terça-feira, 31 de outubro de 2023

ERÓSTRATO, de Jean-Paul Sartre

 



É preciso ver os homens do alto. Eu apagava a luz e me punha à janela. Eles não supunham, absolutamente, que alguém pudesse observá-los de cima. Eles cuidam da fachada, às vezes dos fundos, mas todos os efeitos são calculados para espectadores de um metro e setenta. Quem jamais refletiu sobre o formato de um chapéu-coco visto de um sexto andar? Eles não pensam em defender os ombros e os crânios com cores vivas e tecidos vistosos, não sabem combater este grande inimigo do Humano: a perspectiva de alto para baixo. Eu me debruçava e começava a rir; afinal, onde estava essa famosa “posição ereta” de que eram tão orgulhosos? Esmagavam-se contra a calçada e duas longas pernas meio rastejantes saíam-lhes de sob os ombros.

A sacada de um sexto andar — eis onde eu deveria passar toda a vida. É preciso escorar as superioridades morais com símbolos materiais, sem o que elas se desmoronam. Ora, precisamente, qual é minha superioridade sobre os homens? Uma superioridade de posição, nada mais; estou colocado acima do humano que existe em mim e o contemplo. Eis por que gostava das torres da Notre-Dame, das plataformas da torre Eiffel, do Sacré-Coeur, do meu sexto andar da rua Delambre. São excelentes símbolos.

Às vezes era preciso descer de novo até a rua. Para ir ao escritório, por exemplo. Sentia-me sufocar. Quando se está na mesma altura dos homens é muito mais difícil considerá-los como formigas; eles esbarram. Uma vez, vi um tipo morto na rua. Caíra de borco. Tinham-no virado, sangrava. Vi seus olhos abertos e seu ar espantado e todo aquele sangue. Dizia de mim para comigo: “Isto não é nada, não é mais emocionante do que uma pintura fresca. Pintaram-lhe o nariz de vermelho, eis tudo.” Mas senti uma languidez estranha que me tomava as pernas e a nuca e desmaiei. Levaram-me a uma farmácia, deram-me sacudidelas nos ombros e álcool. Eu os teria matado.

Sabia que eles eram meus inimigos mas eles não o sabiam. Amavam-se entre si, ajudavam-se; e me teriam dado ajuda, ocasionalmente, porque acreditavam que eu era seu semelhante. Mas se pudessem adivinhar a mais ínfima parcela da verdade ter-me-iam batido. Fizeram-no mais tarde, aliás. Quando me prenderam e então souberam quem eu era, surraram-me, esmurraram-me durante duas horas, na polícia, deram-me bofetadas e socos, torceram-me os braços, arrancaram-me as calças e depois, para terminar, atiraram meus óculos ao chão e enquanto eu os procurava, de quatro, aplicaram-me, a rir, pontapés no traseiro. Sempre previ que acabariam por me bater; não sou forte e não posso defender-me. Alguns me vigiavam havia muito tempo — os grandes. Empurravam-me na rua, para rirem e verem o que eu faria. Eu não dizia nada. Fingia não ter compreendido. Não obstante, me pegaram. Sentia medo deles — era um pressentimento. Mas naturalmente é fácil imaginar que minhas razões para odiá-los eram mais sérias.

Desse ponto de vista tudo começou a ir melhor desde o dia em que comprei um revólver. A gente se sente forte quando carrega constantemente consigo uma dessas coisas que podem explodir e fazer barulho. Apanhava-o no domingo, punha-o muito simplesmente no bolso da calça e depois ia passear — geralmente nos bulevares. Eu o sentia repuxando minha calça como um caranguejo, sentia-o de encontro à minha coxa, muito frio. Pouco a pouco ele se aquecia em contato com o meu corpo. Eu andava com alguma rigidez, tinha o todo de um homem que está tendo uma ereção e que, a cada passo, precisa conter-se. Deslizava com a mão no bolso e apalpava o objeto. De vez em quando entrava num mictório — mesmo lá dentro eu estava vigilante, porque sempre há vizinhos — tirava meu revólver, sopesava-o, olhava a coronha quadriculada em preto e o gatilho negro que parece uma pálpebra semifechada. Os outros, ao verem, de fora, meus pés apartados e a barra de minhas calças, acreditavam que eu urinava. Mas nunca urino nos mictórios.

Uma tarde veio-me a ideia de atirar em homens. Era um sábado, eu saí para procurar Léa, uma loira que faz ponto em frente a um hotel da rua Montparnasse. Nunca tive relações íntimas com uma mulher; eu me sentiria roubado. Trepamos em cima delas, é claro, mas elas nos devoram o baixo ventre com uma grande boca peluda e, pelo que tenho ouvido dizer, são elas que ganham com a troca. Eu não peço nada a ninguém, mas também nada quero dar. Ou então precisaria de uma mulher fria e piedosa que me suportasse com repugnância. No primeiro sábado de cada mês, eu subia com Léa para um quarto do Hotel Duquesne. Ela se despia e eu a olhava sem tocá-la.

Às vezes, acontecia satisfazer-me nas calças, outras vezes tinha de voltar para casa. Aquela tarde não a encontrei no seu posto. Esperei um momento e, como não a vi chegar, supus que estivesse gripada. Era começo de janeiro e fazia muito frio. Eu estava desolado. Sou um imaginativo e tinha imaginado vivamente o prazer que esperava tirar daquela tarde. Havia, na rua de Odessa, uma morena que eu notara muitas vezes, um pouco madura mas firme e carnuda; não detesto as mulheres maduras; quando elas estão nuas parecem mais nuas do que as outras. Mas ela não estava a par dos meus hábitos, e intimidava-me um pouco expô-los inconsideradamente. Depois eu desconfio das novas relações; essas mulheres podem muito bem esconder um vadio atrás duma porta e o tipo se introduz de repente e toma o dinheiro da gente. E ainda nos damos por felizes quando não levamos alguns socos. Entretanto, aquela tarde, eu me sentia cheio de ousadia, decidi passar por casa para apanhar meu revólver e tentar a aventura.

Quando abordei a mulher, um quarto de hora mais tarde, minha arma estava no bolso e eu não temia mais nada. Observando-a de perto notei-lhe um aspecto miserável. Parecia a minha vizinha da frente, a mulher do ajudante, e fiquei muito satisfeito, porque há muito tempo tinha desejos de vê-la nua. Ela vestia-se com a janela aberta, quando o ajudante partia, e eu permanecia muitas vezes atrás da cortina para surpreendê-la. Mas, ela se arrumava no fundo do quarto.

