quinta-feira, 30 de junho de 2022

“DORMIR É PARA OS FRACOS”, de Jonathan Crary

 




Em meados do século XVIII, o sono se desprendeu da posição estável que ocupara nas concepções aristotélicas e renascentistas, hoje obsoletas. Sua incompatibilidade com modernas noções de produtividade e racionalidade passou a ser notada, e Descartes, Hume e Locke foram apenas alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da mente e para a busca de conhecimento. Foi desvalorizado em face do privilégio conferido à consciência e à vontade, a noções de utilidade, objetividade e ações em interesse próprio. Para Locke, o sono era uma lamentável, ainda que inevitável, interrupção das prioridades que Deus estabeleceu para os seres humanos: a industriosidade e a racionalidade. No primeiro parágrafo de seu Tratado da natureza humana, Hume compara o sono à febre e à loucura – é um dos obstáculos ao conhecimento. Em meados do século XIX, a relação assimétrica entre sono e vigília passou a ser caracterizada segundo modelos hierárquicos nos quais o primeiro era tratado como uma regressão a um modo inferior e mais primitivo, no qual era inibida a atividade cerebral supostamente superior e mais complexa. Schopenhauer é um dos raros pensadores que viraram essa hierarquia contra si mesma e afirmaram que apenas no sono é possível encontrar “o verdadeiro cerne” da existência humana.

Em muitos aspectos, status incerto do sono está relacionado à dinâmica particular da modernidade, que invalida qualquer organização da realidade fundada em conceitos binários complementares. A força homogeneizadora do capitalismo é incompatível com qualquer estrutura inerente de diferenciação.: sagrado-profano, carnaval-dia-útil, natureza-cultura, máquina-organismo e por aí vai. Assim, tornam-se inaceitáveis quaisquer reminiscências do sono como algo de certa forma “natural”. As pessoas continuarão a dormir, é claro, e mesmo nas megalópoles em expansão haverá intervalos noturnos de relativo sossego. No entanto, o sono é agora uma experiência desvinculada de ideias de necessidade e natureza. Ao contrário, e como tantas outras coisas, é tratado como uma função variável, mas controlada, que só pode ser definida em termos instrumentais e fisiológicos. Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para consultar mensagens ou acessar seus dados. Existe uma expressão recorrente e aparentemente inócua, inspirada nas máquinas: o sleep mode. A ideia de um aparelho de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada está de fato “desligado” e nunca há um estado real de repouso.

O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que não é irrestrita a compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização. Um dos conhecidos truísmos do pensamento crítico contemporâneo é que não existem características naturais inalteráveis – nem mesmo a morte, segundo aqueles que preveem quer em breve estaremos transferindo os dados de nossa mente para uma forma digital de imortalidade. Acreditar que existam traços essenciais que distinguem seres vivos de máquinas é, dizem-nos críticos célebres, ingênuo e delirante. Por que alguém protestaria, pode-se argumentar, se novas drogas nos permitissem trabalhar por cem horas seguidas? Menos sono não permitiria mais oportunidades de “viver a vida ao máximo”? Alguém poderia contestar que os seres humanos foram feitos para dormir à noite, que nossos corpos estão alinhados com a rotação diária do planeta e que comportamentos que reagem às estações e à luz do Sol existem na maioria dos organismos vivos. A resposta provavelmente seria: isso é uma bobagem new age perniciosa, ou pior, uma nefasta nostalgia por certo retorno heideggeriano à terra. No paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos.



(24/7: capitalismo tardio e os fins do sono; tradução de Joaquim Toledo Jr.)



(Ilustração: Joseph Wright - Arkwright's Cotton Mills by Night, c.1782)

segunda-feira, 27 de junho de 2022

КОНЬ ПРЖЕВАЛЬСКОГО / O CAVALO DE PRJEVÁLSKI *, de Велимир Хлебников / Vielimir Khlébnikov



Гонимый кем - почем я знаю?

Вопросом поцелуев в жизни сколько?

Румынкой, дочерью Дуная,

Иль песнью лет про прелесть польки,

Бегу в леса, ущелья, пропасти

И там живу сквозь птичий гам

Как снежный сноп сияют лопасти

Крыла сверкавшего врагам.



Судеб виднеются колеса

С ужасным сонным людям свистом.

И я как камень неба несся

Путем не нашим и огнистым

Люди изумленно изменяли лица

Когда я падал у зари.

Одни просили удалиться

А те молили: озари

Над юга степью, где волы

Качают черные рога,

Туда, на север, где стволы

Поют как с струнами дуга,

С венком из молний белый черт

Летел, крутя власы бородки:

Он слышит вой власатых морд

И слышит бой в сквородки.

Он говорил: "Я белый ворон, я одинок,

Но все и черную сомнений ношу

И белой молнии венок

Я за один лишь призрак брошу,

Взлететь в страну из серебра,

Стать звонким вестником добра".

У колодца расколоться

Так хотела бы вода,

Чтоб в болотце с позолотцей

Отразились повода.



