Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu
conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és
terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te
deste modo,
Mas não te digo, nem te
lembro nada,
Porque há muito, que em
terra estás tornada.
Que importa, que algum tempo
a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a
espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo
troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais
ajuda
Em tuas mãos de prata o
amarelo,
E a prata de tuas mãos em
teu cabelo.
Se um tempo foram de marfim
brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem
já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os
vãos enredos,
Pois quando toco teus
nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem
enganos
Cinco cordões de frades
Franciscanos.
Viciando a natureza com tuas
tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu
rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se
alvorota
Máscara me pareces de
chacota,
E se sem tintas, cuido neste
passo
Que esta máscara está em
calhamaço.
Como pretendes pois com mil
enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de
teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no
Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o
brio?
Parecendo teu rosto, e
porque enfada,
Fruta, que se secou, noz
arrogada.
Se feitura de Deus Eva não
fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha
senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que
agora tenho;
E concluindo enfim, a
alcançar venho,
Pois alcançar não posso a
tua idade,
Que deves de ser mãe da
eternidade.
Parece que teus olhos por
consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo
penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar,
porque me choram
Não acerto com o beco, onde
moram,
Porque o tempo os mudou seu
passo, e passo
Da flor do rosto lá para o
cachaço.
Se a meus olhos despida te
ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me
pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo
em osso,
Com essa cara posta em tal
pescoço,
Me pareces, tirada a
cabeleira,
Em cima de um bordão uma
caveira.
Como ainda queres em
desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me
gabo)
Que te alugou sem dúvida o
diabo,
Invejando teu corpo, cara, e
dedos
Para fazer a Santo Antão os
medos.
Deixa, senhora, deixa o vão
cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em
sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem
desgosto,
Que eu quando vejo teu
funesto rosto
Já também dele o seu
conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento
homo.
(Fénix Renascida, V)
(Ilustração: Anthony van Dyck (1624) - portrait of Sofonisba Anguissola)
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