No Hotel Stella só havia um cômodo livre, no quarto andar. Subimos. A mulher era muito pesada e se detinha a cada degrau, para respirar. Eu estava muito à vontade; tenho o corpo magro, apesar da barriga, e seriam necessários mais de quatro andares para que perdesse o fôlego. No patamar do quarto andar ela parou e pôs a mão direita sobre o coração, respirando muito forte. Com a mão esquerda segurava a chave do quarto.

— É alto — disse, tentando me sorrir.

Tomei-lhe a chave, sem responder, e abri a porta. Eu tinha o revólver na mão esquerda, apontado para a frente, através do bolso, e não o larguei senão após haver virado o comutador. O quarto estava vazio. No lavatório havia um quadradinho de sabão verde. Eu sorri. Nem os bidês nem os pequenos quadriláteros de sabão me interessavam. A mulher respirava forte, sempre atrás de mim, e isso me excitava. Voltei-me; ela me ofereceu os lábios. Repeli-a.

— Dispa-se — disse-lhe. Havia uma poltrona atapetada. Sentei-me confortavelmente. É nessa hora que lamento não fumar. A mulher tirou a roupa, depois estacou, deitando-me um olhar desconfiado.

— Como se chama? — perguntei, recostando-me.

— Renée.

— Bem, Renée, apresse-se, estou esperando.

— Você não se despe?

— Ora, ora, não se incomode comigo.

Ela fez cair a calça a seus pés, depois apanhou-a e colocou-a cuidadosamente sobre o vestido com o sutiã.

— Você é, então, um pequeno viciado, meu querido, um pequeno preguiçoso? — perguntou-me. — Quer que sua mulherzinha faça todo o trabalho?

Ao mesmo tempo ela deu um passo para o meu lado e, apoiando-se com as mãos ao encosto da minha poltrona, tentou, pesadamente, ajoelhar-se entre minhas pernas. Mas eu a pus de pé com brutalidade.

— Nada disso, nada disso.

Ela me olhou surpreendida.

— Mas que é que você quer que eu faça?

— Nada. Caminhe, ande, não lhe peço mais nada.

Ela se pôs a caminhar de lá para cá, com um ar ridículo. Nada aborrece mais as mulheres do que caminhar quando estão nuas. Elas não têm o hábito de andar sem salto. A meretriz curvava o dorso e deixava pender os braços. Quanto a mim, sentia-me encantado; estava ali, tranquilamente refestelado numa poltrona, vestido até o pescoço, tinha conservado até as luvas e essa senhora madura se pusera toda nua às minhas ordens e volteava ao meu redor.

Ela virou a cabeça para o meu lado e, para salvar as aparências, sorriu-me galantemente:

— Você me acha bonita? Está gostando do espetáculo?

— Não se incomode com isso.

— Olhe — perguntou-me com uma súbita indignação —, você tem intenção de me fazer andar muito tempo assim?

— Sente-se.

Ela sentou-se na cama e nós nos fitamos em silêncio. Ela estava toda arrepiada. Ouvia-se o tique-taque de um despertador, do outro lado da parede. De repente, eu lhe disse:

— Abra as pernas.

Ela hesitou um quarto de segundo, depois obedeceu. Olhei entre suas pernas e funguei. Em seguida, pus-me a rir tão forte que as lágrimas me vieram aos olhos. Disse-lhe apenas:

— Você está percebendo?

E recomecei a rir.

Ela me olhou com estupor, depois corou violentamente e tornou a unir as pernas.

— Porco — disse entre os dentes.

Mas eu ri ainda mais, então ela se levantou de um salto e pegou o sutiã de sobre a cadeira.

— Eh — atalhei —, isso não acabou. Eu lhe darei 50 francos agora mesmo, mas não quero ser roubado.

Ela pegou nervosamente as calças.

— Para mim, basta, você compreende. Não sei o que você quer. E se você me fez subir para zombar de mim...Então eu tirei o revólver e lhe mostrei. Ela me olhou com um ar sério e deixou cair as calças sem dizer nada.

— Caminhe — disse-lhe —, ande.

Ela caminhou ainda cinco minutos. Depois dei-lhe minha bengala e obriguei-a a fazer exercício. Quando senti que minha cueca estava molhada, levantei-me e lhe estendi uma nota de 50 francos. Ela pegou-a.

— Até logo — acrescentei —, não a cansei muito, pelo preço.

Saí, deixando-a inteiramente nua no meio do quarto, com o sutiã numa das mãos e a cédula de 50 francos na outra. Não chorei o meu dinheiro; eu a perturbara e uma decaída não se perturba facilmente. Descendo a escada, pensei: “Eis o que eu queria, assustá-los todos.” Estava alegre como uma criança. Carregava comigo o sabonete verde e em casa esfreguei-o muito tempo debaixo da água quente até tornar-se uma delicada película entre meus dedos; parecia bala de hortelã muito chupada.

Mas à noite acordei sobressaltado e revi seu rosto, os olhos que ela fez quando lhe mostrei a arma, e seu ventre gordo que balançava a cada um de seus passos.

“Como fui estúpido”, disse com meus botões. E senti um amargo remorso; eu devia ter atirado, furado aquele ventre como uma escumadeira. Essa noite e as três seguintes sonhei com seis buraquinhos vermelhos agrupados em círculo, ao redor do umbigo.

Desde então, não saí mais sem meu revólver. Eu olhava as costas das pessoas e imaginava, conforme seu andar, a maneira como cairiam se eu lhes desse um tiro. Habituei-me a ir, aos domingos, colocar-me diante do Châtelet, à saída dos concertos clássicos. Pelas 6h, ouvia a campainha e as porteiras vinham prender com ganchos as portas de vidro. Era o começo: a multidão saía lentamente; as pessoas caminhavam com um passo flutuante, os olhos ainda cheios de sonho, o coração repleto ainda de agradáveis sensações. Havia muitos que olhavam em torno com um ar admirado; a rua devia parecer-lhes inteiramente azul. Então, sorriam misteriosamente: passavam de um mundo a outro. É no outro que eu os esperava. Eu enfiara a mão direita no bolso e apertava com toda a força a coronha da arma. Ao fim de algum tempo eu me via prestes a atirar. Eu os derrubava como cachimbos de barro, eles caíam uns sobre os outros e os sobreviventes, tomados de pânico, refluíam para o teatro quebrando os vidros das portas. Era uma brincadeira muito enervante; minhas mãos tremiam, por fim eu me via obrigado a tomar um conhaque no Dreher para me refazer.

