sábado, 24 de dezembro de 2022

LÍNGUA, de Ana Martins Marques







1



no princípio

toda língua é estrangeira



acerca-se do seu corpo como de uma cidade

até tomá-lo

fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes

que lhe dá

pé perna barriga dentes

fazer a língua chamar-se língua

chamar-se a si mesma pelo nome dela

língua

acerca-se até domá-la

para ensinar-lhe uma coreografia sua

que ela, língua, por sua vez

ensina ao pensamento

cantando



estar na língua como numa

casa louca

que obriga ao abrigar



ela pensa o seu sexo

ela pensa o seu coração

abrindo-o



ela é música

e combate



ela fala na sua boca

com a boca dos mortos




ela é a eletricidade

dos cadáveres



daqueles cuja boca ela encheu

antes da terra



ela cria raízes no seu corpo

dela não é possível se livrar



você é livro

dela



e se aprende outra

é contra ela

contra sua memória

excessiva

e em viagem

com ela

que te cobra e cobre

como um mar



2



Ou é um dueto

uma dança

muito antiga



dela você também se acerca

toma as palavras emprestadas

e empresta-lhes também

sua energia

sua coragem ou doçura



e talvez seja mesmo possível

descartá-la

dissolver-se num mar que não o seu (Cf. Jorge de Sena, “Noções de linguística”)

livrar-se dela

trocá-la por outra

mais nova ou versátil



(meus únicos heróis

são os tradutores)



ou pouco importa a língua

mas o dizer as coisas

que ao serem ditas

extinguem-se

mas com que fulgor



(escrever poemas:

não se contentar com as línguas que se sabe

nem mesmo com as línguas que há)



as línguas são meios

de viagem, são meios

de transporte das palavras:

carrega consigo o camelo o arranha-céu

a baleia

não só a baleia

todas as baleias

não só o amor

todo o amor




(Ilustração: Renoir, 1900)


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