segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A VIDA É SONHO, de Bruno Eduardo da Rocha Brito

 


Há uma antiga lenda que reza que, uma vez a cada cem anos, assiduamente, o demônio e o judeu errante se encontram para conversar e beber numa taverna em algum lugar de Londres, possivelmente desde o final do século XIV. Entretanto, no dia de seu costumeiro encontro secular no ano de 1589, os dois não eram as únicas celebridades a colocarem a conversa em dia, pois outra dupla, que ao longo dos anos acabaria se tornando igualmente lendária, ali estava discutindo em voz alta, sobre teatro, talento e pactos com poderes obscuros. À mesa ao lado sentavam-se Christopher Marlowe e William Shakespeare.

A essa altura, Marlowe já colhia os louros de seu reconhecimento pela Trágica História do Doutor Fausto, sendo saudado como o maior dramaturgo de seu tempo; Shakespeare, por outro lado, lamentava o total “desastre” dos versos de sua primeira peça, a primeira parte de Henrique VI, queixando-se ao amigo sobre sua própria falta de talento e chegando mesmo ao ponto de dizer-lhe que barganharia, “como seu Fausto”, para ser igualmente talentoso, ou pelo menos, dar sonhos imorredouros aos homens.

Acontece que o “demônio” estava logo ao lado, conversando com seu amigo imortal, e ouviu atento o desejo do jovem ator: foi então que ele se ergueu e caminhou rumo à mesa onde se reuniam os dois poetas, um homem muito alto e de pele muito branca, com olhos sombrios e a voz negra como a noite, e perguntou por William.

William: Já nos vimos antes?

O Demônio: Sim. Mas os homens esquecem, quando estão despertos. Ouvi sua conversa, Will. Você gostaria de escrever grandes peças? De criar novos sonhos para instigar as mentes dos homens? É esse o seu desejo?

William: Sim.

O Demônio: Então vamos conversar.

A partir desse encontro, William encontrou seu tão desejado talento. Começou a ter sonhos para dar sonhos aos homens, sonhos esses que sobreviveriam a si mesmos e a todos que por eles passassem, por toda a eternidade. Quanto ao homem misterioso com quem conversara na taverna, este apenas encomendou para si duas peças: essas deveriam ser Sonho de uma Noite de Verão e sua última criação, A Tempestade, ambas tendo como centro o “sonhar”. Pois o patrono e benfeitor de William Shakespeare não era o reles Mefistófeles do doutor Fausto: ele era o Sonho em pessoa. Foi assim que o maior de todos os poetas ingleses tornou-se o instrumento através do qual o Senhor das Histórias poderia eternizar os sonhos nos corações dos homens.

A história desse pacto, pertencente à um conto ainda maior sobre o encontro entre dois seres imortais, é uma criação do romancista e quadrinista inglês Neil Gaiman, e faz parte de sua obra mais famosa e bem-sucedida, a série de histórias em quadrinhos The Sandman publicada entre as décadas de oitenta e noventa. Essa série se dedica a contar os feitos e a desventuras de uma entidade que é a manifestação física do sonho – o “Sandman” do título, ou “homem-da-areia”, é um personagem folclórico inglês que derrama areia nos olhos das crianças para adormecê-las e dar-lhes bons sonhos. Contudo, Gaiman não se dedica apenas a contar “aventuras” em que seu herói se envolve, ou sua história pessoal, seus amores frustrados e sua relação tensa com a família (seus seis irmãos, a saber: a Morte, o Destino, a Destruição, o Desejo, o Desespero e o Delírio, seres que antecedem mesmo a existência dos deuses, ou mesmo do universo em si), mas também faz questão de mostrar os efeitos causados pelo seu caminhar entre todas as pessoas; e é nessas histórias, normalmente, que o brilho de sua “mitologia pessoal” se mostra em toda a sua intensidade.

Ora, o Sonho recebe e acolhe a todos em seu reino, o Sonhar, por mais que as mentes despertas jamais tenham lembrança desses encontros. Os piores pesadelos da humanidade derivam de si. Tanto os deuses quanto os animais buscam refúgio em seus braços. Seus passos ecoam à noite em toda parte, seja no mármore outrora real dos fóruns do Império Romano, seja pelos corredores desesperados do fictício Asilo Arkham. Todos estão sujeitos à ação do Sonho, e de seus irmãos: tanto o imperador Augusto quanto o mendigo que se acreditava Imperador dos Estados Unidos. Tanto a deusa egípcia Bast quanto o palhaço psicótico de origem desconhecida que aterroriza Gotham City. E, principalmente, tanto os artistas quanto as fadas que estes, descuidadamente, creem ser suas criações próprias. Criadores e criaturas, sãos e loucos, homens reais e ficcionais, todos se encontram em pé de igualdade diante do Senhor dos Sonhos.



(Roberto Piva, Panfletário do Caos, dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco, em 2009)


(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

QUE BICHA SEREI EU NO FUTURO?, de Mike Sullivan

  




Que bicha serei eu no futuro?

A bicha que frequenta saunas.

A bicha que gasta metade

do salário com os boys.

A bicha arrependida,

que pede perdão a Deus constantemente.

A bicha deprimida,

que se entope de

antidepressivos e ansiolíticos.

A bicha que chora todas as noites

com saudade dos mortos.

A bicha que cuida da mãe,

que acredita ser esse o último

gesto de misericórdia.

A bicha nostálgica,

a se lamentar sempre daquilo

que poderia ter sido.

A bicha drogada,

isolada em seu apartamento.

A bicha de coração amputado,

fria,

gelada,

incapaz de amar a si mesma.

A bicha viajada,

culta,

rodeada de livros,

cheia de opiniões e conselhos

que não interessam a ninguém.

A bicha que se julga autossuficiente,

mas que não passa de um ser

que depende dos falsos elogios

recebidos em reuniões de trabalho.

A bicha que só se sente viva

nas madrugadas, pois durante o dia

o sol ilumina demais suas frustrações.

A bicha cansada,

triste,

velha,

sozinha,

que tem medo da morte.

Que bicha sou eu hoje?

A bicha que só fode com boys.

A bicha que ainda crê

que dar o cu é pecado.

A bicha deprimida.

A bicha que chora diariamente.

A bicha que ama a mãe mais que tudo.

A bicha metade nostalgia,

metade desilusão.

A bicha viciada em maconha, cocaína, bala.

A bicha que tem no coração

a dor de existir.

A bicha que tem na arte

o último refúgio

A bicha que gastou

todas as suas economias

comprando um terreno no cemitério,

onde caberá ela e toda a sua família.

Todos juntinhos.

Ali.

Embaixo da terra.

Em silêncio.

Quietos.

Aceitando finalmente

aquilo que nunca devia

ter sido questionado

ou rejeitado.

Ali.

Juntinhos.

Iguais.

Insignificantes.




(Ilustração: foto de Lara Zankoul)

terça-feira, 23 de agosto de 2022

SÍNDROME DE MARSHA MELLOW (ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE MULHERES E SEXUALIDADE NA LITERATURA DO SÉCULO XXI), de Raul José Matos de Arruda Filho

 


      

Somos a pornogeração de atores: por que escandalizar-se?

Tiffany Limos

(Coletiva de imprensa, depois da exibição do filme Ken Park,

no Festival de Veneza, em 2002).



Marsha Mellow é o nome da autora que está na capa de “Anéis nos dedos dela”, fictício romance inglês, que, com detalhes, descreve inúmeras manobras sexuais. Depois que o livro ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos na Inglaterra, parte dos leitores, cheios de curiosidade, procuraram conhecer a autora. Tarefa vã, pois Marsha Mellow não existe – é o pseudônimo de Amy Bickerstaff (que também não existe). Amy Bickerstaff é a narradora do romance Marsha Mellow e eu, de Maria Beaumont. [1]

A escolha de um pseudônimo para a “autora” de um romance com conteúdo sexual explícito é emblemática. As narrativas rotuladas como pornográficas, obscenas, licenciosas e fesceninas estão excluídas do sacro santo reino da literatura, onde a placidez e a beatitude habitam as letras e as leituras dos homens e das mulheres de boa vontade. Com as famosas exceções de sempre, Marquês de Sade, George Bataille, Henry Miller, além de uns dois ou três outros escritores, a tendência geral é a de se considerar como secundária toda literatura que evoca fantasias não-verbais de caráter sexual. Alguns críticos argumentam que esses textos não estão preocupados com a técnica narrativa ou com qualquer tipo de pesquisa de linguagem, constituindo uma elaborada produção discursiva para o incremento do fluxo sanguíneo em uma parte específica do corpo masculino.

Historicamente, há um consenso social de que a pornografia, o erotismo e as discussões de caráter sexual são partes de um território inacessível ao feminino. Como todo bom tabu cultural, deve ser evitado por todos os indivíduos que foram agraciados com “educação e bom gosto” – há quem defenda a tese de que em determinadas situações as mulheres estão isentas dos mecanismos de sedução da linguagem ou das armadilhas da excitação física. Por isso, para alguns homens e mulheres, falar e escrever sobre sexo tornou-se um sentido perdido na comunicação humana.

Essa avaliação concorda com a tese de que narrativas que relatam mil e uma travessuras sexuais se opõem diretamente aos conceitos da virtude moral. Discutir a expressão e a expansão dos prazeres físicos muitas vezes é interpretado como uma maneira de fornecer visibilidade a uma espécie de prostituição da literatura.