Não mataria as mulheres. Atirar-lhes-ia nos rins. Ou então na barriga da perna para fazê-las dançar.

Não tinha decidido nada ainda. Mas tomei o partido de fazer tudo como se minha decisão estivesse tomada. Comecei por calcular os pormenores acessórios. Fui exercitar-me num stand, na feira de Denfert-Rochereau. Os resultados não eram dos melhores mas os homens são alvos grandes, principalmente quando se atira à queima-roupa. Em seguida, ocupei-me da publicidade. Escolhi um dia em que todos os meus colegas estavam reunidos no escritório. Uma segunda-feira, de manhã. Eu era muito amável com eles, por princípio, embora tivesse horror de lhes apertar a mão. Eles tiravam as luvas para dizer bom-dia, tinham um modo obsceno de despir a mão, de abaixar a luva e fazê-la deslizar lentamente ao longo dos dedos, revelando a nudez gorda e amarrotada da palma. Eu conservava sempre minhas luvas.

Segunda-feira, pela manhã, não se faz grande coisa. A datilógrafa do serviço comercial acabava de trazer os recibos. Lemercier gracejou com ela gentilmente e, quando ela saiu, eles descreveram seus encantos com uma competência enfastiada. Depois falaram de Lindbergh. Gostavam muito de Lindbergh. Eu lhes disse:

— Quanto a mim, gosto dos heróis negros.

— Os pretos? — perguntou Massé.

— Não, negros, como se diz em Magia Negra. Lindbergh é um herói branco. Não me interessa.

— Vá ver se é fácil atravessar o Atlântico — disse asperamente Bouxin.

Expus-lhes minha concepção do herói negro.

— Um anarquista — resumiu Lemercier.

— Não — disse docemente —, os anarquistas gostam dos homens à sua maneira.

— Então, seria um biruta.

Mas Massé, que era letrado, interveio nesse momento:

— Eu conheço o seu tipo — disse-me. — Chama-se Eróstrato. Ele queria tornar-se ilustre e não achou nada melhor do que incendiar o templo de Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo.

— E como se chamava o arquiteto desse templo?

— Não me lembro mais — confessou —, creio mesmo que não se sabe o nome dele.

— Então? E você se lembra do nome de Eróstrato? Bem vê que o cálculo dele não foi tão errado!...

A conversação terminou com estas palavras, mas eu estava sossegado; eles se lembrariam dela no momento propício. Quanto a mim, que até então jamais ouvira falar de Eróstrato, sua história me encorajou. Havia mais de 2 mil anos que ele estava morto e sua ação brilhava ainda, como um diamante negro. Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz, mas, de outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis. Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das bombas. Eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio. Aconteceu-me, por essa ocasião, ter muitas noites o mesmo sonho. Era um anarquista, tinha-me colocado à passagem do czar e levava comigo uma máquina infernal. À hora ajustada, o cortejo passava, a bomba explodia e sob o olhar da multidão nós voávamos pelo ar, eu, o czar e três oficiais com galões de ouro.

Eu ficava, agora, semanas inteiras sem aparecer no escritório. Passeava pelos bulevares, no meio de minhas futuras vítimas, ou encerrava-me no meu quarto fazendo planos. Despediram-me no começo de outubro. Ocupava, então, minhas horas vagas redigindo a seguinte carta, que copiei em 102 exemplares.

“Senhor

Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de 30 mil exemplares. Vou dizer-vos por quê: é que amais os homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vedes um de vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis simpatia por ele. Admirais o seu corpo, pela maneira como é articulado, pelas pernas que se abrem e se fecham à vontade, pelas mãos sobretudo; agrada-vos que haja cinco dedos em cada mão e que o polegar passe a opor-se aos outros dedos. Deleitai-vos quando vosso vizinho pega uma xícara da mesa, porque ele tem um modo de pegar que é propriamente humano e que sempre descrevestes em vossas obras como menos elástico e menos rápido que o do macaco, não é? Porém muito mais inteligente. Amais também a carne do homem, seu comportamento de um mutilado em reeducação, seu ar de reinventar a marcha a cada passo e seu famoso olhar que as feras não podem suportar. Foi fácil, pois, encontrar a linguagem que convém para falar ao homem de si mesmo; uma linguagem pudica mas apaixonada. Os indivíduos atiram-se com gula aos vossos livros, leem-nos numa boa poltrona, pensam no grande amor infeliz e discreto que lhes dedicais e isso os consola de muitas coisas, de serem feios, covardes, cornos, de não terem recebido aumento em primeiro de janeiro. E diz-se, de bom grado, de vosso último romance: é uma boa ação.

“Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um homem que não gosta dos homens. Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revólver não tem mais que seis cartuchos. Eis uma monstruosidade, não? Além do mais, um ato propriamente impolítico? Mas eu vos digo que não posso amá-los. Compreendo muitíssimo bem o que vós sentis. Mas o que neles vos atrai a mim me repugna. Vi, como vós, homens mastigarem com moderação, conservando o olho adequado, folheando com a mão esquerda uma revista econômica. É culpa minha se prefiro assistir à refeição das focas? O homem nada pode fazer de seu rosto sem que isso vire jogo fisionômico. Quando ele mastiga conservando a boca fechada, os cantos dos lábios sobem e descem, ele parece passar sem descanso da serenidade à surpresa chorona. Gostais disso, eu o sei, chamais a isso vigilância do Espírito. Mas a mim isso me aborrece. Não sei por quê; nasci assim.

“Se não houvesse entre nós senão uma pequena diferença de gosto, eu não vos importunaria. Mas tudo se passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida. Espero que compreendais o que quero dizer. Há 33 anos que esbarro em portas fechadas sobre as quais se escreveu: “Se não for humanista, não entre.” Tive de abandonar tudo o que empreendi; precisava escolher: ou era uma tentativa absurda e condenada ou era preciso que ela redundasse cedo ou tarde em seu proveito. Os pensamentos que eu não lhes destinava expressamente, eu não chegava a destacá-los de mim, a formulá-los; permaneciam em mim como leves movimentos orgânicos. Mesmo as ferramentas de que me servia senti que lhes pertenciam; as palavras, por exemplo: desejara palavras minhas. Mas as de que disponho arrastaram-se por não sei quantas consciências; arranjam-se inteiramente sós na minha cabeça em virtude de hábitos que tomaram nas outras e não é sem repugnância que as utilizo quando vos escrevo. Mas é pela última vez. Eu vos digo: ou amamos os homens ou eles não nos permitem trabalhar a sério. Eu não quero meios-termos. Vou pegar, agora mesmo, meu revólver, descerei à rua e verei se é possível executar bem alguma coisa contra eles. Adeus, senhor, talvez sejais vós quem vou encontrar. Não sabereis jamais com que prazer eu explodirei vossos miolos. Se não — é o caso mais provável — lede os jornais de amanhã. Lá vereis que um indivíduo chamado Paul Hilbert matou, numa crise de furor, cinco transeuntes no bulevar Edgar-Quinet. Sabeis melhor que ninguém o que vale a prosa dos grandes diários. Compreendei que não sou um “furioso”. Estou muito calmo, ao contrário, e vos peço aceitar os meus melhores cumprimentos.

