quinta-feira, 25 de maio de 2023

A DIVINA PREGUIÇA, de Mário de Andrade

 



Aqueles que asseveram ter a humanidade eras de progresso, de estacionamento e eras em que a civilização volta atrás, laboram num ligeiro desvio de concepção e numa compreensão menos exata da sinonímia das palavras. Na passagem das civilizações, como na própria vida, tudo é marchar, buscando um horizonte dianteiro inatingível. A destruição é, como a criação, uma necessidade dessa marcha que impulsiona os homens.

A água emergida da fonte não mais tornará a balsa agreste onde surgiu: será riacho, ribeirão depois, depois caudal… Na história dos homens tudo é progresso; apenas esse progresso trilha por vezes descaminhos, perlustra as sombras dos matagais, em vez de, num anseio alevantado, seguir reto para os horizontes onde pompeia o Sol.

Não se poderá dizer, sem receios de pesado errar, que a civilização perlongasse (antes da Guerra) esse caminho que vai ter a luz. Digo antes da guerra, porque é certo que o pampeiro das metralhas, o holocausto dos homens moços pela Grande Causa varrerem o futuro dos bulcões que o ensombravam; e a humanidade que sobrevier sentirá mais incentivos no desejo, mais entusiasmos na inspiração.

Um dos sintomas desse descaminho anterior ao famigerado agosto de 1914, era a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo. Reduziam o humano a um joão-minhoca ainda menos interessante e elevado que o da concepção pessimista de Pierre Wolf.

Os filósofos germânicos, organizados na mais encrenque pirataria intelectual de que jamais houve exemplo, tinham surrupiado e escondido nas sáxeas cavenas das suas filosofias aquele mesmo trigo das virtudes “ceifado ao campo do bom senso antigo”. De que nos fala Raymundo. A guerra será talvez o “Sésamo, abre-te” dessas lapas vertiginosas.

Pensava assim, dentro comigo, folheando as eruditas páginas de Austregésilo sobre a “Preguiça patológica…” Não me assentou sem lê-las, a gargalhada dos deuses de Homero, mas confesso ter-me encrespado os lábios o sorriso das figuras de Da Vinci. Mais uma ilusão que nos querem tirar! A preguiça que para uns fora dom dos deuses e para outros pecado mortal, ei-la reduzida a um morbo de nova espécie! Não poderíamos mais gozar dos nossos lazeres, agradecendo-os aos deuses, nem inculpar as nossas acedias preguiçosas, só remíveis no gradil dos confessionários!… Não; nem gozar com aqueles, nem sofrer com estas: a preguiça não era nem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença! Todos os preguiçosos seriam outros tantos doentes!… E eu tive como que uma visão nova do mundo: via a Terra, modorrada ao calor, redondinha, vestida dum imenso gramado esmeraldino sobre o qual a humanidade intensa se deitara, chapéus nos olhos, mãos nas cavas dos coletes, pausas pantagruélicas culminando no espaço, a dormir, a dormir serenamente, num gigantesco, universal convescote.

Nem gozar, nem sofrer! Não se lhe poderia increpar a mandranice, nem exaltar a felicidade dos ócios: todos sofriam o contágio do mesmo morbo! E a uma receita de doutor de dois meses de estação de águas, sarada e firme, a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!

*****

A preguiça teve sempre, conforme o sentido em que foi tomada, modulações várias. Cada época e cada religião, aceitando e compreendendo a preguiça segundo seu modo de ver, decantara-a ou a repulsara. Na Grécia e na Roma de apogeus incontrastáveis, apesar de terem sido estádios de contínuas atividades, onde mais se acentuava o prurido dos ideais, a anciã da perfeição, ela foi apreciada e divinizada quase. Tempos de formoso trabalho, onde as saúdes abundavam de seiva, onde as inteligências eram mais geniais e as riquezas mais pletóricas, foi-lhe dado imprimir a quase todas as artes plásticas ou literárias o impulso que fez com que elas atingissem a portentosa serenidade na força e a suprema beleza na verdade. A arte que – como explica Reinach – é mais ou menos um luxo, diferenciando-se, entre outros, por esse caráter especial das outras manifestações da atividade humana, não poderia desenvolver-se e alcançar o seu fastígio senão em meio das riquezas que prestigiaram as colinas de Hellade e os serros mansos de Roma. A arte nasceu porventura dum bocejo sublime, assim como o sentimento do belo deve ter surgido duma contemplação ociosa da natureza. O belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio; e os próprios filósofos helênicos, nas suas preguiças iluminadas, esmagando ao peso das sandálias de areia especular dos seus jardins, gostavam de repousar os olhos nos mármores intemeratos, no verde policrômico das relvas e vergéis, na palpitação das carnações sadias.

O cristianismo, compreendendo mais humana e verdadeiramente a vida, fez da preguiça um pecado. Mas já não é a mesma preguiça. O vício que o cristianismo repulsa é o que conclui pelo abandono das lutas e das porfias, a que nunca refugiram os governados de Péricles. O preguiçoso que o cristianismo indigita é o que se avilta na inércia lânguida – porta aberta aos pecados mortais. O preguiçoso do paganismo é como o Titero de Virgílio que, derreado à sombra das balseiras, olhava as suas vacas pascerem longe, tangendo na avena ruda; ou é como o calmo Petrônio, que vagava pelas ruas de Roma, entrando os mercados onde se expunham virgens nuas, ouvindo as intrigas no Fórum, descobrindo as ambições dos Eumólpios, para legar aos homens do porvir as páginas vivazes do Satiricon, a crônica mais perfeita dos romanos da decadência.

Para nossos indígenas as almas, libertadas do invólucro da carne, iriam, também repousar, lá do outro lado dos Andes, num ócio gigantesco. É a mesma concepção do Eldorado, de Poe, existente além do vale da sombra, que inspirou Baudelaire, Antonio Nobre e o nosso Alberto, nos alexandrinos lapidares de “Longe… mais longe ainda!”

Mas eis que os psiquiatras querem trazer à preguiça mais essa qualificação de doentia; redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares!… Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença! Se algumas vezes é o resultado passageiro duma lesão, não poderá jamais misturar todos os preguiçosos num só caso de observação clínica!

Mil vezes não! Forçoso é continuar, para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem, a castigar os que se aviltam no “far niente” burguês e vicioso e a exalçar os que compreenderam e sublimaram as artes, no convívio da divina Preguiça!



(“A Gazeta”; São Paulo, 03/09/1918, Ano XIII – num. 3790)



(Ilustração: Céu Barros – cansado)

Nenhum comentário:

Postar um comentário