Мчась как узкая змея

Так хотела бы струя,

Так хотела бы водица,

Убегать и расходиться,



Чтоб ценой работы добыты,

Зеленее стали чоботы,

Черноглазые, ея.

Шопот, ропот, неги стон,

Краска темная стыда

Окна, избы, с трех сторон,

Воют сытые стада.

В коромысле есть цветочек,

А на речке синей челн.

"На возьми другой платочек,

Кошелек мой туго полн".

"Кто он, кто он, что он хочет,

Руки дики и грубы!

Надо мною ли хохочет

Близко тятькиной избы".

"Или? или я отвечу

Чернооку молодцу,

О сомнений быстрых вече,

Что пожалуюсь отцу?

Ах юдоль моя гореть!"



Но зачем устами ищем,

Пыль гонимую кладбищем,

Знойным пламенем стереть?

И в этот миг к пределам горшим

Летел я сумрачный как коршун.

Воззреньем старческим глядя на вид земных шумих.

Тогда в тот миг увидел их.



[1912]



Tradução Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman:




Perseguido - Por alguém? Que sei? Não cuido.

Pela pergunta: uma vida, ... e beijos, quantos?

Pela romena, dileta do Danúbio,

E a polonesa, que os anos circuncantam.

- Fujo pata brenhas, penedias, gretas,

Vivo entre os pássaros, álacre alarido.

Feixe-de-neve é o revérbero de aletas

De asas que brilharam para os inimigos.

Eis que se avistam as rodas dos fadários,

Zunido horrível para a grei sonolenta.

Mas eu voava como roca estelária

Por ígneas, não nossas, ignotas sendas.

E quando eu tombava próximo da aurora

Os homens no espanto mudavam a face,

Estes suplicavam que eu me fosse embora,

Outros me rogando: que eu iluminasse.

Para o sal, para as estepes, onde os touros

Pastam balouçando chifres cor de treva,

E para o norte, para além, onde os troncos

Cantam como arcos de cordas retesas,

Coroado de coriscos o demônio

Voava, gênio branco, retorcendo a barba.

Ele ouve os uivos de hirsutas carantonhas

E o repicar das frigideiras de alarma.

"Sou corvo branco - dizia - e solitário,

Porém tudo, o lastro negro dos dilemas,

A alvinitente coroa de meus raios,

Tudo eu relego por um fantasma apenas:

Voar, voar, para os páramos de prata,

Ser mensageiro do bem, núncio da graça."



Junto ao poço se estilhaça

A água, para que os couros

Do arreio, na poça escassa,

Reflitam-se com seus ouros.

Correndo, cobra solerte,

O olho-d'água e o arroio

Gostariam, pouco a pouco,

De fugir e dissolver-se.

Que assim, tomadas a custo,

As botas de olhos escuros

Dela, ficassem mais verdes.

Arrolos, langor, desmaios,

A vergonha com seu tisne,

Janela, isbá, dos três lados

Ululam rebanhos pingues.

Na vara, baldes e flor,

No rio azul uma balsa.

"Toma este lenço de cor,

Minha algibeira está farta."



"Quem é ele? Que deseja?

Dedos rudes, mãos de fera!

É de mim que ele moteja

Rente à choupana paterna?

Que respondo, que contesto,

Ao moço dos olhos negros?

Cirandam dúvidas lestas!

E ao pai, direi meu segredo?"

'`É minha sina! Me abraso!"

Por que buscamos, com lábios,

O pó, varrido das tumbas,

Apagar nas chamas rubras?



Eis que para os píncaros extremos

Ergo voo como o abutre, sinistro:

Com mirada senil considero o bulício terreno

Que, naquele instante, eu diviso.



[1912]

[*] Este título, que se consagrou, parece que não foi dado pelo poeta, mas pelo seu amigo David Burliuk. Segundo informação da Enciclopédia Britânica, o cavalo de Prjeválski é a única espécie conhecida de cavalo selvagem; foi descoberto por M. M. Prjeválski, explorador russo da Ásia Central.



(Poesia Russa Moderna)



(Ilustração: Przewalski's Horse found at the Toronto Zoo)



sexta-feira, 24 de junho de 2022

EPSTEIN, de Philip Roth

 



Michael, o convidado do fim de semana, ia dormir numa das duas camas de solteiro do antigo quarto de Herbie, onde ainda havia fotos de jogadores de beisebol na parede. Lou Epstein estava deitado com a esposa em seu quarto, com a cama disposta na diagonal. O quarto de sua filha, Sheila, estava vazio; ela havia ido a uma reunião com o noivo, que era cantor de música folk. Num canto de seu quarto havia um ursinho de pelúcia equilibrado sobre o traseiro, tendo um button com os dizeres VOTE NO PARTIDO SOCIALISTA preso na orelha esquerda; as estantes em que outrora livros de Louisa May Alcott acumulavam poeira agora ostentavam as obras de Howard Fast. A casa estava em silêncio. A única luz acesa era a da sala de jantar, no andar de baixo, onde as velas do shabat brilhavam no candelabro dourado alto, e a vela de jahrzeit de Herbie tremeluzia num copo.