Paul HILBERT

Pus as 102 cartas em 102 envelopes e escrevi nos envelopes os endereços de 102 escritores franceses. Depois, coloquei tudo numa gaveta de minha mesa com seis folhas de selos.

Durante os 15 dias seguintes, saí muito pouco, deixava-me tomar lentamente pelo meu crime. Ao espelho, onde ia, às vezes, me olhar, verificava com prazer as transformações de minha fisionomia. Os olhos estavam maiores; invadiam todo o rosto. Eram negros e ternos sob os óculos e eu os fazia rolar como planetas. Belos olhos de artista e de assassino. Mas eu esperava mudar ainda mais profundamente após a realização do massacre. Tinha visto os retratos dessas duas belas raparigas, duas criadas que mataram e saquearam suas patroas. Vi suas fotografias de antes e de depois. Antes, seus rostos se balouçavam como flores em cima das golas de algodão. Respiravam higiene e honestidade tentadora. Um ferro discreto havia ondulado igualmente seus cabelos. E, mais tranquilizadora ainda que seus cabelos frisados, que suas golas e seu ar de visita ao fotógrafo, havia sua semelhança de irmãs, sua semelhança tão convencional e que punha imediatamente à mostra os laços de sangue e as raízes naturais do grupo familial. Depois, suas faces resplandeciam como incêndios. Elas tinham o pescoço nu das futuras decapitadas. Rugas por toda a parte, horríveis rugas de medo e de ódio, pregas, orifícios na carne como se um animal de garras as houvesse perseguido. E esses olhos, sempre esses grandes olhos negros e sem fundo — como os meus. Entretanto, elas não se pareciam mais. Cada uma trazia à sua maneira a lembrança do crime comum. “Se basta”, dizia de mim para mim, “um crime audacioso em que o acaso influi grandemente para transformar assim essas caras de orfanato, o que não posso esperar de um crime inteiramente concebido e organizado por mim?” Ele se apoderará de mim, resolverá minha feiura muito humana... um crime, isso corta em duas partes a vida daquele que o comete. Deve haver momentos em que a gente deseja voltar atrás, mas ele está ali, bem próximo, esse mineral resplandecente, barrando a passagem. Só pedia uma hora para gozar o meu, para sentir seu peso esmagador. Arranjarei tudo para ter esta hora para mim; decidi fazer a execução no alto da rua de Odessa. Aproveitaria o pânico para fugir, deixando-os a recolher seus mortos. Correria, atravessaria o bulevar Edgar-Quinet e viraria rapidamente na rua Delambre. Não precisaria senão de 30 segundos para atingir a porta do prédio onde moro. Nesse momento meus perseguidores estariam ainda no bulevar Edgar-Quinet, perderiam meu rastro e precisariam seguramente de mais de uma hora para encontrá-lo de novo. Eu os esperaria em casa e, quando os ouvisse bater à minha porta, tornaria a carregar meu revólver e o descarregaria na boca.

Eu vivia mais profundamente. Contratara com o dono de uma pensão na rua Vavin a remessa, pela manhã e à tarde, de uns bons pratinhos. O empregado tocava a campainha, eu não abria, esperava alguns minutos, depois entreabria minha porta e via, num grande cesto colocado no chão, pratos cheios que fumegavam.

No dia 27 de outubro, às 6h da tarde, restavam-me 17 francos e meio. Peguei meu revólver e o pacote de cartas e desci. Tive o cuidado de não fechar a porta para poder entrar mais depressa quando tivesse executado o golpe. Não me sentia bem, tinha as mãos frias e o sangue na cabeça, os olhos coçavam. Olhei as lojas, o Hôtel des Écoles, a papelaria onde compro meus lápis e não os reconheci. Dizia para mim mesmo: “Que rua é esta?” O bulevar Montparnasse estava cheio de gente. Atropelavam-me, empurravam-me, tocavam-me com os cotovelos ou os ombros. Eu me deixava sacudir, faltava-me força para deslizar entre eles. Vi-me, de repente, bem no meio dessa multidão, horrivelmente só e pequeno. Como eles teriam podido fazer-me mal se tivessem querido! Eu tinha medo por causa da arma no meu bolso. Parecia-me que iam adivinhar que ela estava ali. Eles me olhariam com seus olhos duros e diriam: “Eh, mas... mas...”com alegre indignação fisgando-me com suas patas de homens. Linchado! Eles me atirariam para cima de suas cabeças e eu tornaria a cair nos seus braços como um boneco. Julguei mais prudente adiar a execução do meu projeto. Fui jantar na Coupole por 16 francos e 80. Restavam-me 70 cêntimos, que joguei no rio.

Fiquei três dias no meu quarto, sem comer, sem dormir. Tinha fechado as persianas e não ousava aproximar-me da janela nem acender a luz. Na segunda-feira alguém tamborilou à porta. Retive a respiração e esperei. Depois de um minuto tornaram a bater. Fui, nas pontas dos pés, colar o olho ao buraco da fechadura. Vi somente um pedaço de pano preto e um botão. O tipo bateu ainda, depois desceu. Não sei quem era. À noite tive visões novas, de palmeiras, água escorrendo, um céu violeta acima de uma cúpula. Não tinha sede, porque, de hora em hora, ia beber na torneira da pia. Mas sentia fome. Revi também a meretriz morena. Era num castelo que eu mandara construir nas Causses Noires, a 20 léguas de qualquer povoação. Ela estava nua e só comigo. Forcei-a a pôr-se de joelhos sob a ameaça de meu revólver, e a andar de gatinhas, depois prendi-a a um pilar e, após lhe haver longamente explicado o que ia fazer, crivei-a de balas. Essas imagens perturbaram-me de tal maneira que tive de satisfazer-me. Depois fiquei imóvel no escuro, a cabeça absolutamente vazia. Os móveis puseram-se a estalar. Eram 5h da manhã. Teria dado qualquer coisa para deixar meu quarto, mas não podia descer por causa das pessoas que andavam nas ruas.

