização pode se referir a realizações, mas também a atitudes ou "comportamento" de pessoas; pouco importando se realizaram ou não alguma coisa: No conceito alemão de Kultur, em contraste, a referência a "comportamento", o valor que a pessoa tem em virtude de sua mera existência e conduta, sem absolutamente qualquer realização, é muito secundário. O sentido especificamente alemão do conceito de Kultur encontra sua expressão mais clara em seu derivado, o adjetivo kulturell, que descreve o caráter e o valor de determinados produtos humanos, e não o valor intrínseco da pessoa. Esta palavra, o conceito inerente a kulturell, porém, não pode ser traduzido exatamente para o francês e a o inglês.
A palavra kultiviert (cultivado) aproxima-se muito do conceito ocidental de civilização. Até certo ponto, representa a forma mais alta de ser civilizado. Até mesmo pessoas e famílias que nada realizaram de kulturell podem ser kultiviert. Tal como a palavra "civilizado", kultiviert refere-se primariamente à forma da conduta ou comportamento da pessoa. Descreve a qualidade social das pessoas, suas habitações, suas maneiras, sua fala, suas roupas, ao contrário de kulturell, que não alude diretamente às próprias pessoas, mas exclusivamente a realizações humanas peculiares.
4. Há outra diferença entre os dois conceitos estreitamente a isto. "Civilização" descreve um processo ou, pelo menos, diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se temente "para a frente". O conceito alemão de kultw, no emprego implica uma relação diferente com movimento. Reporta-se a produtos nos que são semelhantes a "flores do campo", a obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito de Kultur delimita.
Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou — na opinião dos que o possuem — deveria sê-lo. Manifesta a autoconfiança de povos nas quais as fronteiras nacionais e identidade nacional foram tão plenamente estabelecidos, desde séculos, que deixaram de ser tema de qualquer discussão, povos que há muito se expandiram fora de suas fronteiras e colonizaram terras muito além delas.
Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disto, o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma significação muito além da área linguística alemã e da situação em que se originou o conceito. Mas esta situação é aquela de um povo que, de acordo com os padrões ocidentais, conseguiu apenas muito tarde a unificação política e a consolidação e de cujas fronteiras, durante séculos ou mesmo até o presente, territórios repetidamente se desprenderam ou ameaçaram se separar. Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: "Qual é, realmente, nossa identidade?" A orientação do conceito alemão de cultura, com sua tendência à demarcação e ênfase em diferenças, e no seu detalhamento, entre grupos, corresponde a este processo histórico. As perguntas "O que é realmente francês? O que é realmente inglês?" há muito deixaram de ser assunto de discussão para franceses e ingleses. Durante séculos, porém, a questão "O que é realmente alemão?" reclamou sempre resposta. Uma resposta a esta pergunta — uma entre várias outras — reside em um aspecto peculiar do conceito de Kultur.
5. As autoimagens nacionais representadas por conceitos como Kultur e "civilização" assumem formas muito diferentes. Por mais diferente que seja a autoimagem dos alemães, que falam com orgulho de sua Kultur, e a de franceses e ingleses, que pensam com orgulho em sua "civilização", todos consideram axiomático que a sua é a maneira como o mundo dos homens, como um todo, quer ser visto e julgado. O alemão pode, quem sabe, tentar explicar a franceses e ingleses o que entende pelo conceito de Kultur. Mas dificilmente pode comunicar o mínimo que seja do meio formativo nacional específico e valores emocionais axiomáticos que para ele a palavra reveste.
Franceses ou ingleses poderão talvez dizer ao alemão que elementos o conceito de civilização assume da autoimagem nacional. Mas por mais razoável e racional que este conceito lhes pareça, ele também nasce de um conjunto específico de situações históricas, e está cercado também por uma atmosfera emocional e tradicional difícil de definir, mas que apesar disso constitui a parte integral de seu significado. E discussão descamba realmente para a inutilidade quando o alemão tenta demonstrar ao francês e ao inglês por que o conceito de Zivilisation de fato representa um valor para ele, embora apenas de segunda classe.
6. Conceitos como esses dois têm algo do caráter de palavras que ocasionalmente surgem em algum grupo mais estreito, tais como família, seita, classe escolar ou associação, e que dizem muito para o iniciado e pouquíssimo para o estranho. Assumem forma na base de experiências comuns. Crescem e mudam com o grupo do qual são expressão. Situação e história do grupo refletem-se nelas. E permanecem incolores, nunca se tornam plenamente vivas para aqueles que não compartilham tais experiências, que não falam a partir da mesma tradição e da mesma situação.
Os conceitos de Kultur e "civilização", para sermos exatos, portam o selo não de seitas ou famílias, mas de povos inteiros ou talvez apenas de certas classes. Mas, em muitos aspectos, o que se aplica a palavras específicas de grupos menores estende-se também a eles: são usados basicamente por e para povos que compartilham uma tradição e situação particulares.
Conceitos matemáticos podem ser separados do grupo que os usa. Triângulos admitem explicações sem referência a situações históricas. Mas o mesmo não acontece com conceitos como "civilização" e Kultur. Talvez aconteça que determinados indivíduos os tenham formado com base em material linguístico já disponível de seu próprio grupo, ou pelo menos lhes tenham atribuído um novo significado. Mas eles lançaram raízes. Estabeleceram-se. Outros os captaram em seu novo significado e forma, desenvolvendo-os e polindo-os na fala e na escrita. Foram usados repetidamente até se tornarem instrumentos eficientes para expressar o que pessoas experimentaram em comum e querem comunicar. Tornaram-se palavras da moda, conceitos de emprego comum no linguajar diário de uma dada sociedade. Este fato demonstra que não representam apenas necessidades individuais, mas coletivas, de expressão. A história coletiva neles se cristalizou e ressoa. O indivíduo encontra essa cristalização já em suas possibilidades de uso. Não sabe bem por que este significado e esta delimitação estão implicadas nas palavras, por que, exatamente, esta nuance e aquela possibilidade delas podem ser derivadas. Usa-as porque lhe parece uma coisa natural, porque desde a infância aprende a ver o mundo através da lente desses conceitos. O processo social de sua gênese talvez tenha sido esquecido há muito. Uma geração os transmite a outra sem estar consciente do processo como um todo, e os conceitos sobrevivem enquanto esta cristalização de experiências passadas e situações retiver um valor existencial, uma função na existência concreta da sociedade, isto é, enquanto gerações sucessivas puderem identificar suas próprias experiências no significado das palavras. Os termos morrem aos poucos, quando as funções e experiências na vida concreta da sociedade deixam de se vincular a eles. Em outras ocasiões, eles apenas adormecem, ou o fazem em certos - aspectos, e adquirem um novo valor existencial com uma nova situação. São relembrados então porque alguma coisa no estado presente da sociedade encontra expressão na cristalização do passado corporificada nas palavras.
Nota:
[1] Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p. 21: "A todas as culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem, decaem, e nunca mais voltam... Essas culturas, essências vitais sublimadas, crescem com a mesma soberba falta de prop6sito das flores do campo. Pertencem, como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta de Newton".
(O Processo Civilizador - Volume I: Uma Hist6ria dos Costumes; tradução de Ruy Jungmann)
(Ilustração: Johann Peter Hasenclever - Sociedade de leitura, c.1843)
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