Em nome da nobreza dos sentimentos, muitos homens e diversas mulheres defendem o direito de preservar o feminino das “coisas sujas”. O moralismo vitoriano – apesar da distância cronológica – ainda é usado como um muro de contenção. Não obstante os avanços políticos e tecnológicos da modernidade, há uma imagem romântica incrustada no inconsciente coletivo da classe média. Uma parcela do imaginário feminino ainda está atrelada ao mito de Cinderela: com os pés no século XXI e o coração no século XVIII, essas mulheres sonham com o dia em que o “príncipe encantado” vai superar as adversidades, matar o dragão, derrotar o vilão e pedir em casamento a virgem desprotegida – ao fundo, uma música orquestral acompanhará as palavras “The end”, que encerram mais uma bela história de amor.

O dilema proposto por Marsha Mellow ou Amy Bickerstaff, que é o de negar existência ao fato de que o feminino tem desejos sexuais e que, em determinado contexto, pode e deve expressá-los, não é uma visão descolada da realidade. A literatura escrita e consumida por mulheres “normais”, em nome de uma pretensa defesa da intimidade, sempre procurou esconder certas dúvidas, incertos sentimentos. Muitas vezes, ao leitor, passa a sensação de que as mulheres se sentem constrangidas de revelarem algumas das sensações básicas do relacionamento afetivo. E fazem isso muito bem através do onírico, que é uma estratégia compensatória para o desejo reprimido. Como não há obstáculos para o sonho, o interdito manifesta-se através da expressão do desejo. Confundem a procura pelo prazer com o proibido. Ou melhor com o medo de tornar público aquilo que consideram o proibido. Por isso mesmo, o máximo que algumas escritoras e leitoras se permitem é o erotismo, uma forma requentada, digo, requintada de esconder uma relação honesta com o corpo. Dito com outras palavras, edulcorar a realidade e camuflar algumas situações-limites é uma das maneiras com que a negação da união entre o masculino e o feminino se pronuncia. No momento em que é necessário esclarecer as questões fundamentais que definem quem é quem no espaço social, frequentemente o feminino literário sucumbe às imposições do bom comportamento social.

A modernidade, que introduziu mudanças estruturais nos costumes, também edificou um cenário artificial para as relações humanas. Parte significativa do contexto social ainda entende como problemáticas as diferenças entre sexo para reprodução e prazer sexual. Por isso mesmo é que descrever as relações afetivas e sexuais implica em compartilhar com o leitor um conjunto de sentimentos e sensações que, no curso da História, foram cerceados ou omitidos. A dor de se aproximar do real está expressa no fato de que muitas escritoras, cansadas de ficar “meio” excitadas, cansadas de negar a própria realidade, perceberam que alguma coisa estava faltando. Entre a doçura dos lábios do príncipe encantado e o apagar das chamas que alimentam carências, alguma coisa está faltando.

Essa perspectiva de que há algum tipo de falta é o que está gritando, apesar de não gritar, pelo menos explicitamente, uma tendência da literatura feminina brasileira contemporânea de ficção. Com a percepção de que a evolução da história social das mulheres demanda por uma outra interpretação das relações amorosas, do embate sempre doloroso que é travado diariamente entre homens e mulheres, algumas escritoras, cientes de que há um espaço a ser ocupado e que parte da literatura feminina de ficção deambula ao redor da paixão romântica, o que significa ignorar diversas ações humanas consequentes ao ato amoroso, estão adotando em suas narrativas uma voz mais solta, menos reprimida, no que refere aos assuntos de caráter sexual. É uma atitude corajosa, ou seja, repleta de crueldade. Mas, entre as elipses, que segredam intimidades, e os sofismas elaborados por uma prática comportamental, tornou-se imperativo inventar uma razão literária mais integrada com a totalidade e menos apegada às fantasias reducionistas, de inspiração romântica. Em alguns casos, as “novas” narrativas fazem questão de eliminar a fronteira que existe entre o erotismo e a descrição sexual, entre a elaboração literária pretensamente sutil e o relato nu e cru.

Evidentemente, não se trata de reduzir o texto a um conjunto de narrativas em torno de orgasmos e fornicações. Tampouco, a questão pode ser resumida às descrições gráficas sobre o embate entre pênis, vagina, ânus e boca. Esse tipo de narrativa, como a história literária já comprovou “n” vezes, naufraga na monotonia e na banalidade. Coerência narrativa não deve ser confundida com pornografia barata. Mesmo em casos em que as narrativas procuram se mostrar como valores de contestação ou de afirmação de alguma tese, faz-se necessário estar atento ao fato de que a procura pela expressão de um conjunto de relacionamentos e emoções deve estar conectada com um propósito aquém da exaltação da libido. É preciso explorar as sombras, desmascarar os fantasmas, mostrar, se possível com graça e sabedoria, os segredos da intimidade. Entre a literatura e a interdição há um espaço que anseia por uma forma de expressão textual e que ao mesmo tempo em que contempla a liberdade e a libertinagem, revela o desejo e o prazer.

Por esses motivos – e muitos outros –, torna-se importante responder a uma pergunta: escrever sobre sexo, nomeando com todas as letras as diversas maneiras e posições com que é possível a troca de fluídos corporais entre homens e mulheres, resulta em algum tipo de benefício para a questão feminina? Sim e não.

A sexualidade é uma das últimas fronteiras políticas do corpo humano. O uso de descrições mais realistas na literatura feminina permite que o desejo – e suas derivações – seja nomeado pelos nomes com que o desejo – e suas derivações – é conhecido entre quatro paredes. Essa postura nega o uso de uma gramática sexual como exclusividade do masculino – o que é, inegavelmente, um avanço no terreno da linguagem. Como acréscimo, a quebra de qualquer tipo de interdição é sempre saudável, na medida em que concorre para mudar comportamentos, ajuda a estabelecer novos níveis de convivência social e contribuí para diminuir a exclusão. Ao colocar em xeque os limites do proibido, essas narrativas, bem como suas escritoras, estabelecem as bases de uma mudança social.

O aspecto negativo está na mercantilização dos corpos, que imediatamente transporta o sexual para o patológico. O que deveria ser a expressão de uma sexualidade que foi reprimida por atos culturais da sociedade machista, muitas vezes é confundida com “esses livros que se leem com uma só mão”, na alegre definição de Jean-Marie Goulemot. [2]

É preciso evitar a armadilha relatada por Anaïs Nin, no prefácio de Delta de Vênus. [3]

Certa vez, depois de ser contratada para escrever várias histórias eróticas, Anaïs Nin recebeu um telefonema. Ouviu uma voz lhe dizer, a respeito do trabalho já entregue: “Está ótimo. Mas deixe de fora a poesia e as descrições de qualquer coisa além do sexo. Concentre-se no sexo”.[4] Deixe de fora a poesia, disse a voz, unificando a expressão do desejo com a pornografia – que era o que ele queria ler e ela não desejava escrever.

Semelhante equívoco ocorreu, no Brasil, com a literatura produzida por Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Cada cópia desses livros foi consumida como um “catecismo”. E a forma com que eles foram editados já era um indicativo do comportamento de seus leitores: capa vagabunda, mal desenhada, papel grosseiro, impressão tosca. Normalmente, esses livros eram vendidos por “baixo do balcão” ou em envelopes de plástico preto, como que a denunciar o conteúdo – que, indiferente do que as autoras tivessem escrito, foram consumidos como pornografia.

Para tentar evitar esses equívocos é que quase todas as narrativas modernas que se utilizam da descrição sexual mostram significativa preocupação com as regras do bom comportamento e da literatura de “qualidade” – independente do fato de que poucos conseguem definir o que é “qualidade”. Neste sentido, a qualidade está ao lado da contenção. A linguagem passa a ser utilizada como um instrumento de repressão. O politicamente correto almeja corrigir politicamente tudo aquilo que não se enquadra no padrão social de “qualidade”. E isso é uma anomalia – seja do ponto de vista do que pode e/ou deve ser corrigido, seja do ponto de vista da política opressiva que o moralismo social estabeleceu como parâmetro de comportamento. Uma das vantagens da literatura realista, que não teme descrever as escolhas da sexualidade como um dos ingredientes fundamentais dos relacionamentos humanos, está nesse avançar contra os tabus culturais.

Dentro dessa ótica, mostra-se interessante um contraste entre A casa da paixão, de Nélida Piñon, [5] um dos grandes clássicos da literatura erótica brasileira, e o romance Amadora, escrito por Ana Ferreira. [6]

Enquanto A casa da paixão possuí uma textura finamente elaborada, na medida em que descreve com apuro de linguagem, repleta de furor e fulgor, o ato amoroso, é divertido perceber como Amadora, que é uma narrativa edificada na linguagem coloquial, choca as almas mais puritanas. A vulgaridade insensível, [7] para usar uma expressão de George Orwell, pode ser encontrada, por exemplo, neste trecho: [ele] Trancou a porta e me mordeu inteira. Eu dei como uma égua no cio. Gozei relinchando, olhando pros cavalos, bem potranca.[8]

O conteúdo transgressor, agressivo, direto de Amadora renega as manobras evasivas da linguagem. Enquanto em A casa da paixão todos os personagens ainda estão procurando pela felicidade, em Amadora o que se destaca é a celebração da felicidade, através da narrativa de uma mulher que considera o sexo como uma das grandes delícias da vida.