Veio o dia. Não sentia mais fome, mas comecei a suar: ensopei a camisa. Fora fazia sol. Então, pensei: “Ele está escondido num quarto escuro. Há três dias Ele não come nem dorme. Bateram à porta e Ele não abriu. Daqui a pouco Ele vai descer à rua e matará.” Tinha medo de mim mesmo. Às seis da tarde a fome voltou. Estava louco de cólera. Esbarrei em dado momento nos móveis, depois acendi a luz nos quartos, na cozinha, no banheiro. Pus-me a cantar como um possesso, lavei as mãos e saí. Foram necessários dois bons minutos para pôr todas as minhas cartas na caixa. Eu as enfiava em pacotes de dez. Devo ter estragado alguns envelopes. Depois, segui pelo bulevar Montparnasse até a rua de Odessa. Parei diante do mostruário de uma camisaria e, quando vi minha cara, pensei: “É para esta tarde.”

Postei-me no alto da rua de Odessa, não longe de um bico de gás, e esperei. Duas mulheres passaram. Estavam de braços dados, e a loura dizia:

— Tinham colocado tapetes em todas as janelas e eram os nobres do país que faziam a figuração.

— Eles estão sem dinheiro? — perguntou a outra.

— Não há necessidade de ser pronto para aceitar um trabalho que rende cinco luíses por dia.

— Cinco luíses! — exclamou a morena, deslumbrada. Ela ajuntou, passando por mim: — Ademais, acho que usar as roupas de seus antepassados devia diverti-los.

Distanciaram-se. Sentia frio mas suava em bicas. Depois de um instante vi chegarem três homens; deixei-os passar; eu precisava de seis. O da esquerda olhou-me e estalou a língua. Desviei a vista.

Às sete e cinco, dois grupos que se seguiam de perto desembocaram no bulevar Edgar-Quinet. Havia um homem e uma mulher com duas crianças. Atrás deles vinham três velhas. Dei um passo à frente. A mulher parecia zangada e sacudia o menino pelo braço. O homem disse com voz arrastada:

— Como é cacete, esse chato!

Meu coração batia tão forte que senti dores nos braços. Avancei e fiquei diante deles, imóvel. Meus dedos, no bolso, estavam moles em volta do gatilho.

— Com licença — disse o homem, empurrando-me.

Lembrei-me de que tinha fechado a porta do meu apartamento e isso me contrariou; teria de perder um tempo precioso para abri-la. As pessoas se distanciaram. Voltei-me e segui-as maquinalmente. Mas não tinha mais vontade de atirar nelas. Perderam-se na multidão do bulevar. Quanto a mim, apoiei-me à parede. Ouvi bater 8h, 9h, e repetia comigo mesmo: “Por que é que preciso matar todos esses indivíduos que já estão mortos?” e tinha vontade de rir. Um cão veio farejar meus pés.

Quando o homem corpulento passou por mim sobressaltei-me e segui-o. Eu via a prega de sua nuca vermelha entre o chapéu-coco e a gola do sobretudo. Ele balançava um pouco o corpo e respirava forte, era um tipo robusto. Saquei o revólver — era brilhante e frio, aborrecia-me, não me lembrava bem do que devia fazer com ele. Ora eu o olhava, ora olhava a nuca do sujeito. A prega da nuca sorria-me como uma boca sorridente e amarga. Eu perguntava a mim mesmo se não ia jogar meu revólver num esgoto.

De repente o tipo voltou-se e me olhou com um ar irritado. Dei um passo atrás.

— É para lhe... perguntar...

Ele não parecia ouvir, olhava minhas mãos. Eu concluí penosamente:

— Pode me dizer onde é a rua da Gaité? Seu rosto era enorme e seus lábios tremiam. Não disse nada, estendeu a mão. Recuei de novo e disse:

— Eu queria...

Nesse momento senti que eu ia começar a urrar. Mas não queria. Disparei-lhe três balas contra o ventre. Ele caiu, com um ar idiota, sobre os joelhos e sua cabeça rolou sobre o ombro esquerdo.

— Porco — disse-lhe —, grande porco!

Escondi-me. Ouvi-o tossir. Ouvi também gritos e uma galopada atrás de mim. Alguém perguntou: “Que é isso, estão brigando?” Logo depois alguém gritou: “Pega o assassino! Pega o assassino!” Não pensei que esses gritos me dissessem respeito. Mas me pareciam sinistros, como a sereia dos bombeiros quando eu era criança. Sinistros e ligeiramente ridículos. Corri com toda a força de minhas pernas.

Cometi, porém, um erro imperdoável: em vez de tornar a subir a rua de Odessa em direção ao bulevar Edgar-¬Quinet, eu a desci em direção ao bulevar Montparnasse. Quando o percebi, era muito tarde; estava já bem no meio da multidão, rostos assombrados voltavam-se para mim (lembro-me do de uma mulher muito pintada que trazia um chapéu vermelho com um penacho) e ouvi os imbecis da rua de Odessa gritarem: “Pega o assassino”, às minhas costas. Uma mão pousou no meu ombro. Aí perdi a cabeça; eu não queria morrer sufocado por essa multidão. Ainda dei dois tiros. As pessoas puseram-se a gritar e se separaram. Entrei correndo num café. Os fregueses se levantaram à minha passagem mas não tentaram deter-me. Atravessei o café em todo o seu comprimento e tranquei-me no banheiro. Restava ainda uma bala no revólver.

Passou-se um momento. Eu me sentia sufocado e arquejava. Tudo mergulhara num silêncio extraordinário como se as pessoas se tivessem calado propositadamente. Levantei minha arma até os olhos e vi seu pequeno orifício negro e redondo; a bala sairia por ali; a pólvora me queimaria o rosto. Deixei cair de novo o braço e esperei. No fim de um instante eles se aproximaram vagarosamente; deveria ser um grupo grande a julgar pelo barulho dos pés no soalho. Eles cochicharam um pouco e depois calaram-se. Eu arquejava sempre e pensava que me ouviam respirar do outro lado do tabique. Alguém avançou cautelosamente e mexeu na maçaneta da porta. Devia estar encostado de lado, à parede, para evitar minhas balas. Tive assim mesmo ânsia de atirar — mas a última bala era para mim.

“Que é que esperam?”, pensei. “Se eles se atirassem contra a porta e a derrubassem imediatamente, eu não teria tempo de me matar e me pegariam vivo.” Mas eles não se apressavam, davam-me tempo para me matar. Aqueles porcos tinham medo.

