1
Numa prisão onde as almas presas a Sheol — Terra, é como a chamam ali — aguardam destruição, vagueava a alma feminina Jechidah[1]. Almas esquecem sua origem. Purah, o Anjo do Olivado, que dissipa a luz de Deus e esconde Sua face, mantém o domínio de tudo além da cabeça de Deus. Jechidah, desatenta à sua descendência do Trono de Glória, havia pecado. Seu ciúme causara muito transtorno no mundo onde ela se encontrava. Suspeitara que todos os anjos femininos tivessem casos amorosos com seu amante Jachid[2], e não só blasfemara contra Deus, como também o negara. Almas, disse ela, não eram criadas; emergiam do nada. Não tinham missão nem objetivo. Embora as autoridades fossem assaz pacientes e clementes, Jechidah acabou condenada à morte. O juiz fixou o momento de sua descensão ao cemitério chamado Terra.
O advogado de Jechidah apelou à Superior Corte Celestial, chegou a apresentar petição a Metratron, o Senhor da Face. Mas Jechidah estava tão cheia de pecados e tão impenitente que poder algum pôde salvá-la. Os serventuários pegaram-na, afastaram-na de Jachid, tosquiaram-lhe as asas, cortaram-lhe o cabelo e envolveram-na em comprida mortalha branca. Já não lhe era permitido ouvir a música das esferas, cheirar os perfumes do paraíso e meditar os segredos da Tora, que alimentam a alma. Já não podia banhar-se nos poços de óleo balsâmico. Na cela carcerária, a escuridão do mundo dos mortos já a circundava. Mas seu maior tormento era a saudade de Jachid. Ela não podia comunicar-se telepaticamente com ele. Nem enviar-lhe mensagem, pois todos os servidores tinham desaparecido. Apenas o medo da morte restou com Jechidah.
A morte não era ocorrência rara onde Jechidah vivia mas sobrevinha somente a espíritos vulgares, exauridos. O que acontecia exatamente aos mortos, Jechidah ignorava. Estava certa de que, quando uma alma descia à Terra, era para ser extinta, embora os devotos dissessem que uma centelha de vida permanecia. Uma alma morta começava logo a apodrecer e não tardava a cobrir-se de uma substância viscosa chamada sêmen. Então, um coveiro punha-a num ventre onde ela se transformava numa espécie de fungo e era, daí por diante, conhecida por criança. Mais tarde, começavam as torturas da geena: nascimento, crescimento, labuta. Pois, segundo os livros de moralidade, a morte não era a etapa final. Purificada, a alma retornava à sua fonte. Mas que prova havia de tais crenças? Por isso, ao que sabia Jechidah, ninguém jamais voltara da Terra. A esclarecida Jechidah acreditava que a alma apodrece por um curto período e depois se desintegra nas trevas sem retorno.
Agora chegara o momento em que Jechidah devia morrer, devia afundar na Terra. Dentro em breve, o Anjo da Morte apareceria com sua espada flamejante e mil olhos.
A princípio, Jechidah chorou sem parar, mas depois suas lágrimas cessaram. Desperta ou adormecida, não deixava de pensar em Jachid. Onde estava? Que fazia? Com quem andava? Jechidah tinha certeza que ele não a prantearia para sempre. Estava cercado por belas fêmeas, bestas santificadas, anjos, serafins, querubins, ayralim, cada um deles com seus poderes de sedução. Até que ponto alguém como Jachid seria capaz de conter os desejos? Ele, como ela, era um incréu. Fora ele quem a ensinara que os espíritos não são criados, e sim produtos de evolução. Jachid não respeitava o livre-arbítrio, não acreditava no bem e no mal supremos. Que força lograria detê-lo? Com certeza já estaria no regaço de outra divindade, contando a seu respeito aquelas histórias que já contara a Jechidah.
No entanto, que lhe cabia fazer? Naquele calabouço, todos os contatos com as mansões haviam cessado. As portas estavam fechadas: nem misericórdia nem beleza entraram ali. O único caminho daquela prisão conduzia à Terra e aos horrores chamados carne, sangue, medula, nervos e cérebro. Os anjos tementes a Deus prometiam ressurreição. Pregavam que a alma não se demorava para sempre na Terra, mas que, depois de sofrer seu castigo, retornava à Esfera
Superior. Mas Jechidah, sendo modernista, considerava isso tudo uma superstição.