O mais importante é que os dois textos, diferentes na abordagem, mas similares na adoção de uma estética com conteúdo sexual, estão irmanados na procura de uma voz que seja capaz de expressar com clareza e tesão a sexualidade feminina. Independente de leituras fora de contexto, que procuram por pornografia em qualquer lugar – o que é lamentável, mas é um risco a que nenhum texto literário está imune –, não é possível deixar de observar uma questão axial: escrever é um ato de coragem, de despojamento das vaidades e dos pudores.

Ana Ferreira e Nélida Piñon não tiveram escrúpulos. Colocaram no papel o que consideraram necessário para expressar os seus sentimentos, seja isso considerado pornografia ou não. Cientes da correção expressa por um personagem de Nilza Resende: Não há foda que se compare às boas palavras contos romances, como não há palavra conto romance que se compare a uma boa foda, [9] Ana Ferreira e Nélida Piñon enfatizaram que, entre o medo de ser objeto de masturbação e o relato de histórias em que o feminino se apresenta como identidade, é possível – com sensibilidade, com talento e, sobretudo, com coragem – retratar uma parcela da vida intima das mulheres.

E isso significa que a prosa muitas vezes assume a forma de poesia. Infelizmente, para poder captar algumas rimas, incertas alusões, complicados jogos de palavras, é necessário um leitor que seja perspicaz o suficiente para entender que é nas entrelinhas, um desses lugares que o masculino muitas vezes tem dificuldades para encontrar, que estão escondidos os melhores versos. O romance Calcinha no varal, de Sabina Anzuategui, [10] por exemplo, foi construído como um grande poema: uma voz sofrida, dolorosa, cheia de angústias. Os desencontros afetivos e a efervescente sexualidade ganham uma dimensão pouco usual na literatura brasileira. Como uma repetição incessante e intermitente, amor rima com dor e no ritmo de um bolero fora de moda, desses em que atravessam as madrugadas ao lado de um copo quase vazio de whisky com guaraná, constrói um hino de louvor à dor de corno, esse sentimento característico da brasilidade. Sem negar o afeto, sem expressar (grandes) rancores pela opressão masculina, a narradora de Calcinha no varal, descrevendo as diversas vezes em que desceu aos infernos da solidão amorosa, não poupa descrições sobre a sua vida privada – esses detalhes arrebatadores, muitas vezes assombrosos, compõem um cenário emocional dilacerante e mostram que é possível a existência de uma literatura diferenciada da mesmice de outras narrativas sobre a frustração amorosa. Quem anseia pela cura não deve ter medo da dor.

Igualmente poéticos, além de muito divertidos, são alguns dos textos de Ivana Arruda Leite. É o caso do miniconto “Por Deus”: “Tira essa faca do meu peito e enterra o pau. É muito mais confortável”.[11]

É muito mais confortável ver que a literatura feminina brasileira está se libertando de algumas amarras e aprendendo a cultivar com paixão um conjunto de palavras que estavam marginalizadas ao universo masculino. Com tesão e bom humor, a literatura feminina contemporânea está flexionando alguns dos verbos mais suculentos da língua portuguesa: olhar, desejar, despir, chupar, dar, comer, introduzir, receber, abrir, fechar, meter, tirar, trepar, foder, gozar, enlouquecer, amar. E no caso específico do último verbo, cabe lembrar que amar não é possível apenas com boas intenções ou com chá de flor-de-laranjeira: fundamental é agir, mostrar, demonstrar, exercer o desejo.

Refazer o território corroído por uma linguagem que é prisioneira de convenções herdadas de um passado cada vez mais distante, que reproduzem estereótipos e preconceitos, é uma conquista política, é uma reinvenção do Eu feminino, perdido entre tantas abstrações, dívidas e dúvidas emocionais. Com a ampliação das fronteiras, o desejo sai das sombras e – com um pouco de carinho, que carinho nunca é demais – se transforma em algum tipo de sentimento mais próximo da realidade em que esses textos foram escritos.

Finalizando, cabe observar que a questão sexual nas narrativas femininas não se resolve através do preconceito. Essa não é uma discussão entre vestais e ninfomaníacas, entre “donas de casa” e prostitutas, entre o bom comportamento e a pornografia. Em alguns momentos, sequer é uma discussão; no máximo, é uma conversa, como nos lembra uma cena do conto O jaguar azul, de Sonia Rodrigues. [12]

A avó e a neta estão trocando impressões sobre “os fatos da vida”. Diz a avó: – (...) Quando uma mulher gosta de pau, minha filha, tem que aprender a lidar com ele.

– Vovó! – Leda enxugou as lágrimas escandalizada. – Eu nunca ouvi você falar “pau” em toda minha vida!

– Ah, isso é porque sua mãe e seu pai nunca deixaram vocês sozinhas de verdade comigo. Uma coisa que eu gostaria de ter feito. Levar vocês a Paris, na adolescência, sentar num café, conversar sobre homens e seus paus. Por que será que as mulheres nunca têm a oportunidade de iniciar as mulheres mais novas, do mesmo sangue, aos segredos do pau?[13]



NOTAS


[1] BEAUMONT, Maria. Marsha Mellow e eu. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2005.

[2] GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.

[3] NIN, Anaïs. Delta de Vênus: histórias eróticas. Porto Alegre: L&PM, 2005.

[4] NIN, Anaïs. Op. cit. p. 7.

[5] PIÑON, Nélida. A casa da paixão. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

[6] FERREIRA, Ana. Amadora. São Paulo: Geração Editorial, 2002.

[7] ORWELL, George. Dentro da baleia. In: ______. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 100.

[8] FERREIRA, Ana. Op. cit. p. 100.

[9] REZENDE, Nilza. Eu quero te comer, Sophia. In: SANCHES NETO, Miguel. Contos para ler na cama. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[10] ANZUATEGUI, Sabina. Calcinha no varal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[11] LEITE, Ivana Arruda. Ao homem que não me quis. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 16.

[12] RODRIGUES, Sonia. O jaguar azul. In: ______. Do que os homens têm medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 83-109.

[13] RODRIGUES, Sonia. Op. cit. p. 96.



(Ilustração: Jindrich Styrsky-1933)

sábado, 20 de agosto de 2022

O MEU NOME É ZÉ LIMEIRA, de Zé Limeira

 


  

O meu nome é Zé Limeira

De Lima, Limão, Limansa

As estradas de São Bento

Bezerro de Vaca Mansa

Vala-me, Nossa Senhora

Ai que eu me lembrei agora:

Tão bombardeando a França



Ninguém faça pontaria

Onde o chumbo não alcança

E vou comprá quatro livro

Prá estudá leiturança

Bem que meu pai me dizia:

Jesus , José e Maria,

São João das Orelha mansa



Ainda não tinha visto

Beleza que nem a sua,

De cipó se faz balaio

A beleza continua

Sete-Estrelo, três Maria

Mãe do mato pai da lua



A beleza continua

De cipó se faz balaio

Padre-Nosso, Ave-Maria,

Me pegue senão eu caio

Tá desgraçado o vivente

Que não reza o mês de maio



Sei quando Jesus nasceu,

Num dia de quinta-feira,

Eu fui uma testemunha

Sentado na cabeceira

São José chegou com um facho

De miolo de aroeira



Um dia o Reis Salamão

Dormiu de noite e de dia,

Convidou Napoleão

Pra cantá pilogamia

Viva a Princesa Isabé

Que já morô em Sumé

No tempo da monarquia



Zé Limeira quando canta

Estremece o Cariri

As estrêla trinca os dente

Leão chupa abacaxi

Com trinta dias depois

Estoura a guerra civí



(Ilustração: Fran Lima - Zé Limeira)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

domingo, 14 de agosto de 2022

MUJER / MULHER, Alaide Foppa

 





Un ser que aún no

acaba de ser,

no la remota rosa

angelical,

que los poetas cantaron.

No la maldita bruja que

los inquisidores quemaron.

No la temida y deseada

prostituta.

No la madre bendita.

No la marchita y burlada

Solterona.

No la obligada a ser buena.

No la obligada a ser mala.

No la que vive

porque la dejan vivir.

No la que debe siempre

decir que sí.

Un ser que trata

de saber quién es

y que empieza a existir.



Tradução de Wagner Mourão Brasil:



Um ser que ainda não

desiste de ser,

não a remota rosa

angelical,

que os poetas cantaram.

Não a maldita bruxa que

os inquisidores queimaram.

Não a temida e desejada

prostituta.

Não a mãe abençoada.

Não a murcha e ludibriada

Solteirona.

Não a obrigada a ser boa.

Não a obrigada a ser má.

Não a que vive

porque a deixam viver.

Não a que deve sempre

dizer que sim.

Um ser que cuida

de saber quem é

e que começa a existir.



(Ilustração: 
Elisa Riemer)

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

LUCRÉCIO: DA NATUREZA OU COMO AS COISAS SÃO, de Stephen Greenblat

 


“Da natureza” não é uma leitura fácil. Totalizando 7400 versos, o poema está escrito em hexâmetros, o verso branco padrão, com seis acentos internos, em que poetas latinos como Virgílio e Ovídio, imitando o grego homérico, escreveram sua poesia épica. Dividido em seis livros sem títulos, o poema funde momentos de intensa beleza lírica, meditações filosóficas sobre a religião, o prazer e a morte e complexas teorias do mundo físico, da evolução das sociedades humanas, dos perigos e das alegrias do sexo e da natureza da doença. A linguagem muitas vezes é truncada e difícil, a sintaxe, complexa, e a ambição intelectual em geral é atordoantemente elevada.