No fim de algum tempo uma voz elevou-se.

— Vamos, abra que não lhe faremos mal.

Houve um silêncio e a mesma voz repetiu:

— Você sabe que não pode escapar.

Não respondi, arquejava sempre. Para me encorajar a atirar eu dizia a mim mesmo: “Se eles me agarram, vão bater-me, quebrar-me os dentes, furar-me um olho, talvez.” Eu queria saber se o sujeito gordo estava morto. Talvez eu o tivesse apenas ferido... e as outras duas balas talvez não houvessem atingido ninguém. Eles preparavam alguma coisa, estavam atirando um objeto pesado sobre o soalho? Apressei-me a meter o cano da arma na boca e mordi-o com força. Mas não podia atirar, nem mesmo pôr o dedo no gatilho. Tudo voltara a tornar-se silencioso.

Então joguei o revólver fora e abri a porta.



(O Muro; tradução de H. Alcântara Silveira).



(Ilustração: Rene Magritte - The Menaced Assassin)

sábado, 28 de outubro de 2023

题任处士创资福寺/ O TEMPLO ZIFU, FUNDADO PELO EREMITA REN, de 魚玄機 / Yu Xuanji

 






幽人创奇境,

游客驻行程。

粉壁空留字,

莲宫未有名。

凿池泉自出,

开径草重生。

百尺金轮阁,

当川豁眼明



Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao:



Ergueu o templo um homem solitário

e hoje é descanso a viajantes – pouso –

Deixam seus nomes vãos à porta, ao lótus

deitam-se escritos nas paredes brancas

As águas correm para o velho tanque

A relva próxima ao caminho brota

Cem pés é alto o pavilhão de ouro

e em frente ao rio, todo brilho, claro



(Poemas Celestiais: Li Bai, Wang Wei e Yu Xuanji; tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao)



(Ilustração: templo Fuyang Zifu)


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

DISCURSO NA ONU EM SETEMBRO DE 2013, de José Mujica

 


Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.

Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.

A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.

O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.

O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.

O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.

Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.

Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…

Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos “reclamáveis”, que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.

Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.

A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.

Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é “tudo”, essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.

Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.

Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.

Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.

A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra quando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.

Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.

Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.

A ONU, nossa ONU, enlanguesce, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.

Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.

Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.

Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo malgasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso “nós”.

Obrigado.



(Tradução de Fernanda Grabauska)



(Ilustração: Cândido Portinari - painéis Guerra e Paz na Onu)

domingo, 22 de outubro de 2023

LES ANIMAUX MALADES DE LA PESTE / OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE / OS ANIMAIS DOENTES DA PESTE, de La Fontaine

 




Un mal qui répand la terreur,

Mal que le Ciel en sa fureur

Inventa pour punir les crimes de la terre,

La Peste (puisqu'il faut l'appeler par son nom)

Capable d'enrichir en un jour l'Achéron,

Faisait aux animaux la guerre.

Ils ne mouraient pas tous, mais tous étaient frappés :

On n'en voyait point d'occupés

A chercher le soutien d'une mourante vie ;

Nul mets n'excitait leur envie ;

Ni Loups ni Renards n'épiaient

La douce et l'innocente proie.

Les Tourterelles se fuyaient :

Plus d'amour, partant plus de joie.

Le Lion tint conseil, et dit : Mes chers amis,

Je crois que le Ciel a permis

Pour nos péchés cette infortune ;

Que le plus coupable de nous

Se sacrifie aux traits du céleste courroux,

Peut-être il obtiendra la guérison commune.

L'histoire nous apprend qu'en de tels accidents

On fait de pareils dévouements :

Ne nous flattons donc point ; voyons sans indulgence

L'état de notre conscience.

Pour moi, satisfaisant mes appétits gloutons

J'ai dévoré force moutons.

Que m'avaient-ils fait ? Nulle offense :

Même il m'est arrivé quelquefois de manger

Le Berger. Je me dévouerai donc, s'il le faut ; mais je pense

Qu'il est bon que chacun s'accuse ainsi que moi :

Car on doit souhaiter selon toute justice

Que le plus coupable périsse.

- Sire, dit le Renard, vous êtes trop bon Roi ;

Vos scrupules font voir trop de délicatesse ;

Et bien, manger moutons, canaille, sotte espèce,

Est-ce un péché ? Non, non. Vous leur fîtes Seigneur

En les croquant beaucoup d'honneur.

Et quant au Berger l'on peut dire

Qu'il était digne de tous maux,

Etant de ces gens-là qui sur les animaux

Se font un chimérique empire.

Ainsi dit le Renard, et flatteurs d'applaudir.

On n'osa trop approfondir

Du Tigre, ni de l'Ours, ni des autres puissances,

Les moins pardonnables offenses.

Tous les gens querelleurs, jusqu'aux simples mâtins,

Au dire de chacun, étaient de petits saints.

L'Ane vint à son tour et dit : J'ai souvenance

Qu'en un pré de Moines passant,

La faim, l'occasion, l'herbe tendre, et je pense

Quelque diable aussi me poussant,

Je tondis de ce pré la largeur de ma langue.

Je n'en avais nul droit, puisqu'il faut parler net.

A ces mots on cria haro sur le baudet.

Un Loup quelque peu clerc prouva par sa harangue

Qu'il fallait dévouer ce maudit animal,

Ce pelé, ce galeux, d'où venait tout leur mal.

Sa peccadille fut jugée un cas pendable.

Manger l'herbe d'autrui ! quel crime abominable !

Rien que la mort n'était capable

D'expier son forfait : on le lui fit bien voir.

Selon que vous serez puissant ou misérable,

Les jugements de cour vous rendront blanc ou noir.



Tradução de Machado de Assis:




Mal que espalha o terror e que a ira celeste

Inventou para castigar

Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,

Capaz de abastecer o Aqueronte num dia,

Veio entre os animais lavrar;

E, se nem tudo sucumbia,

Certo é que tudo adoecia.

Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,

Catava mais nenhum sustento.

Não havia manjar que o apetite abrisse,

Raposa ou lobo que saísse

Contra a presa inocente e mansa,

Rola que à rola não fugisse,

E onde amor falta, adeus, folgança!

O leão convocou uma assembléia e disse:

"Sócios meus, certamente este infortúnio veio

A castigar-nos de pecados.

Que o mais culpado entre os culpados

Morra por aplacar a cólera divina.

Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.

Em casos tais é de uso haver sacrificados;

Assim a história no-lo ensina.

Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,

Pesquisemos a consciência.

Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,

Devorei muita carneirada.

