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no princípio
toda língua é estrangeira
acerca-se do seu corpo como de uma cidade
até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que lhe dá
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
acerca-se até domá-la
para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez
ensina ao pensamento
cantando
estar na língua como numa
casa louca
que obriga ao abrigar
ela pensa o seu sexo
ela pensa o seu coração
abrindo-o
ela é música
e combate
ela fala na sua boca
com a boca dos mortos
ela é a eletricidade
dos cadáveres
daqueles cuja boca ela encheu
antes da terra
ela cria raízes no seu corpo
dela não é possível se livrar
você é livro
dela
e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar
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Ou é um dueto
uma dança
muito antiga
dela você também se acerca
toma as palavras emprestadas
e empresta-lhes também
sua energia
sua coragem ou doçura
e talvez seja mesmo possível
descartá-la
dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)
livrar-se dela
trocá-la por outra
mais nova ou versátil
(meus únicos heróis
são os tradutores)
ou pouco importa a língua
mas o dizer as coisas
que ao serem ditas
extinguem-se
mas com que fulgor
(escrever poemas:
não se contentar com as línguas que se sabe
nem mesmo com as línguas que há)
as línguas são meios
de viagem, são meios
de transporte das palavras:
carrega consigo o camelo o arranha-céu
a baleia
não só a baleia
todas as baleias
não só o amor
todo o amor
(Ilustração: Renoir, 1900)
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