A dificuldade não faria Poggio e seus amigos eruditos desanimarem nem um pouco. Eles dominavam o latim com perfeição, encaravam havia muito o desafio de resolver enigmas textuais e tinham percorrido inúmeras vezes com prazer e interesse os bosques ainda mais impenetráveis da teologia patrística. Uma rápida olhada nas primeiras páginas do manuscrito teria bastado para convencer Poggio de que tinha descoberto algo importante.

O que ele não poderia ter compreendido, sem ler detidamente a obra e absorver seus argumentos, era que estava pondo em liberdade algo que ameaçava seu universo mental como um todo. Tivesse ele entendido essa ameaça, poderia ainda ter reposto o poema em circulação: recuperar os vestígios perdidos do mundo antigo era seu propósito mais elevado na vida, praticamente o único princípio não contaminado pela desilusão e pelo riso cínico. Mas, ao fazê-lo, poderia muito bem ter pronunciado as palavras que Freud supostamente disse a Jung quando seu barco chegava ao Porto de Nova Y ork para receber as boas-vindas de seus admiradores americanos: “Mas eles não sabem que nós estamos trazendo a peste?”.

Um nome simples para a peste que Lucrécio trazia — uma acusação muitas vezes feita contra ele, quando seu poema voltou a ser lido — é ateísmo. Lucrécio não era de fato ateu. Ele acreditava na existência dos deuses. Mas também acreditava que, em virtude de serem deuses, eles não se preocupavam com os seres humanos ou com qualquer coisa que fizéssemos. A divindade, por sua própria natureza, pensava ele, deve gozar a vida e a paz eternas completamente intocada por qualquer sofrimento ou perturbação e indiferente às ações humanas.

Se lhe agrada chamar o mar de Netuno ou se referir aos grãos e ao vinho como Ceres e Baco, escreveu Lucrécio, sinta-se à vontade para fazê-lo, exatamente como você pode apelidar toda a esfera terrestre de Mãe dos Deuses. E se, atraído por sua beleza solene, você decidir visitar os templos religiosos, nada de mal há de vir disso, desde que contemple as imagens dos deuses “com paz e tranquilidade (6:78)”. Mas você não deve pensar nem por um minuto que pode irritar ou agradar alguma dessas deidades. As procissões, os sacrifícios animais, as danças alucinadas, os tambores e pratos e flautas, as chuvas de níveas pétalas de rosa, os sacerdotes eunucos, as imagens entalhadas do deus menino: todas essas práticas de culto, embora sejam convincentes e impressionantes a sua maneira, são basicamente desprovidas de sentido, já que os deuses que pretendem alcançar estão afastados e separados por completo de nosso mundo.

É possível defender que, apesar de sua profissão de crença religiosa, Lucrécio fosse algum tipo de ateu, um tipo particularmente ardiloso, talvez, já que para quase todos os crentes de quase todas as fés religiosas de todos os tempos deve ter parecido inútil adorar um deus sem esperanças de mitigar sua ira ou de adquirir a proteção e os favores divinos. De que serve um deus que não está interessado em castigar ou premiar? Lucrécio insistia que tais esperanças e temores são uma forma malfazeja de superstição, que combina em iguais medidas uma arrogância e um medo sem nenhum sentido. Imaginar que os deuses de fato se importam com o destino dos humanos ou com suas práticas rituais, observava ele, é um insulto particularmente vulgar — como se os seres divinos dependessem, para sua felicidade, de nossos balbucios ou de nosso bom comportamento. Mas esse insulto é o menor dos problemas, já que os deuses literalmente não dão a mínima. Nada que possamos (ou não possamos) fazer tem a menor chance de interessar a eles. A questão realmente relevante é que falsas crenças e observâncias levam de maneira inevitável à infelicidade humana.

Essas opiniões eram certamente contrárias à fé cristã do próprio Poggio e teriam levado qualquer contemporâneo seu que as defendesse a sofrer graves consequências. Mas, por si próprias, encontradas num texto pagão, elas não deveriam causar grande espanto. Poggio pode ter dito a si mesmo, como fizeram alguns leitores que se identificaram com Da natureza, que o brilhante poeta antigo simplesmente intuíra a vacuidade das crenças pagãs, e daí o absurdo dos sacrifícios a deuses que na verdade não existiam. Lucrécio, afinal, teve a infelicidade de viver pouco antes da chegada do Messias. Caso houvesse nascido um século depois, teria tido a oportunidade de aprender a verdade. Nas condições em que viveu, ele pelo menos compreendeu que as práticas de seus contemporâneos eram inúteis. Daí o fato de que muitas traduções modernas do poema de Lucrécio para o inglês reconfortantemente o fazem denunciar como “superstição” o que o texto latino chama apenas de religio.

Mas o ateísmo — ou, para ser mais preciso, a indiferença para com os deuses — não era o único problema que o poema de Lucrécio apresentava. Suas preocupações principais estavam em outras coisas, no mundo material em que todos vivemos, e é aqui que surgem as discussões mais complicadas, que levaram os que mais se viram influenciados por sua formidável força — Maquiavel, Bruno, Galileu e outros — a raciocínios estranhos. Esses raciocínios um dia haviam sido explorados com todo o entusiasmo na mesmíssima terra a que agora retornavam, como resultado da descoberta de Poggio. Mas mil anos de um silêncio quase absoluto os havia tornado perigosíssimos.

Hoje, muito do que Da natureza diz a respeito do universo parece profundamente familiar, pelo menos entre o círculo de pessoas interessadas neste texto. Afinal, muitos dos argumentos centrais da obra estão entre as fundações sobre as quais se ergueu a vida moderna.[1] Mas vale a pena lembrar que alguns dos argumentos continuam sendo postos à parte e que outros são acaloradamente contestados, muitas vezes por pessoas que não veem problema em se beneficiar dos avanços científicos que eles ajudaram a gerar. E, para praticamente todos os contemporâneos de Poggio, quase todas as coisas que Lucrécio defendia, malgrado o fizesse num poema de uma beleza impressionante e sedutora, pareciam incompreensíveis, incríveis ou ímpias.

Eis uma breve lista, de modo algum exaustiva, dos elementos que constituíam o desafio lucreciano:

● tudo é composto de partículas invisíveis. Lucrécio, que não gostava de linguagem técnica, escolheu não usar o termo filosófico grego padrão para essas partículas fundamentais, “átomos”, ou seja, coisas que não podem ser divididas. Ele empregava em seu lugar uma série de palavras latinas comuns: “primeiras coisas”, “princípios primeiros”, “os corpos da matéria”, “as sementes das coisas”. Tudo se forma dessas sementes e, quando se dissolve, volta a elas no fim. Imutáveis, indivisíveis e de número infinito, elas estão em constante movimento, chocando-se umas contra as outras, agrupando-se para formar novas coisas, separando-se, recombinando-se novamente, resistindo.

● as partículas elementares da matéria — “as sementes das coisas” — são eternas. O tempo não é limitado — uma substância determinada com começo e fim —, mas infinito. As partículas invisíveis de que todo o universo é feito, das estrelas ao mais humilde inseto, são indestrutíveis e imortais, embora seja transitório todo e qualquer objeto do universo. Ou seja, todas as formas que observamos, mesmo as que parecem mais duráveis, são temporárias: os tijolos de que são compostas mais cedo ou mais tarde serão redistribuídos. Mas os próprios tijolos são permanentes, assim como o incessante processo de formação, dissolução e redistribuição.

Nem a criação nem a destruição jamais levam vantagem; a soma total da matéria permanece a mesma, e o equilíbrio entre os vivos e os mortos sempre se restaura:

E assim, também, os movimentos de destruição não podem vencer para sempre, nem sepultar a vida para a eternidade, exatamente como os movimentos que produzem e aumentam os corpos não conseguem assegurar para sempre as suas criações.

Deste modo se vai travando o combate dos princípios, numa guerra desencadeada desde tempos infinitos. Ora, num ponto ou noutro vencem as forças vitais e são vencidas depois: misturam-se com os lamentos funerários os vagidos que soltam os meninos ao verem as regiões da luz; nenhuma noite se tem seguido a nenhum dia, nenhum dia se tem seguido a qualquer noite, sem que se tenham ouvido misturados aos vagidos dolorosos os choros que são companheiros da morte e dos negros funerais. (2.569-80)

O filósofo nascido na Espanha George Santayana chamava essa ideia — a incessante mutação de formas compostas de substâncias indestrutíveis — de “a maior ideia que a humanidade já teve”. [2]

● as partículas elementares são de número infinito, mas limitadas em forma e tamanho. Elas são como as letras de um alfabeto, formam um conjunto definido e são capazes de se combinar num número infinito de sentenças (2.688ss). E, com as sementes das coisas assim como com a linguagem, as combinações são feitas segundo um código. Como nem todas as letras de todas as palavras podem ser combinadas de maneira coerente, assim também nem todas as partículas podem se combinar com todas as outras partículas de todas as maneiras possíveis. Algumas das sementes das coisas rotineira e facilmente se engancham às outras; algumas se repelem e resistem. Lucrécio não dizia conhecer o código secreto da matéria. Mas, argumentava, é importante entender que há um código e que, a princípio, ele poderia ser investigado e compreendido pela ciência humana.