De que forma uma alma se libertaria por si mesma da corrupção do corpo? Cientificamente era impossível. A ressurreição era um sonho, um tolo conforto de almas primitivas e assustadas.
2
Uma noite, enquanto Jechidah, arriada a um canto, pensava em Jachid e nos prazeres que dele recebera, seus beijos, suas carícias, os segredos murmurados em seu ouvido, as muitas posições e jogos amorosos em que fora iniciada, Dumah, o Anjo da Morte de mil olhos, com aquela aparência com que os Livros Santos o descreviam, entrou empunhando uma espada flamejante.
— Sua hora chegou, irmãzinha — disse.
— Não resta nenhum apelo?
— Os que estão nessa ala vão sempre para a Terra.
Jechidah estremeceu.
— Bem, estou pronta.
— Jechidah, o arrependimento sempre ajuda. Recite sua confissão.
— Ajudar como? Arrependo-me apenas de não haver pecado mais — disse Jechidah com rebeldia.
Ambos silenciaram. Finalmente, Dumah disse:
— Jechidah, sei que tem raiva de mim. Mas será culpa minha, irmã? Acaso eu quis ser o Anjo da Morte? Também sou pecador, exilado de um reino mais alto, e meu castigo consiste em executar almas. Jechidah, não desejei sua morte, mas não fique deprimida assim. A morte não é tão terrível quanto se pensa. Realmente os primeiros instantes não são fáceis. Mas uma vez plantada no ventre, os nove meses que se seguem não são dolorosos. Você esquecerá tudo que aprendeu aqui. Saindo do ventre, terá um choque; a infância, no entanto, é muitas vezes agradável. Você começará a estudar a erudição da morte, vestida num corpo jovem, flexível, e logo receará o fim de seu exílio.
Jechidah interrompeu-o:
— Mate-me se é esse seu dever, Dumah, porém poupe-me suas mentiras.
— Estou dizendo a verdade, Jechidah. Você não se ausentará mais de cem anos, pois os mais amaldiçoados não sofrem mais que isso. A morte é apenas o preparativo de nova existência.
— Dumah, por favor. Não quero ouvir.
— Mas é importante você saber que bem e mal existem lá também e que a vontade continua livre.
— Que vontade? Por que diz tamanha tolice?
— Jechidah, ouça com cuidado. Mesmo entre os mortos existem leis e regulamentos. Da maneira como você age, a morte determina o que acontecerá a seguir. A morte é um laboratório para a reabilitação de almas.
— Acabe logo com isso, eu suplico.
— Paciência, você ainda tem alguns minutos de vida e deve receber instruções. Saiba, então, que se pode agir bem ou mal na Terra e que o pecado mais vil de todos é fazer uma alma reviver.
A ideia era tão ridícula que Jechidah riu apesar de sua angústia.
— Como pode um cadáver dar vida a outro?
— Não é tão difícil quanto pensa. O corpo é composto de matéria tão fraca que um mero sopro pode desintegrá-la. A morte não é mais forte que uma teia de aranha; sopra a brisa e ela desaparece. Mas constitui grande ofensa destruir a morte de outro ou a própria morte. E mais ainda: você não deve agir ou falar e até mesmo pensar de maneira a ameaçar a morte. Aqui, o objetivo de todos é preservar a vida, mas lá embaixo é a morte que pede socorro.
— Contos da carochinha. Fantasias de carrasco.
— É a pura verdade, Jechidah. A Tora que se aplica à Terra baseia-se num só princípio: “A morte de alguém deve ser tão cara quanto tua própria morte”. Não esqueça minhas palavras. Quando descer a Sheol, elas serão de grande valia.
— Não, de modo algum, não quero ouvir mais mentiras. E Jechidah tapou os ouvidos.
3
Anos correram. Todos no reino mais alto haviam esquecido Jechidah, exceto sua mãe, que ainda continuava a acender velas votivas pela filha. Na Terra, Jechidah tinha nova mãe, bem como pai, vários irmãos e irmãs, todos mortos. Depois de freqüentar o colégio, começou a freqüentar cursos na universidade. Morava numa grande metrópole onde os cadáveres são preparados para todos os tipos de funções mortuárias.
