Inocência também pega. Logo que a gente chega ao Posto Culuene, da Fundação Brasil Central, o choque demasiado bruto paralisa o raciocínio. A gente só sabe que saiu da cidade de São Paulo, num aparelho monomotor, umas sete horas antes: como é possível que agora, à beira daquele rio, homens e mulheres estranhos, mongoloides, inteiramente nus, cerquem o avião?
Mas inocência pega. Ao cabo de duas horas não estamos mais empenhados em fingir que não reparamos na nudez dos índios. Passamos, ao contrário, a encará-la com naturalidade. E a vitória foi puramente da inocência deles, da candura e falta de malícia deles. De toda a nossa indumentária — das botas ao chapéu — os índios e as índias só prezam uma coisa: a camisa, que protege dos mosquitos. Tudo mais que usamos é, portanto, incompreensível para eles. Mas dizendo “incompreensível” dizemos mal. Por que haveriam eles de tentar compreender a razão de andarmos com tantos panos em cima da pele? Acaso perguntam ao poraquê por que dá choques ou à onça por que tem pelo? O que não lhes ocorrerá jamais é que tenhamos motivos psicológicos para usar roupa, ou que, por termos começado um dia a usar roupa, não a possamos mais abandonar por motivos psicológicos.
O índio (a menos que já tenha sido civilizado) não faz perguntas embaraçosas pelo simples fato de não conhecer o embaraço. É uma criança. Ainda vive aquém do Bem e do Mal.
Mas como se explica então que aqueles índios que nos maravilharam com sua castanha nudez e seu riso puro, ao chegarmos, sejam os mesmos que, através de cerrados e varjões, nos levaram à beira da lagoinha esverdinhada para nos apontar a cova de um homem que assassinaram? Como estão aquém do Bem e do Mal se mataram e esconderam o morto, como qualquer criminoso de novela policial? Haverá um erro de cronologia no Gênesis? O primeiro assassínio terá ocorrido antes da perda da inocência, antes da tentação da serpente? É no capítulo 3 que a gente encontra:
Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos, e deleitável à vista: e tirou do fruto dela, e comeu e deu a seu marido, que também comeu.
No mesmo ponto se lhes abriram os olhos; e tendo conhecido que estavam nus, coseram umas folhas de figueira, e fizeram para si umas cintas.
Só no capítulo seguinte vamos encontrar o homicídio que é o ponto de partida da história da humanidade: “Caim porém disse a seu irmão Abel: Saiamos fora. E quando ambos estavam no campo, investiu Caim com seu irmão Abel, e matou-o”.
É bem verdade que as índias calapalos, se não cosem folhas de figueira, trançam a fibra e recortam o broto do buriti para fazerem seu uluri. Mas o uluri é um “cache-sexe” simbólico. Tem um significado cultural, mas nada tem a ver com o pudor e nada oculta. Quanto aos índios calapalos, estes não cosem coisa nenhuma. E no entanto matam, matam fora da guerra, matam e quando se lhes pergunta onde está o morto também dizem: “Não sei. Acaso sou eu o guarda de meu irmão?”.
Durante meses a fio Orlando Villas Boas, o maior amigo branco que têm os calapalos, interrogou-os pacientemente acerca do explorador inglês desaparecido. Quando os calapalos desconversavam, aborrecidos, o sertanista falava noutra coisa. Um dia, quando todos fumavam no terreiro, Villas Boas aguilhoou Cuiuli, um dos índios mais velhos dos calapalos.
— Aposto como você não sabe onde estão os ossos do coronel Fawcett.
— Sei! — foi a resposta.
— Se sabe me leve lá.
Os índios se entreolharam. Villas Boas, que já explorara a vaidade intelectual do que orgulhosamente dissera saber, explorou a vaidade física de todos os chefes.
— Dou aos chefes calapalos uma arara vermelha se me levarem aonde estão os ossos.
Os chefes se viram todos de penas encarnadas na orelha. De mais a mais, se confiam em algum caraíba confiam em Villas Boas, e este já se cansara de lhes dizer que os outros caraíbas não estavam mais “brabos” com a morte do “ingueresi”. Só queriam era saber como tinha ele morrido. Os índios o levaram então para uma lagoinha entre o rio Culuene e seu afluente Tanguru. Subiram um barranco e, entre o chão limoso e as árvores folhudas, o atual cacique dos calapalos, o índio Cumatsi, falou das 11h15 da manhã às 2h30 da tarde, contando como ali haviam sido assassinados três homens — aparentemente Fawcett, seu filho Jack e um amigo deste, Raleigh Rimmell. Depois disse ao sertanista:
— Cava.
Não foi preciso cavar mais de meio metro. Não era um túmulo. Era um apressado buraco, aberto sem dúvida havia muitos anos, e nele, sujos de terra e já meio enleados em raízes, uma caveira e um montão de ossos. Comprovava-se, afinal, a morte do coronel Fawcett.
Isso tudo ocorria em abril de 1951. No entanto, quando lá estivemos nós em janeiro de 1952, convidados pelo sr. Assis Chateaubriand para integrar, pelo Correio da Manhã, a expedição formada pelos Diários Associados e cujo centro era Brian Fawcett, filho do explorador desaparecido, já então sabíamos que os ossos não eram do coronel Fawcett.
Tanto o Royal Anthropological Institute, de 21 Bedford Square, em Londres, como os antropólogos do Museu Nacional de S. Cristóvão concordavam num ponto básico. Aqueles eram os restos mortais de um homem bem mais baixo do que o coronel Fawcett, que media 1,86 metro (seis pés e meia polegada). Segundo o Royal Anthropological Institute, os ossos examinados eram de um homem de 1,70 metro (cinco pés e sete polegadas), e, segundo o laudo do dr. Tarcísio Messias, do Museu Nacional, o cálculo feito pelo comprimento dos fêmures, cúbitos e rádios dá uma altura de 1,66 metro ou 1,68 metro. A dentadura sobressalente deixada por Fawcett na Inglaterra também não se ajustava à mandíbula da caveira. Mas bastava a prova da altura para pôr fora de combate o coronel Fawcett. Ora, segundo Brian Fawcett, seu irmão Jack era mais alto do que o pai, e Raleigh Rimmel, o mais baixo dos três, seria homem de 1,78 ou 1,80 metro (cinco pés e dez-onze polegadas).ª Ademais, a pertencer a um dos três exploradores, os ossos deviam ser, efetivamente, do coronel Fawcett, pois as suturas do crânio, segundo o laudo do Museu Nacional, fazem supor que a ossada fosse de um homem maduro. Jack e Raleigh tinham ambos menos de 25 anos.
Nota
a- Foi pena que Brian Fawcett não trouxesse consigo comprovantes das respectivas alturas dos três membros da expedição. Como ele era um tanto vago a respeito de Rimmell, pedimos a W. W. Copeland, que dirige a U. P. no Rio, que procurasse apurar em Londres qual era a estatura de Raleigh Rimmel. Copeland fez gentilmente a busca, mas não encontrou informantes.
(Esqueleto na Lagoa Verde – Ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett)
(Ilustração: 1952 Orlando Vilas Bôas, dois índios Kalapalo e a suposta ossada de Fawcett; foto da internet sem indicçao de autoria)
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