● todas as partículas estão em movimento num vazio infinito. O espaço, como o tempo, é ilimitado. Não há pontos fixos, não há começos, meios ou fins, e não há limites. A matéria não fica toda aglomerada numa massa sólida. Há nas coisas um vazio que permite que as partículas constituintes se movam, colidam, combinem-se e se afastem. As provas do vazio incluem não apenas o movimento incessante que observamos a nossa volta, mas também fenômenos como a água que escorre das paredes das cavernas, a comida que se espalha pelos corpos, o som que atravessa paredes de salas fechadas, o frio que penetra até os ossos.

O universo consiste então de matéria — as partículas primárias e tudo que essas partículas se reúnem para formar — e de espaço, intangível e vazio. Nada mais existe.

● o universo não tem um criador ou um projetista. As próprias partículas não foram feitas e não podem ser destruídas. Os padrões de ordem e desordem no mundo não são produto de algum esquema divino. A providência é uma fantasia.

O que existe não é a manifestação de um plano maior ou de algum design inteligente inerente à própria matéria. Nenhum coreógrafo supremo planejou seus movimentos, e os elementos que formam as coisas não tiveram uma reunião em que decidiram o que iria em que lugar.

Mas, depois de terem sido mudados de mil modos diferentes através de toda a imensidade, depois de terem sofrido pelos tempos eternos toda espécie de choques, depois de terem experimentado todos os movimentos e combinações possíveis, chegaram finalmente a disposições tais que foi possível o constituir-se tudo que existe. (1.1024-28)

A existência não tem fins nem propósitos, existem somente uma criação e uma destruição incessantes, governadas inteiramente pelo acaso.

● tudo vem a ser por resultado de uma virada. Se todas as partículas individuais, em seus números infinitos, caíssem pelo vazio em linhas retas, tragadas por seu próprio peso como gotas de chuva, nada jamais existiria. Mas as partículas não se movem organizadamente numa única direção preordenada. Em vez disso, “afastam-se um pouco da sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o necessário para que se possa dizer que mudou o movimento” (2.218-20). A posição das partículas elementares, assim, é indeterminada.[3]

A virada — que Lucrécio chama em momentos diferentes de declinatio, inclinatio ou clinamen — é apenas o mais ínfimo movimento, nec plus quam minimum (2.244). É o bastante, porém, para detonar uma cadeia incessante de colisões. Tudo que existe no universo existe em função dessas colisões fortuitas de partículas minúsculas. As infinitas combinações e recombinações que resultam das colisões ao longo de um intervalo de tempo ilimitado são o motivo por que “os rios saciam o ávido mar com suas grandes águas, que a Terra, aquecida pelo vapor do Sol, renova as suas produções, e florescem todas as raças de seres vivos, se sustentam os fogos errantes pelo céu” (1.1031-34).

● a virada é a fonte do livre-arbítrio. Nas vidas de todas as criaturas sensíveis, tanto humanas como animais, a virada fortuita das partículas elementares é responsável pela existência do livre-arbítrio. Pois, se todo movimento fosse apenas parte de uma longa cadeia predeterminada, não haveria possibilidade de liberdade. [4] Causas seguiriam causas desde a eternidade, como determinaram os fados. Em vez disso, arrancamos dos fados o livre-arbítrio.

Mas qual é a prova de que existe essa vontade? Por que não podemos simplesmente pensar que a matéria das criaturas vivas se move por causa dos mesmos golpes que propelem as partículas de pó? A imagem de Lucrécio é a da fração de segundo, na pista de corridas, depois da abertura do portão, antes que os cavalos tensos, freneticamente desejosos de se mover, possam de fato projetar os corpos adiante. Aquela fração de segundo é o empolgante espetáculo de um ato mental colocando uma massa de matéria em movimento. E, como essa imagem não respondeu completamente a todo seu propósito — porque, afinal, corridas de cavalos se resumem a criaturas levadas a se mover pelos golpes de seus cavaleiros —, Lucrécio prosseguiu observando que, embora uma força externa possa golpear o homem, aquele homem pode deliberadamente se conter.[5]

● a natureza experimenta incessantemente. Não há um momento único de origem, não há cenas míticas de criação. Todos os seres vivos, das plantas aos insetos até os mamíferos mais elevados e o homem, evoluíram através de um longo e complexo processo de tentativa e erro. O processo envolve muitas tentativas abortadas e becos sem saída, aberrações, prodígios, equívocos, criaturas que não eram dotadas de todas as características de que necessitavam para competir pelos recursos e para gerar crias. Criaturas cuja combinação de órgãos lhes permite a adaptação e a reprodução terão sucesso em se estabelecerem, pelo menos até que uma mudança nas circunstâncias impossibilite que todas elas sobrevivam.[6]

As adaptações bem-sucedidas, como os fracassos, são resultado de um número fantástico de combinações que estão sendo constantemente geradas (e reproduzidas e descartadas) durante um intervalo de tempo ilimitado. É difícil entender esse argumento, Lucrécio reconhecia, mas “é o ter nascido que traz consigo a sua utilização” (4.935). Ou seja, explicava ele: “Não existiu a visão antes de ter aparecido a luz dos olhos, nem o exprimir-se por palavras antes de ter sido criada a língua” (4.836-7). Esses órgãos não foram criados para realizar um fim previsto; sua utilidade gradualmente permitiu que aqueles em que emergiram sobrevivessem e reproduzissem sua espécie.

● o universo não foi criado para os ou em torno dos humanos. A Terra — com seus mares e desertos, seu clima hostil, animais selvagens, doenças — obviamente não foi construída com o propósito de fazer nossa espécie se sentir em casa. Ao contrário de muitos outros animais, que recebem ao nascer tudo de que necessitam para sobreviver, as crianças humanas são quase completamente vulneráveis: considere, escreveu Lucrécio num trecho famoso, como um bebê, igual a um marujo naufragado, arremessado na areia por ondas violentas, jaz nu sobre o solo, sem falar, sem nenhum auxílio para a vida, logo que natureza o lança num esforço, do ventre da mãe às praias da luz. (5.223-25)]7]

O destino de toda a espécie (o que dizer de um indivíduo qualquer) não é o polo em torno do qual tudo gira. Na verdade, não há motivos para acreditar que os seres humanos como espécie irão durar para sempre. Pelo contrário, é óbvio que, durante os infinitos períodos de tempo, algumas espécies crescem, outras desaparecem, geradas e destruídas no incessante processo de mudança. Houve outras formas de vida antes de nós, que não mais existem; haverá outras formas de vida depois de nós, quando nossa espécie tiver desaparecido.

● os seres humanos não são únicos. Eles são parte de um processo material muito mais amplo, que os conecta não apenas a todas as outras formas de vida, mas também à matéria inorgânica. As partículas invisíveis de que são compostas as coisas vivas, inclusive os humanos, não são sensíveis e não provêm de alguma fonte misteriosa. Somos feitos da mesma matéria de que tudo mais se faz.

Os humanos não ocupam o lugar privilegiado na existência que imaginam ocupar: embora muitas vezes deixem de reconhecer esse fato, eles compartilham muito de suas faculdades mais preciosas com outros animais. É claro que cada indivíduo é único, mas, graças à abundância da matéria, o mesmo se aplica a praticamente todas as criaturas: se não, como poderíamos imaginar que um bezerro reconheça sua mãe ou a vaca, seu bezerro? [8] Só precisamos olhar com atenção para o mundo a nossa volta para compreender que muitas das experiências mais intensas e pungentes de nossa vida não são exclusivas de nossa espécie.

● a sociedade humana começou não com uma era dourada de tranquilidade e abundância, mas com uma batalha primitiva pela sobrevivência. Não houve um tempo original e paradisíaco de abundância, como alguns sonharam, em que homens e mulheres felizes e pacíficos, vivendo em segurança e à toa, gozavam os frutos da generosidade da natureza. Os primeiros humanos, que não tinham fogo, agricultura e outros meios de amenizar uma existência brutal, lutavam para comer e não ser comidos.

Pode sempre ter havido certa capacidade rudimentar de cooperação social em nome da sobrevivência, mas a habilidade de formar laços e viver em comunidades governadas por costumes estáveis se desenvolveu lentamente. De início havia apenas a cópula fortuita — seja por desejo mútuo ou por comércio ou estupro — e a caça e coleta de alimentos. As taxas de mortalidade eram altíssimas, ainda que, notava sarcasticamente Lucrécio, não tão altas quanto hoje, inflacionadas pela guerra, os naufrágios e o consumo voraz de comida.

A ideia de que a linguagem foi de alguma maneira dada aos humanos, como uma invenção miraculosa, é absurda. Em vez disso, Lucrécio escreveu, os humanos, que como outros animais usavam gritos não articulados e gestos em várias situações, aos poucos chegaram a sons compartilhados para designar as mesmas coisas. E assim também, muito antes de serem capazes de se juntar para cantar canções melodiosas, os humanos imitavam o trilo dos pássaros e o doce som de uma brisa suave sobre os juncos, e assim gradualmente desenvolveram a capacidade de fazer música.