Era primavera e a corrupção na Terra crescia, leprosa, com florações. Dos túmulos com suas árvores comemorativas e águas purificantes erguia-se um terrível fedor. Milhões de criaturas, forçadas a descer aos domínios da morte, tornavam-se borboletas, moscas, vermes, sapos, rãs. Zumbiam, coaxavam, grasnavam, batiam as asas, já envolvidos na luta pela morte. Mas estando Jechidah totalmente afeita aos hábitos da Terra, tudo isso parecia-lhe parte da vida. Sentada no banco de um parque, fitava a Lua, a qual, da escuridão do mundo dos mortos, é às vezes reconhecida como uma vela votiva acesa num crânio. A exemplo de todos os cadáveres femininos, Jechidah ansiava pela morte perpétua, para que seu ventre se tornasse um túmulo de recém-mortos. Mas não podia fazer isso sem ajuda de um macho com quem teria de copular no ódio a que os cadáveres chamam amor.
Enquanto Jechidah, sentada, olhava as órbitas do crânio acima, um cadáver envolto em branca mortalha chegou e sentou-se ao seu lado. Por um instante os dois cadáveres fitaram-se, pensando que viam, embora todos os cadáveres sejam, em verdade, cegos. Afinal, o cadáver masculino falou:
— Perdão, senhorita. Pode dizer-me que horas são? Ainda que, no fundo de si mesmos, todos os cadáveres anseiem pelo término de seu castigo, estão sempre preocupados com o passar do tempo.
— Horas? — respondeu Jechidah. — Espere um pouco. Amarrado a seu pulso havia um instrumento para medir o tempo, mas as divisões eram tão pequeninas e os símbolos tão minúsculos que ela não podia ler com facilidade o mostrador. O cadáver masculino aproximou-se mais.
— Posso olhar? Tenho boa vista.
— Se quiser.
Cadáveres nunca agem com franqueza; mostram-se sempre tímidos e tortuosos. O cadáver masculino pegou a mão de Jechidah e inclinou a cabeça para o instrumento. Não era a primeira vez que um cadáver masculino tocava Jechidah, porém o contato daquele fez seus membros tremerem. Ele olhou com intensidade, mas não pôde decidir-se logo. Depois, disse:
— São dez e dez.
— Tão tarde assim?
— Deixe que eu me apresente. Meu nome é Jachid.
— Jachid? Eu me chamo Jechidah.
— Que extraordinária coincidência.
Ambos, ouvindo a morte correr em suas veias, ficaram silenciosos por um espaço. Então, Jachid disse:
— Que bonita está a noite!
— Sim, muito bonita.
— Há alguma coisa na primavera que não se pode exprimir em palavras.
— Palavras nada podem exprimir — respondeu Jechidah.
Quando ela fez essa observação, ambos sabiam estarem destinados a mentir juntos e a preparar um túmulo para um novo cadáver. O fato é que, a despeito de os mortos estarem mortos, sempre permanece vida neles, um traço de contato com aquele conhecimento que preenche o universo. A morte apenas mascara a verdade. Os sábios falam dela como uma bolha de sabão que se rompe ao toque de uma palha. Os mortos, envergonhados da morte, tentam esconder sua condição mediante astúcias. Quanto mais moribundo um cadáver, mais volúvel ele é.
— Posso saber onde você mora? — perguntou Jachid.
“Onde foi que eu o vi antes? Por que sua voz parece-me tão familiar?”, pensava Jechidah. “E como veio a calhar que ele se chame Jachid? Um nome tão raro...”
— Não longe daqui — ela respondeu.
— Permite que eu a leve para casa?
— Obrigada. Não é preciso. Mas já que se ofereceu... Ainda é cedo para dormir.
Quando Jachid se ergueu, Jechidah imitou-o. “Será a pessoa que ando buscando?”, Jechidah perguntava a si mesma. “O homem que me foi destinado? Mas que quer dizer destino? Segundo meu professor, só existem átomos e movimento.” Uma carruagem aproximou-se e Jechidah ouviu Jachid dizer:
— Quer dar um passeio?