Em que é que me ofendera? em nada.

E tive mesmo ocasião

De comer igualmente o guarda da manada.

Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.

Mas, assim como me acusei,

Bom é que cada um se acuse, de tal sorte

Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto

Justo) caiba ao maior dos culpados a morte."

"— Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei

Bom demais; é provar melindre exagerado.

Pois então devorar carneiros,

Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?

Não. Vós fizestes-lhes, senhor,

Em os comer, muito favor.

E no que toca aos pegureiros,

Toda a calamidade era bem merecida,

Pois são daquelas gentes tais

Que imaginaram ter posição mais subida

Que a de nós outros animais".

Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.

Ninguém do tigre nem do urso,

Ninguém de outras iguais senhorias do mato,

Inda entre os atos mais daninhos,

Ousava esmerilhar um ato;

E até os últimos rafeiros,

Todos os bichos rezingueiros,

Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.

Eis chega o burro: — "Tenho ideia que no prado

De um convento, indo eu a passar, e picado

Da ocasião, da fome e do capim viçoso,

E pode ser que do tinhoso,

Um bocadinho lambisquei

Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade."

Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!"

Um lobo, algo letrado, arenga e persuade

Que era força imolar esse bicho nefando,

Empesteado autor de tal calamidade;

E o pecadilho foi julgado

Um atentado.

Pois comer erva alheia! ó crime abominando!

Era visto que só a morte

Poderia purgar um pecado tão duro.

E o burro foi ao reino escuro.



Segundo sejas tu miserável ou forte

Áulicos te farão detestável ou puro.



Tradução de Adalberto Müller:



Um mal que espalha o terror;

Mal que o Céu, em todo o furor,

Inventou pra punir os crimes da terra,

A Peste (que o seu nome a todos eu conte),

Capaz de encher num dia o rio Aqueronte,

Entrou com os animais em guerra.

Nem todos morreram, mas nenhum foi poupado:

Já ninguém andava ocupado

Em buscar alimentar-se contra a doença;

De nenhum roncava a pança;

Nem Lobos nem Raposas iam

Espiar a presa inocente.

Até mesmo os Pombos fugiam:

Ninguém ali estava contente.



O Leão, na Assembleia, disse: Meu Povo

Parece que o Senhor de novo

Nos envia um infortúnio;

Mas entre nós, anda um culpado;

Sacrificando-o, lavamos nosso pecado,

E o Céu nos salva a vida e o pecúlio.

Eu digo, a história vai nos julgar lá na frente,

Ainda que morra muita gente.

Não adianta apelar agora: sem clemência,

Cada qual exponha a consciência.

Quanto a mim, sempre fui glutão;

Ovelhas, comi de montão.

O que elas me fizeram? Nada.

E já cheguei até a comer um Pastor.

Eu até faria o sacrifício. Mas cada

Um deve se acusar e declarar sua culpa:

Devemos ter fé na justiça,

O culpado vira linguiça.

"Presidente, disse a Raposa, desculpa,

Mas acho que o Senhor está pegando leve;

Comer as ovelhas, gente canalha, se deve.

Pecado? Não vejo. É tudo parasita.

Sorte delas, virar marmita.

E quanto ao Pastor, é melhor ter em mente

Que ele merece o guisado,

Pois anda levando toda essa gente

Na ponta do seu cajado."

Falou a Raposa, e o povo aplaudiu.

Ninguém ousou dar nem um pio

Sobre o Tigre, o Urso, e outras autoridades

E as suas barbaridades.

Em meio a essa gente briguenta, até o pitt bull

Era um santo, e gente boa.

Veio então um Burrico, e disse: eu me lembro

Que eu estava andando um dia lá pela horta,

Tinha fome, e era dezembro,

Deve ter sido o diabo que me abriu a porta,

E limpei a horta com os dentes".

Isso deu raiva aos presentes.

Então um Lobo, disfarçado de Juiz

Sentenciou o Burro infeliz:

Que desse pobre e ignorante animal

Viria afinal todo o mal.

O Burro merecia a morte.

Comer da horta alheia! Era corrupção!

Para aquele não bastava a prisão.

Só a morte poderia absolver tal sorte

De crimes: ele que aceitasse.

Se você for rico é uma coisa, se for pobre,

A Justiça te condena pela classe.



(Ilustração: Gustave Doré - les animaux malades de la Peste)

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

COMPORTAMENTO NOS VELÓRIOS, de Julio Cortazar

 


Não vamos por causa do anis, nem porque seja preciso ir. Já terão desconfiado: vamos porque não podemos suportar as formas mais sutis da hipocrisia. A mais velha de minhas primas em segundo grau se encarrega de investigar a natureza do luto, e se for de verdade, se se chora porque o choro é a única coisa que resta a esses homens e a essas mulheres entre o cheiro de nardos e de café, então ficamos em casa e lhes fazemos companhia de longe. No máximo, minha mãe vai lá por pouco tempo e dá os pêsames em nome da família; não gostamos de impor insolentemente nossa vida alheia a esse diálogo com a sombra. Mas se da minuciosa investigação de minha prima surgir a suspeita de que num pátio coberto ou na sala foram armadas as bases da encenação, então a família veste suas melhores roupas, espera que o velório esteja no ponto e vai se apresentando aos poucos mas implacavelmente.