As artes da civilização — que não foram dadas ao homem por algum divino legislador, mas geradas com esforço pelos talentos comuns e pelo poder mental da espécie — são realizações que devemos celebrar, mas não são bênçãos unívocas. Elas surgiram simultaneamente ao medo dos deuses, ao desejo de riqueza, à busca de fama e poder.

Todas essas coisas se originaram num anseio por segurança, um anseio que remonta às mais antigas experiências da espécie humana na luta para dominar seus inimigos naturais. Essa violenta luta — contra os animais selvagens que ameaçavam a sobrevivência humana — em grande medida teve sucesso, mas os impulsos temerosos, aquisitivos e agressivos sofreram uma metástase. Em consequência disso, os seres humanos sempre desenvolvem armas para lidar uns contra os outros.

● a alma morre. A alma humana é feita do mesmo material do corpo. O fato de não podermos localizar fisicamente a alma num órgão específico só quer dizer que ela é feita de partículas pequeníssimas imbricadas nas veias, na carne e nos tendões. Nossos instrumentos não são refinados a ponto de poderem pesar a alma: no momento da morte, ela se dissolve. “O mesmo acontece quando se desvanece o perfume de Baco ou quando o hálito suave dum unguento foge nos ares.” (3.221-2) Nós não imaginamos que o vinho ou o perfume contenham uma alma misteriosa; só que o aroma consista de elementos materiais muito delicados, pequenos demais para podermos medir. É assim também com o espírito humano: ele consiste de minúsculos elementos escondidos nos recônditos mais secretos do corpo. Quando o corpo morre — ou seja, quando sua matéria se dispersa —, a alma, que é parte do corpo, morre também.

● não há vida após a morte. Os humanos vêm tanto se consolando como se torturando com a ideia de que algo espera por eles depois que morrerem. Ou colherão flores durante toda a eternidade num jardim paradisíaco em que ventos gélidos nunca sopram ou serão marcialmente conduzidos à presença de um juiz duro que os condenará, por seus pecados, ao sofrimento infinito (um sofrimento que de alguma forma misteriosa requer que, depois de mortos, eles tenham uma pele sensível ao calor, uma aversão ao frio, apetites corpóreos, sede e coisas do tipo). Mas, assim que você entende que sua alma morre junto com seu corpo, também entende que não pode haver recompensas ou castigos póstumos. A vida terrena é tudo que os seres humanos têm.

● a morte não é nada para nós. Quando você morre — quando as partículas que estavam conectadas para criá-lo e sustentá-lo se desintegram — não haverá prazer nem dor, nem desejo nem medo. As pessoas que pranteiam a morte de alguém, Lucrécio escreveu, sempre torcem as mãos angustiadas e dizem que nunca mais “os filhos queridos correrão a roubar-te beijos e a acariciar-te o peito com silenciosa ternura” (3.895-98). Mas não acrescentam que “também já não te seguirá a saudade de tudo isso”.

● todas as religiões organizadas são ilusões supersticiosas. As ilusões se baseiam em desejos, medos e ignorâncias profundamente enraizados. Os seres humanos projetam imagens do poder, da beleza e da perfeita segurança que gostariam de possuir. Ao moldar seus deuses de acordo com essas imagens, ficam escravos de seus próprios sonhos.

Todos estão sujeitos aos sentimentos que geram tais sonhos: eles afluem quando você olha as estrelas e começa a imaginar seres de poder imensurável; ou quando se pergunta se o universo tem limites; ou quando se espanta com a maravilhosa ordem das coisas; ou, de maneira menos agradável, quando vive uma sinistra sequência de infortúnios e questiona se não está sendo castigado; ou quando a natureza mostra seu lado destrutivo.[9] Há explicações perfeitamente naturais para fenômenos como o relâmpago e os terremotos — Lucrécio as fornece —, mas humanos aterrorizados respondem por instinto com o temor religioso e começam a rezar.

● as religiões são invariavelmente cruéis. As religiões sempre prometem esperança e amor, mas sua estrutura profunda, fundamental, é a crueldade. É por isso que elas se deixam levar por fantasias de retribuição e inevitavelmente causam angústia em seus adeptos. O problema quintessencial da religião — e a mais clara manifestação da perversidade que reside em seu núcleo — é o sacrifício de um filho pelo pai.

Quase todos os credos religiosos incorporam o mito de um sacrifício desse tipo, e alguns chegam efetivamente a realizá-lo. Lucrécio tinha em mente o sacrifício de Ifigênia por seu pai Agamêmnon, mas também podia ter notícia da história judaica de Abraão e Isaac e de outras histórias similares do Oriente Próximo, pelas quais os romanos de seu tempo tinham cada vez mais interesse. Escrevendo em torno de 50 a.C., ele não podia, claro, ter antevisto o grande mito sacrificial que viria a dominar o mundo ocidental, mas não ficaria muito surpreso com ele ou com as imagens infinitamente reiteradas e expostas do filho ensanguentado e assassinado.

● não existem anjos, demônios nem fantasmas. Espíritos imateriais de qualquer tipo não existem. As criaturas com que a imaginação dos gregos e romanos povoou o mundo — parcas, harpias, daemons, gênios, ninfas, sátiros, dríades, mensageiros celestiais e espíritos dos mortos — são completamente irreais. Esqueçam.

● o objetivo mais elevado da vida humana é a ampliação do prazer e a redução da dor. A vida deve ser organizada para estar a serviço da busca da felicidade. Não há propósito ético mais elevado que propiciar essa busca para si próprio e para as demais criaturas. Todas as outras pretensões — o serviço do estado, a glorificação dos deuses ou do soberano, a árdua busca da virtude através do sacrifício pessoal — são secundárias, equivocadas ou fraudulentas. O militarismo e o gosto por esportes violentos que caracterizavam sua própria cultura pareciam para Lucrécio pervertidos e artificiais no sentido mais profundo dos termos. Deixar de reconhecer os limites dessas necessidades leva os seres humanos a uma luta vã e infrutífera para ter cada vez mais.

A maioria das pessoas entende racionalmente que os luxos que desejam são, em sua maioria, inúteis e fazem pouco, ou nada, para ampliar seu bem-estar: “as febres ardentes não se afastam mais depressa do corpo por estar agitado sobre tapetes bordados e sobre a rubra púrpura do que por nos termos de deitar num pano plebeu” (2.34-36). Mas, por ser difícil resistir aos medos dos deuses e da vida após a morte, é difícil também resistir à atraente noção de que se pode de alguma maneira ampliar a segurança, a nossa e a de nossa comunidade, através de uma dedicação apaixonada à aquisição e à conquista. Mas essas tentativas só fazem diminuir a possibilidade da felicidade, e põem todos que nelas embarcam em risco de naufragar.

O objetivo, Lucrécio escreveu num trecho famoso e celebremente perturbador, deve ser escapar de toda essa empresa enlouquecida e observá-la de uma posição de segurança:

É bom, quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes combates de guerra travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo.

Mas nada há de mais agradável do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos sábios, donde se podem ver os demais errar por um lado e outro e procurar ao acaso o caminho da vida, lutar à força de talento, ter rivalidades de nobreza e esforçar-se, com trabalho de dias e de noites, por alcançar as maiores riquezas e apoderar-se do governo. (2:1-13)10

● o maior obstáculo ao prazer não é a dor; é a ilusão. Os principais inimigos da felicidade humana são o desejo desproporcionado — a fantasia de obter algo que excede o que o finito mundo mortal permite — e o medo constante. Mesmo a temida peste, segundo o relato de Lucrécio — e sua obra se encerra com uma narrativa detalhada de uma catastrófica epidemia da peste em Atenas —, é terrível não somente pelo sofrimento e pela dor que causa, mas também, e ainda mais, pela “perturbação e o pânico” que desencadeia.

É perfeitamente razoável tentar evitar a dor: esse é um dos pilares de todo seu sistema ético. Mas será possível evitar que essa aversão natural se transforme em pânico, um pânico que só leva ao triunfo do sofrimento? E, em termos mais gerais, por que os humanos são tão infelizes?

A resposta, segundo Lucrécio, tinha a ver com o poder da imaginação. Embora sejam finitos e mortais, os humanos são vítimas de ilusões de infinitude — prazer e dor infinitos. A fantasia da dor infinita ajuda a explicar sua tendência à religião: na crença equivocada de que suas almas são imortais, e portanto potencialmente sujeitas a uma eternidade de sofrimento, os humanos imaginam que podem de alguma maneira negociar com os deuses uma solução melhor, uma eternidade de prazer no paraíso. A fantasia do prazer infinito ajuda a explicar sua tendência ao amor romântico: na crença equivocada de que sua felicidade depende da posse absoluta de um único objeto de desejo ilimitado, os humanos são tomados por uma fome febril e insaciável que só pode trazer angústia, e não felicidade.

