Havia um rei que tinha uma bonita barba de ouro. E um dia ele foi chamado ao quarto da rainha para ver a criança que acabava de nascer. Mas esse barba de ouro era encantado e mau. Assim que viu o lindo menininho, pegou e foi comendo-o à vista de todos.
A rainha, quando de novo estava esperando outra criança, combinou com a comadre para lograrem o rei. Arranjaram um coelhinho. Chamaram o barba de ouro e lhe apresentaram o filho. Ah! O rei comeu o coelhinho e gostou.
A comadre levou a criança, que era uma menina, para criar por uns camponeses a um outro reinado. A menina foi crescendo, crescendo. Os pais adotivos eram pobres, não sabiam o que fazer com ela. E já estava em ponto de casar.
Então mataram uma ovelha, tiraram-lhe a pele e vestiram com ela a mocinha, que ficou que nem um bicho. A madrinha, que era uma fada, pôs-lhe no dedo um anel que era para ela pedir o que precisasse. E subiram as águas-furtadas da casa, despediram-se da moça e, dizendo-lhe que se fosse com Deus, pelo mundo, empurraram-na da janela.
Aquela coisa foi, foi, ao léu do vento e, enfim, caiu na floresta. O bicho ficou por ali, quieto. Ouvia as cornetas: tu, tu, ru, tu, e latidos dos cães. O rei estava à caça. E então apareceram os caçadores e já levavam a arma à cara, quando o rei ordenou: não atirem!
O rei desse reinado era moço e curioso. Achou esquisito aquele bicho que falava como gente. Levou-o para a cozinha do palácio e pôs-lhe o nome de Carantonha.
A Carantonha assistia às festas de longe.
Uma ocasião ouviu contar, na cozinha, de três grandes bailes que o rei ia dar em seguida, para escolher a sua noiva.
Em todo o reinado, era um reboliço fora dos costume e costureiras e alfaiates não tinham mãos a medir. As moças queriam ser princesas.
O rei gostava de ver sempre a Carantonha, que lhe prestava serviços, muito humilde.
Carantonha segurava a bacia de prata para o rei lavar as mãos.
– Vossa majestade me deixa ir na festa?
- Tu, Carantonha?
O rei falou assim e borrifou o rosto dela, brincando. O que é que ela ia lá fazer? Carantonha saiu chorando para o seu cantinho da cozinha. Só então é que se lembrou do anel. Esfregou-o e disse:
- Anel, pelo poder que Deus te deu, quero que me arranjes um vestido cor da terra e uns chapins muito bonitos! – Imediatamente Carantonha viu-se transformada naquela princesa mais bonita e procurou as salas de baile sem que ninguém percebesse. Opa! Foi um sucesso! O rei dançou com ela e quase só com ela. Perguntou-lhe donde era e Carantonha respondeu:
- Eu sou da terra dos borrifos de água. E tratou de sair despercebida, para a cozinha, vestindo de novo a pele de ovelha.
No outro dia a criadagem não falava de outra coisa: da nova princesa que aparecera e ninguém sabia de que reinado era.
Quando ela foi apresentar a toalha ao rei, pediu-lhe licença para ir ao baile. O rei atirou-lhe a toalha:
- Tu, Carantonha?
Lá foi a moça para o seu cantinho da cozinha, esfregou o anel, e:
- Hoje quero um vestido cor de céu. E já estava como uma princesa. E foi entrando com jeito no salão. Opa! Que sucesso! O rei dançou com ela até a madrugada. Perguntou-lhe donde era.
– Eu? Eu sou da terra do joga a toalha. E tratou de escapulir-se.
No terceiro dia, enquanto o rei lavava as mãos depois do jantar, Carantonha pediu-lhe outra vez a licença para ir ao baile.
– Tu, Carantonha? E o rei deu-lhe um tapinha na cara, brincando.
A moça pediu ao anel o vestido cor do mar, muito mais lindo que os outros. E entrou no salão. Já o rei foi recebê-la e dançaram, dançaram.
– Donde és, bela princesa? Quero casar-me contigo, disse-lhe o rei.
– Eu? Eu sou da terra do leva um tapa.
Mais tarde a Carantonha escapou e foi vestir sua pele na cozinha.
Estava acabando o baile. O rei resolveu descobrir o enigma. A princesa acabava de desaparecer. Devia estar ainda no palácio. O rei mandou a polícia ocupar todas as saídas e quando as moças iam saindo examinava uma por uma a ver-lhe o vestido cor do mar e as feições do rosto, que muito bem lembrava. Nada! Ninguém! Examinou depois as camareiras do palácio. Carantonha pediu ao anel o mesmo vestido cor do mar, cobriu-se com a pele e ficou esperando. O rei estava certo que ninguém saíra. E então só faltava examinar a Carantonha. Ele já andava desconfiado. Por isso chegou de repente, puxou a espada e rasgou-lhe um pedaço da pele. Apareceu o vestido.
– Ah! É assim? – disse o rei, riscou a pele de alto a baixo e Carantonha apareceu se rindo, nos modos e no porte de uma princesa.
Os cortesãos estavam admirados! Que coisa!
Mas o rei, meio carrancudo, interpelou a moça.
– Tu estavas zombando de mim? Olha, que eu não sou para brincadeiras. Por que é que me dissestes que era da terra dos borrifos de água?
- Ué! Então vossa majestade não se lembra mais que quando pedi para ir ao baile da primeira noite me esborrifou a água no meu rosto?
- Ah! Tens razão. E por que na segunda noite disseste seres da terra do joga a toalha?
- Porque vossa majestade, quando pedi para ir ao baile, me jogou a toalha.
– Ah! É verdade. E na terceira noite tu eras da terra leva um tapa.
– Pois sim! Vossa majestade, quando lhe pedi para ir ao baile, me deu um tapa, brincando.
Em seguida, o rei apresentou a noiva aos cortesãos e convidados, marcou-se o dia das bodas. À hora do banquete, a nova rainha, como era costume, contou uma história. A história dela, a sua infância escondida, a caçada real, a madrinha boa fada. O barba de ouro era falecido, e a rainha mãe dela. Os pais adotivos vieram morar no palácio. Parece que ainda existem, arcadinhos, arcadinhos, mas contentes da vida!
* * *
Contou Luís Maria Ferreira, que lhe contou uma tia de seu pai lá por 1880, na Ilha da Madeira. Variante da conhecida Pele de burro com a Maria Borralheira, mais a interposição de um elemento novo, o barba de ouro, para explicar o motivo da transmutação, deixadas em paz as pobres madrastas.
(Três contos populares. O Estado de São Paulo, 4 de setembro de 1949)
(Ilustração: Thomas Sully - Cinderella at the kitchen fire)
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