Em Pacífico as coisas acontecem quase sempre num pátio com vasos e música de rádio. Nessas ocasiões os vizinhos concordam em desligar o rádio, e restam somente os jasmins e os parentes, alternando-se contra as paredes. Chegamos de um em um ou de dois em dois, cumprimentamos os parentes, aos quais se reconhece facilmente porque choram mal veem alguém entrar, e nos inclinamos perante o defunto, escoltados por algum parente próximo. Uma ou duas horas depois a família está na casa mortuária, mas embora os vizinhos nos conheçam bem, agimos como se cada um de nós tivesse vindo por conta própria e quase não nos falamos. Um método preciso comanda nossos atos, escolhe os interlocutores com quem se conversa na cozinha, debaixo da laranjeira, nos quartos, no vestíbulo, e de quando em quando se sai ao pátio ou à rua para fumar, ou se dá uma volta no quarteirão para manifestar opiniões políticas ou esportivas. Não nos toma tempo demais sondar os sentimentos dos parentes mais próximos: os copinhos de cachaça, o chimarrão doce e os Particulares suaves1 são a ponte das confidências; antes da meia-noite nos sentimos seguros, podemos agir sem remorsos. Em geral minha irmã mais moça se encarrega da primeira escaramuça; sabiamente colocada aos pés do caixão, ela cobre os olhos com um lenço roxo e começa a chorar, primeiro em silêncio, empapando o lenço a um ponto incrível, depois aos soluços e ofegante e, finalmente, é atacada por um terrível ataque de choro que obriga as vizinhas a levá-la à cama preparada para tais emergências, dar-lhe água de alfazema para cheirar e consolá-la, enquanto outras vizinhas tomam conta dos parentes próximos, subitamente contagiados pela crise. Durante certo tempo fica um montão de pessoas na porta da capela ardente, perguntas e notícias em voz baixa, dar de ombros por parte dos vizinhos. Esgotados por um esforço ao qual tiveram de dedicar-se a fundo, os parentes reduzem suas manifestações e, nesse mesmo momento, minhas três primas em segundo grau desatam a chorar sem afetação, sem gritos, mas tão comovedoramente que os parentes e vizinhos sentem a emulação, compreendem que não é possível ficar assim descansando enquanto estranhos da outra quadra se afligem de tal maneira, e outra vez se unem à lamentação geral, outra vez têm de buscar lugar nas camas, abanar as velhas senhoras, afrouxar o cinto dos velhinhos convulsos. Meus irmãos e eu habitualmente esperamos este momento para entrar na sala mortuária e colocar-nos junto do caixão. Por incrível que pareça, estamos realmente aflitos, jamais podemos ouvir nossas irmãs chorarem sem que uma angústia infinita nos encha o peito e nos lembre fatos da infância, uns campos perto da Vila Albertina, um bonde que rangia ao entrar na curva da rua General Rodríguez, em Banfield, coisas assim, sempre tão tristes.

Basta ver as mãos cruzadas do defunto para que o choro nos deixe arrasados de repente, nos obrigue a cobrir o rosto, envergonhados, e somos cinco homens a chorar de verdade no velório, enquanto os parentes retêm desesperadamente a respiração para se igualarem a nós, percebendo que, custe o que custar, precisam provar que o velório é deles, que somente eles têm o direito de chorar assim nessa casa. Mas são poucos, e mentem (disso sabemos por minha prima em segundo grau, a mais velha, o que nos dá forças). Em vão eles acumulam soluços e desmaios, inutilmente os vizinhos mais solidários os confortam com seus consolos e suas reflexões, levando-os e trazendo-os para que descansem e se reintegrem na luta. Meus pais e meu tio mais velho nos substituem agora, há algo que impõe respeito na dor desses velhos que vieram da rua Humboldt, cinco quadras a contar da esquina, para velar o defunto. Os vizinhos mais coerentes começam a perder a paciência, largam os familiares para lá, vão até a cozinha beber bagaceira e fofocar; alguns parentes, extenuados por uma hora e meia de pranto ininterrupto, dormem profundamente. Nós nos revezamos em ordem, embora sem dar a impressão de nada preparado; antes das seis horas da manhã somos donos indiscutíveis do velório, a maioria dos vizinhos foi dormir em suas casas, os parentes jazem em diferentes posições e graus de inchação do rosto, a madrugada nasce no pátio. Nessa hora, minhas tias providenciam lanches reforçados na cozinha, tomamos café bem quente, olhamo-nos fervorosamente ao nos encontrarmos no vestíbulo ou nos quartos; temos algo de formigas que vão e vêm, roçando as antenas ao passar. Quando chega o carro fúnebre as disposições estão todas tomadas, minhas irmãs levam os parentes para se despedirem do falecido antes de fechar o caixão, os sustentam e confortam enquanto minhas primas e meus irmãos vão se adiantando até desalojá-los, abreviarem o último adeus e ficarem sozinhos junto do morto. Exaustos, perdidos, compreendendo vagamente mas incapazes de reagir, os parentes se deixam levar e trazer, bebem qualquer coisa que se lhes chegue aos lábios, e respondem com vagos protestos inconscientes às carinhosas solicitações de minhas primas e irmãs. Quando chega a hora de partir e a casa está cheia de parentes e amigos, uma organização invisível mas sem erros decide esse movimento, o diretor da funerária acata as ordens de meu pai, a remoção do esquife se faz de acordo com as indicações de meu tio mais velho. Uma vez ou outra os parentes chegados à última hora manifestam alguma reivindicação absurda; os vizinhos, convencidos de que tudo está correndo como deve ser, os olham escandalizados e os obrigam a calar a boca. No primeiro carro se instalam meus pais e tios, meus irmãos sobem no segundo e minhas primas condescendem em aceitar algum dos parentes no terceiro, onde se instalam embrulhadas em grandes echarpes pretas e roxas. O restante sobe onde pode, e há parentes que são obrigados a chamar um táxi. E se alguns, refrescados pela brisa matinal e pelo longo trajeto, tramam uma reconquista na necrópole, amarga é sua desilusão. Apenas chega o caixão à porta do cemitério, meus irmãos cercam o orador designado pela família ou pelos amigos do defunto, e que é facilmente reconhecível por sua cara de circunstância e pelo rolo de papel que faz volume no bolso do paletó. Apertando-lhe as mãos, empapam-lhe a lapela de lágrimas, dão-lhe tapas nos ombros com um débil som de farinha de mandioca, e o orador não consegue impedir que meu tio mais moço suba à tribuna e abra os discursos com uma oração que é sempre um modelo de verdade e discrição. Leva três minutos, refere-se exclusivamente ao defunto, ressalta-lhe as virtudes e dá conta de seus defeitos, sem tirar humanidade a nada do que diz; está profundamente emocionado e às vezes lhe custa acabar. Apenas desce, meu irmão mais velho ocupa a tribuna e se encarrega do panegírico em nome da vizinhança, enquanto o vizinho designado para essa tarefa procura abrir caminho entre minhas primas e irmãs que choram dependuradas em seu paletó. Um gesto afável mais imperioso de meu pai mobiliza o pessoal da funerária; o caixão começa a rodar suavemente e os oradores oficiais se postam ao pé da tribuna, olhando-se e espremendo os discursos em suas mãos úmidas. Geralmente não nos damos ao trabalho de acompanhar o defunto até o jazigo ou sepultura: fazemos meia-volta e saímos todos juntos, comentando as ocorrências do velório. Vemos de longe como os parentes correm desesperados para segurar algumas das cordas do esquife e brigam com os vizinhos, os quais, entretanto, tomaram conta das cordas e preferem segurá-las eles mesmos, em vez dos parentes.


(Histórias de Cronópios e de Famas; tradução de Gloria Rodriguez)

 

(Ilustração: Edvard Munch - death chamber,1896)