Mais uma vez é perfeitamente razoável buscar o prazer sexual: que é, afinal, uma das alegrias naturais do corpo. O engano, achava Lucrécio, era confundir essa alegria com uma ilusão, o desejo alucinado de possuir — simultaneamente penetrar e consumir — o que na realidade é um sonho. O amante ausente é sempre apenas uma imagem mental, e nesse sentido é da estirpe dos sonhos. Mas Lucrécio observa em trechos de notável franqueza que mesmo no ato da consumação sexual os amantes continuam vítimas de anseios confusos que não podem satisfazer:

No próprio momento da posse, o ardor dos amantes flutua com as mãos. Apertam estreitamente o que desejaram, provocam dores no corpo, muitas vezes ferem os lábios com os dentes e os magoam de beijos. (4.1076-81)

O objetivo desse trecho — parte do que W. B. Yeats disse ser “a mais bela descrição do ato sexual que já foi escrita” [11] — não é incitar a uma forma de amar mais decorosa e morna. É registrar o elemento de apetite insaciado que assombra até mesmo a realização do desejo.[12] A insaciabilidade do apetite sexual, na opinião de Lucrécio, é uma das inteligentes estratégias de Vênus; essa estratégia ajuda a explicar o fato de que, depois de breves interlúdios, os mesmos atos de amor são realizados repetidas vezes. E ele entendia também que esses atos reiterados são extremamente agradáveis. Mas continuava incomodado com o ardil, com o sofrimento emocional que se segue, com o despertar de impulsos agressivos e, acima de tudo, com a sensação de que mesmo o momento de êxtase deixa algo a desejar. Em 1685, o grande poeta John Dryden capturou de maneira brilhante a impressionante visão de Lucrécio:



E quando o jovem par se abraça mais,

Com mãos e coxas juntas, quase iguais;

Na espuma do desejo pleno se reviram,

Murmuram, ambos, sem parar, expiram,

Da língua vão tentar fazer arpão,

Com que forçar caminho ao coração.

Em vão; navegam raso sem que afundem,

Pois corpos não perfuram nem se fundem,

Qual certamente é então o seu intento

Ao encenar tal fúria de um momento.

E jazem enredados pelo amor,

Até se dissolverem no fervor.*

(4.1105-14) [13]

● compreender a natureza das coisas gera um profundo embevecimento. A percepção de que o universo consiste de átomos e vazio e nada mais, de que o mundo não foi feito para nós por um criador providencial, de que não somos o centro do universo, de que nossas vidas emocionais não se distinguem das de todas as outras criaturas, assim como nossas vidas físicas, de que nossa alma é tão material e tão mortal quanto nosso corpo — tudo isso não é motivo de desespero. Pelo contrário, compreender como as coisas são é o passo crucial para a possibilidade da felicidade. A insignificância humana — o fato de que tudo não gira em torno de nós e de nosso destino — é, insistia Lucrécio, a boa nova.

É possível que os seres humanos vivam vidas felizes, mas não porque pensam que são o centro do universo, ou porque tenham medo dos deuses, ou porque se sacrifiquem com nobreza por valores que pretensamente transcendem sua existência mortal. O desejo insaciável e o medo da morte são os principais obstáculos à felicidade humana, mas os obstáculos podem ser ultrapassados através do exercício da razão.

O exercício da razão não está disponível apenas aos especialistas; ele é acessível a todos. Só é preciso recusar as mentiras ditas por sacerdotes e outros mercadores de ilusões e encarar calma e diretamente a verdadeira natureza das coisas. Toda especulação — toda a ciência, toda a moralidade, todas as tentativas de gerar uma vida que valha a pena — deve começar e terminar com uma compreensão das invisíveis sementes das coisas: os átomos, o vazio e nada mais.

Pode parecer de início que essa compreensão inevitavelmente traria consigo uma sensação de fria vacuidade, como se o universo tivesse perdido a magia. Mas ser libertado de ilusões nocivas não equivale a ficar desiludido. A origem da filosofia, dizia-se muitas vezes no mundo antigo, era o embevecimento: a surpresa e o pasmo levavam ao desejo de saber, e o conhecimento por sua vez aquietava o embevecimento. Mas na narrativa de Lucrécio o processo é revertido: é saber como são as coisas que desperta o encanto mais profundo.

“Da natureza” é uma raríssima realização, uma grande obra filosófica que também é um grande poema. Inevitavelmente, compilar uma lista de proposições, como acabei de fazer, obnubila o incrível poder poético de Lucrécio, um poder do qual ele mesmo fazia pouco quando comparava seus versos ao mel que se passa na borda de uma taça que contém o remédio que uma criança doente de outra maneira poderia se recusar a beber. Esse menoscabo não é exatamente surpreendente: seu mestre e guia filosófico, Epicuro, desconfiava da eloquência e acreditava que a verdade devia ser enunciada em prosa simples e sem rebuscamentos.

Mas a grandeza poética da obra de Lucrécio não é tangencial a seu projeto visionário, sua tentativa de arrancar a verdade das mãos dos mercadores de ilusão. Por que os contadores de fábulas, pensava ele, haveriam de deter o monopólio dos meios que os humanos inventaram para exprimir o prazer e a beleza do mundo? Sem esses meios, o mundo que habitamos corre o risco de parecer hostil, e em busca de conforto as pessoas vão preferir adotar fantasias, mesmo que sejam destrutivas. Mas, com o auxílio da poesia, a verdadeira natureza das coisas — um número infinito de partículas indestrutíveis que dão pequenas viradas e colidem umas com as outras, enganchando-se, ganhando vida, separando-se, reproduzindo, morrendo, recriando-se, formando um universo maravilhoso, em mutação constante — pode ser descrita em seu legítimo esplendor.

Os seres humanos, acreditava Lucrécio, não deveriam engolir a crença peçonhenta de que suas almas fazem parte do mundo apenas de maneira temporária e estão a caminho de outro lugar. Essa crença só vai gerar neles uma relação destrutiva com o ambiente em que vivem a única vida de que dispõem. Essa vida, como todas as outras formas existentes no universo, é vulnerável e sujeita a contingências; todas as coisas, inclusive a própria Terra, vão um dia se desintegrar e voltar aos átomos constituintes de que eram compostas e dos quais outras coisas vão se formar na dança perpétua da matéria. Mas, enquanto estamos vivos, devemos nos encher do mais profundo prazer, pois somos uma pequena parte de um vasto processo de criação de mundo que Lucrécio celebrava como algo essencialmente erótico.

Daí o fato de que, como poeta, como criador de metáforas, Lucrécio podia fazer algo muito estranho, algo que parece violar sua convicção de que os deuses são surdos às petições humanas. Da natureza se abre com uma oração a Vênus. Mais uma vez Dryden provavelmente é quem melhor traduz para o inglês o espírito do ardor de Lucrécio:



Deleite de homens e de seus senhores,

Ó mãe de Roma e todos os Amores,

De quem procedem terra, água e ar,

Que crias o que o céu feroz gerar;

Pois tudo teu poder é que conduz,

A vir e ver as regiões da luz:

És tu que temem nuvens e tempestas,

Sumindo quando tu te manifestas;

Por ti a terra flore-se contente,

Por ti acalma o mar seu peito ingente,

E a luz no paraíso é mais presente.**

(1.1-9) [14]

O hino flui, pleno de embevecimento e gratidão, reluzindo de luz. É como se o poeta em êxtase realmente estivesse contemplando a deusa do amor. O céu se abrindo diante de sua presença radiante, a terra que acorda cobrindo-a de flores. Ela é a encarnação do desejo, e seu retorno, nas rajadas frescas do vento do oeste, enche todas as coisas de prazer e de um desejo sexual apaixonado:

Pois quando os campos primavera adorna

E renovada a natureza se contorna,

Botões ressurgem sobre o verde airoso,

E ventos soltam o ano preguiçoso,

As aves gaias teu louvor expressam,

Tu cujos cantos tal ardor expressam.

Desprezam bestas o que as alimenta,

Encantadas enfrentam as tormentas.

Natura é teu dom: terra, mar e ar;

Toda a progênie do que respirar,

Que a teu deleite tu irás guiar.

Por monte nu, por campo decorado,

Por águas, sobre o bosque arborizado

Estendes teu domínio ilimitado.

Por toda a vida corre teu louvor

E espalhas onde vais os grãos do amor.***

(1.9-20)

Não sabemos como os monges alemães que copiaram os versos latinos e evitaram sua destruição reagiram, nem o que Poggio Bracciolini, que pelo menos deve ter dado uma olhada neles quando resgatou o poema do esquecimento, achava que quisessem dizer. Certamente quase todos os princípios centrais do poema eram abomináveis para a ortodoxia cristã. Mas a poesia era atraente, sedutoramente linda. E podemos ver com uma clareza alucinatória o que pelo menos um italiano, mais adiante no século xv, entendeu dela: só nos basta olhar para a grande pintura da Vênus de Botticelli, onde ela surge, atordoantemente linda, da matéria inquieta do mar.



NOTAS 1(numeradas):


1. O papel chave de Lucrécio no nascimento da filosofia e da ciência modernas é muito bem explorado por Catherine Wilson em Epicureanism at the Origins of Modernity (Oxford: Clarendon Press, 2008). V er também Lucretius and the Modern World, de W. R. Johnson (Londres: Duckworth, 2000); Epicurus: His Continuing Influence and Contemporary Relevance, de Dane R. Gordon e David B. Suits (Rochester: r it Cary Graphic Arts Press, 2003); e “Lucretius and the Moderns”, de Stuart Gillespie e Donald Mackenzie, publicado em The Cambridge Companion to Lucretius, editado por Stuart Gillespie e Philip Hardie (Cambridge: Cambrige University Press, 2007), pp. 306-24.