— Onde?
— Ora, apenas em volta do parque.
Em vez de censurá-lo, como pretendia, Jechidah disse:
— Ótimo. Mas não acho que você deva gastar dinheiro.
— Para que dinheiro? Só vivemos uma vez.
A carruagem parou e eles entraram. Jechidah sabia muito bem que uma moça que se dá ao respeito não passeia com um rapaz estranho. Que pensaria Jachid? Pensaria, por acaso, que ela aceitava convites dessa ordem? Queria explicar-lhe que era tímida por natureza, mas sabia não poder apagar mais a impressão que já lhe causara. Sentada, silenciosa, assustava-se com sua própria conduta. Sentia-se mais próxima do estranho do que já estivera de alguém. Quase podia ler-lhe o pensamento. Desejou que a noite se prolongasse para sempre. “Será isso amor? Alguém se apaixona com tanta rapidez? Estou feliz?”, ela perguntava a si mesma. Mas nenhuma resposta vinha de seu íntimo. Pois os mortos são sempre melancólicos, mesmo em meio à euforia. Depois de um intervalo, Jechidah disse:
— Tenho impressão de já ter passado por isso.
— Déjà vu... É como a psicologia denomina o fenômeno.
— Talvez contenha alguma verdade...
— Que quer dizer?
— Talvez nos tenhamos conhecido em outro mundo. Jachid rompeu a rir.
— Em que mundo? Existe apenas um, o nosso, a Terra.
— Talvez existam almas.
— Impossível. O que se chama de alma não passa de vibrações da matéria, produto do sistema nervoso. Falo com convicção, sou estudante de medicina.
De súbito, ele passou o braço pela cintura dela. E embora Jechidah ainda não houvesse permitido tais liberdades a homem nenhum, não o censurou. Sentada, perplexa com sua aquiescência, temeu os arrependimentos do dia seguinte. “Não tenho caráter”, reprovava-se. “Mas ele está certo numa coisa: se não existe alma e a vida não passa de breve episódio numa eternidade de morte, então por que não gozar a vida sem restrições? Se não existe alma, não existe Deus, o livre-arbítrio não tem significado. Moralidade, como diz meu professor, é apenas parte da superestrutura ideológica.”
Jechidah fechou os olhos e inclinou-se contra o espaldar. O cavalo trotava devagar. Na escuridão todos os cadáveres, homens e bestas, lamentavam sua morte — uivando, rindo, zumbindo, trinando, suspirando. Alguns cadáveres cambaleavam, tendo bebido para esquecer, por um instante, as torturas do inferno. Jechidah mergulhava em si mesma. Cochilou, depois despertou com um sobressalto. Quando os mortos dormem, vinculam-se, uma vez mais, à fonte da vida. A ilusão de tempo e espaço, causa e efeito, número e relação, cessa. Em seu sonho, Jechidah subira outra vez ao mundo de sua origem. Ali, viu sua mãe verdadeira, seus amigos, seus professores. Jachid estava lá também. Os dois saudaram-se, abraçaram-se, riram e choraram de júbilo. Naquele momento, ambos reconheceram a verdade, que a morte na Terra é temporária e ilusória, um julgamento e um meio de purificação. Viajaram juntos passando por mansões celestiais, jardins, oásis para almas convalescentes, florestas para bestas divinas, ilhas para pássaros celestiais. “Não, nosso encontro não foi um acidente”, murmurou Jechidah para si mesma. “Existe um Deus. Existe um propósito na criação. Cópula, livre-arbítrio, destino — tudo faz parte de Seu plano.” Jachid e Jechidah passaram por uma prisão e espiaram pela janela. Viram uma alma condenada a descer à Terra. Jechidah sabia que esta alma se tornaria sua filha. Pouco antes de despertar, ouviu uma voz:
— O túmulo e o coveiro encontraram-se. O enterro será realizado esta noite.
Notas:
[1] Literalmente: “A Única”. (N. do T.)
[2] Literalmente: “O Único”. (N. do T.)
(Breve Sexta-Feira; tradução de Hélio Pólvora)
(Ilustração: Arte medieval judaica - Mosheh ban Maimon ou Moses Maimonides)
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