eu nasci em uma cidade do interior de Santa Catarina
onde até meados dos anos 2000 eu e meu pai éramos os únicos
japoneses na cidade (minha mãe descende de alemães e italianos)
desde criança eu lembro que ninguém nunca soube escrever
o nome do meu pai corretamente: Siogi, Xiogui, Chiodi
quando eu lia um recibo um bilhete uma anotação
ninguém acertava seu nome: Sioji às vezes eu ouvia
meu pai soletrar no telefone s de serpente
i de ilha o de olho j de jiboia i de ilha de novo
anos mais tarde quando eu assisti um filme de Akira Kurosawa
(Tengoku to jigoku / High and Low / Céu e Inferno)
eu aprendi que ninguém nunca acertou sequer a pronúncia de seu nome
em japonês o jota se pronuncia quase como um dê: Si-ô-di
anos mais tarde eu descubro que no Japão Sioji seria escrito como Shoji, Shouji ou Shohji
mas como filhos de imigrantes pobres meus avós fazendeiros não tinham acesso a um cartório
que compreendesse esses detalhes ou quem sabe
nem mesmo meus pobres avós soubessem como escrever o nome do meu pai
durante os anos em que cresci na cidade do interior eu também perdi o meu nome
ninguém me chamava de Rubens (meus pais me chamavam de ‘mano’)
me chamavam de: japonês, japa, japa-japa-girl, japinha, china-in-box, china (com a pronúncia em inglês mesmo)
e toda vez que ouvia esses nomes eu me sentia extremamente consciente
do meu corpo dos meus olhos do meu nariz dos meus pelos das minhas genitais
mas eu me acostumei a esse nome e esse nome passou a me definir
da mesma maneira com que um prego define um martelo
batendo batendo e batendo
foi só quando eu me mudei para Curitiba uma cidade onde há mais do que uma
família japonesa (quem diria) é que da noite para o dia as pessoas que ia conhecendo lá
passaram a me chamar de Rubens e quando eu tentava explicar para elas
podem me chamar de japa (pois esse era o meu nome até aquele momento)
elas me olhavam confusas e diziam: mas você nem é japonês
(aparentemente meus olhos não são puxados o suficiente)
foi então que eu soube que podia ser branco isto é meu corpo continuou o mesmo
mas foi então que passei a ser tratado como um branco e ter direito a um nome próprio
o ano foi 2010
(Digestão; 2014)
(Ilustração:Manabu Mabe - autorretrato, 1950)
Nenhum comentário:
Postar um comentário