2. Three Philosophical Poets: Lucretius, Dante, and Goethe, de George Santayana (Cambridge: Harvard University Press, 1947), p. 23.

3. Em Lógica do sentido, Gilles Deleuze explora a relação entre esse movimento ínfimo e indeterminado dos átomos e a física moderna.

4. “Finalmente, se todo movimento é solidário de outro e sempre um novo sai de um antigo, segundo uma ordem determinada, se os elementos não fazem, pela sua declinação, qualquer princípio de movimento que quebre as leis do destino, de modo a que as causas não se sigam perpetuamente às causas, donde vem esta liberdade que têm os seres vivos, donde vem este poder solto dos fados, por intermédio do qual vamos aonde a vontade nos leva e mudamos o nosso movimento, não em tempo determinado e em determinada região, mas quando o espírito o deseja?” (2.251-58).

5. Tanto o querer ir em frente como o querer permanecer parado só são possíveis porque nada é estritamente determinado, ou seja, por causa dos sutis, imprevisíveis e livres movimentos da matéria. O que preserva a mente de sucumbir às circunstâncias é “uma pequena declinação dos elementos, sem ser em tempo fixo, nem em fixo lugar”.

6. Assim como não existe graça divina em parte nenhuma desta história em eterno desenvolvimento, também não háperfeição ou forma definitiva. Até as criaturas bem-sucedidas têm defeitos, uma prova de que sua existência não é fruto de alguma inteligência superior, e sim do puro acaso. Lucrécio articulou, com efeito, o que os humanos do sexo masculino poderiam chamar, para sua vergonha, de princípio da próstata.

7. Compare com a tradução de Dryden desses versos:

Igual a um marujo pela tempestade tragado

O bebê vem ao mundo como um naufragado;

Jaz deitado nu, logo exposto à morte;

Incapaz de defesa de qualquer sorte:

Presa fácil de um mundo implacável,

Desde o primeiro sopro inadiável.*

Complete Poems, de John Dryden, edição de James Kinsley em 4 volumes (Oxford: Clarendon Press, 1958), 1:421. A ortografia e a pontuação de Dryden foram modernizadas no contexto deste livro.

8. “Muitas vezes, diante dos adornados templos de deuses, perto dos turícremos altares, cai sacrificado um vitelo. A mãe desolada percorre os verdes pastos, procura as pegadas impressas no chão pelos cascos fendidos, fixando os olhos em todos os lugares, a ver se pode encontrar o filho perdido e, parando, enche de queixas o bosque frondoso e volta de novo para o estábulo varada de saudades pelo filho” (2:352-60). Essa passagem, obviamente, faz muito mais que afirmar que uma determinada vaca é capaz de identificar seu bezerro: trata-se de mais um registro do caráter destrutivo e assassino da religião, desta vez do ponto de vista de sua vítima animal. O ritual de sacrifício, ao mesmo tempo desnecessário e cruel, é apresentado como algo nem um pouco natural, e não apenas pela capacidade da mãe de identificar sua cria, também pelo amor que está por trás dessa identificação. Os animais não são máquinas vivas — não são simplesmente programados, como costumamos dizer, a se preocupar com os mais jovens; eles têm sentimentos. E não basta suprir o vazio da morte com outra criatura da mesma espécie, como se criaturas vivas fossem passíveis de substituição.

9. “Além disto, a quem se não aperta o ânimo com o pavor dos deuses, a quem se não arrepiam de medo os membros, quando a terra abrasada treme toda com o choque horrível dos raios, quando os rugidos percorrem todo o céu?” (5:1218-21)

10. Hans Blumenberg, em seu elegante livrinho sobre essa passagem, Shipwreck with Spectator: Paradigm of a Metaphor for Existence, traduzido para o inglês por Steven Rendall (Cambridge: mit Press, 1997), mostra que ao longo de séculos de reflexão e comentários sobre esse trecho, o espectador foi perdendo sua posição privilegiada de distanciamento: hoje estamos todos a bordo.

11. W. B. Yeats: Man and Poet, de A. Norman Jeffares (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1962), p. 267, conforme citado em “The English V oices of Lucretius from Lucy Hutchinson to John Mason Good”, de David Hopkins, publicado em The Cambridge Companion to Lucretius, p. 266. Eis a tradução de Dreyden dessa passagem:

Quando o Amor é pleno e ardoroso,

Mesmo assim, é breve e etéreo gozo:

E o Amante, em seu vigor inconsequente,

Mãos e olhos, divide-se em duas frentes:

Mas tudo agarra, e na força de seu braço

Imprime muito aperto em estreito laço;

Mordidas magoam beijos sem esmero,

Pois seu prazer é imperfeito, insincero.**

(1:414)

O uso da palavra “insincero” pode ter causado estranhamento aos leitores anglófonos, mas se trata de um latinismo. Sincerus em latim pode significar “puro”, e Lucrécio escreveu que tal violência intempestiva surge do fato de o prazer dos amantes não ser puro: quia non est pura voluptas (4:1081).

12. “Assim como aquele que em sonhos, cheio de sede, procura que beber e ninguém lhe dá com que possa extinguir oardor dos membros, e busca imagens de líquidos, em vão se atormenta e fica cheio de sede, ao mesmo tempo que bebe das torrentes de um rio, assim também Vênus, no amor, ilude os amantes com a imagem: não podem saciar-se olhando o corpo que se lhes apresenta nem podem com as mãos arrancar seja o que for dos delicados membros, e incertos erram por todo o corpo.” (4.1097-1104)

13. Eis a tradução em prosa desse trecho:

Depois, quando, enlaçados os membros, gozam da flor da idade, já quando o corpo pressagia o prazer e já quando Vênus semeia os campos femininos, avidamente prendem o corpo, misturam a saliva das bocas e lhes inspiram o bafo, oprimindo os lábios com os dentes; e tudo inútil, porque nada podem roubar a esse corpo e nele não podem, com todo o corpo, penetrar e aniquilar-se. Realmente é isto o que parecem tentar fazer num esforço violento: a tal ponto se enleiam, desejosos, nos laços de Vênus, quando os membros desfalecem abalados pela força da paixão.

14. A tradução em prosa dessa passagem se inicia de outra maneira:

Ó mãe dos Enéadas, prazer dos homens e dos deuses, ó Vênus criadora, que por sob os astros errantes povoas o navegado mar e as terras férteis em searas, por teu intermédio se concebe todo o gênero de seres vivos e, nascendo, contempla a luz do sol: por isso de ti fogem os ventos, ó deusa; de ti, mal tu chegas, se afastam as nuvens do céu; e a ti oferece a terra diligente as suaves flores, para ti sorriem os plainos do mar e o céu em paz resplandece inundado de luz.

Apenas reaparece o aspecto primaveril dos dias e o sopro criador do Favônio, já livre, ganha forças, primeiro te celebram e à tua vinda, ó deusa, as aves do ar, pela tua força abaladas no mais íntimo do peito; depois, os animais bravios e os rebanhos saltam pelos ledos pastos e atravessam a nado as rápidas correntes: todos, possessos do teu encanto e desejo, te seguem, aonde tu os queiras levar. Finalmente, pelos mares e pelos montes e pelos rios impetuosos, e pelos frondosos lares das aves, e pelos campos virentes, a todos incutindo no peito o brando amor, tu consegues que desejem propagar-se no tempo, por meio da geração.



NOTAS 2 (asteriscos):

* Nor when the youthful pair more closely join,/ When hands in hands they lock, and thighs in thighs they twine;/ Just in the raging foam of full desire,/ When both press on, both murmur, both expire,/ They grip, they squeeze, their humid tongues they dart,/ As each would force their way to th’others heart./ In vain; they only cruise about the coast. For bodies cannot pierce, nor be in bodies lost,/ As sure they strive to be, when both engage/ In that tumultuous momentary rage./ So tangled in the nets of love they lie,/ Till man dissolves in that excess of joy.

** Delight of humankind and gods above,/ Parent of Rome, propitious Queen of Love,/ Whose vital power, air, earth, and sea supplies,/ And breeds whate’er is born beneath the rolling skies;/ For every kind, by the prolific might,/ Springs and beholds the regions of the light:/ Thee, Goddess, thee, the clouds and tempests fear,/ An at thy pleasing presence disappear;/ For thee the land in fragrant flowers is dressed,/ For thee the ocean smiles and smooths her wavy breast,/ And heaven itself with more serene and purer light is blessed.

*** For when the rising spring adorns the mead,/ And a new scene of nature stands displayed,/ When teeming buds and a cheerful greens appear,/ And western gales unlock the lazy year,/ The joyous birds thy welcome first express/ Whose native songs thy genial fire confess./ Then savage beasts bound o’er their slighted food,/ Struck with thy darts, and tempt the raging flood./ All nature is thy gift: earth, air, and sea;/ Of all that breathes, the various progeny,/ Stung with delight, is goaded on by thee./ O’er barren mountains, o’er the flowery plain,/ The leafy forest, and the liquid main/ Extends thy uncontrolled and boundless reign./ Through all the living regions dost thou move/ And scatterest, where thou goest, the kindly seeds of Love.



(A virada – o nascimento do mundo moderno; tradução de Caetano W. Galindo)



(Ilustração: Sandro Botticelli - La nascita di Venere)