Epstein olhava para o teto escuro do quarto, deixando a cabeça, que passara o dia inteiro dando voltas, se esvaziar por um momento. Sua mulher, Goldie, resfolegava a seu lado, como se sofresse de uma bronquite eterna. Dez minutos antes ela havia se despido, e ele ficara a vê-la enfiando a camisola branca pela cabeça, passando pelos seios que se afunilavam sobre o ventre, pelas nádegas que pareciam um fole, as coxas e pernas cheias de veias azuis, como um mapa rodoviário. O que antigamente podia ser beliscado, o que era pequeno e duro, agora podia ser cutucado e puxado. Tudo estava caído. Ele fechara os olhos enquanto ela vestia a camisola e tentara lembrar-se da Goldie de 1927, do Lou Epstein de 1927. Virou-se para ela e apertou o ventre contra suas nádegas, relembrando, e estendeu a mão para segurar seus seios. Os mamilos pendiam como as tetas de uma vaca, do tamanho de seu dedo mínimo. Epstein virou-se para o outro lado.

Uma chave girou na fechadura da porta da frente — ouviram-se cochichos, e depois a porta se fechou com cuidado. Epstein retesou os músculos e ficou aguardando os ruídos — aqueles socialistas não perdiam tempo. À noite, era um tal de abrir e fechar zíperes que não era possível dormir. “O que será que eles ficam fazendo lá embaixo?”, ele explodira com a mulher numa noite de sexta. “Provando roupas?” Agora, mais uma vez, Epstein esperava. Não que ele fosse contra a diversão dos jovens. Não era puritano, achava que a juventude tinha mais era que se divertir. Afinal, também ele fora jovem, não era? Mas em 1927 ele e a mulher eram pessoas bonitas. Lou Epstein jamais fora parecido com aquele sujeitinho sem queixo, preguiçoso e metido a besta, cuja única renda provinha do que ganhava cantando músicas folk em bares, e que uma vez perguntara a Epstein se não tinha sido “emocionante” viver numa “época de grande convulsão social” como os anos 30.

E sua filha, por que ela não ficara parecida com... com a moça que morava em frente, com quem Michael havia saído, aquela que perdera o pai. Aquilo, sim, era uma moça bonita. Mas a sua Sheila, não. O que acontecera — ele se perguntava —, o que acontecera com aquele bebezinho de pele rosada? Em que ano, em que mês aquelas canelas finas ficaram grossas como toros, a tez de pêssegos com creme virou uma massa de espinhas? Aquela criança linda agora era uma mulher de vinte e três anos de idade munida de “consciência social”! Consciência, uma ova, pensou Epstein. Ela passa o dia inteiro procurando um piquete para participar, depois volta para casa à noite e come como um cavalo... Sheila e aquele tocador de violão, um pegando nas partes do outro — era pior do que pecaminoso; era nojento. Quando Epstein se virava na cama e ouvia os dois a ofegar e abrir zíperes, aquele som era como um trovão em seus ouvidos.

Zip!

Pronto, já estavam eles outra vez. Epstein resolveu ignorá-los, pensar em seus outros problemas. A firma... faltava apenas um ano para a aposentadoria que ele planejara, e não havia nenhum herdeiro para a Sacos de Papel Epstein. Ele construíra a empresa a partir do zero, sofrera e sangrara durante a Depressão e os governos Roosevelt, e fora só com a guerra e Eisenhower que finalmente teve sucesso. A ideia de entregá-la a um estranho era insuportável para ele. Mas fazer o quê? Herbie, que estaria com vinte e oito anos, havia morrido de poliomielite aos onze. E Sheila, sua única esperança, havia escolhido como noivo um homem preguiçoso. O que ele podia fazer? Como é que um homem de cinquenta e nove anos pode começar a produzir herdeiros de uma hora para outra?

Zip! Hã-hã-hã! Aah!

Ele fechou os ouvidos e a mente. Tentou recolher recordações e mergulhar nelas. Por exemplo, o jantar...

Ficou surpreso quando chegou em casa da firma e encontrou o soldado sentado à mesa de jantar. Surpreso porque o rapaz, que havia dez ou doze anos ele não via, tinha ficado com a cara dos Epstein, a cara que seu filho teria, a pequena protuberância no nariz, o queixo forte, a pele morena e a massa de cabelo negro e reluzente que um dia ficaria cinzento como um céu nublado.

“Olha quem está aqui”, gritou sua mulher assim que ele entrou em casa, com a sujeira do dia ainda debaixo das unhas. “O filho do Sol.”

O soldado levantou-se da cadeira e estendeu-lhe a mão. “Como vai o senhor, tio Louis?”

“É um Gregory Peck”, disse a mulher de Epstein, “um Montgomery Clift, esse filho do seu irmão. Chegou aqui há três horas e já arrumou namorada. E é um cavalheiro que só vendo...” Epstein não disse nada.

O soldado permanecia em posição de sentido, ereto, como se tivesse aprendido boas maneiras muito antes do Exército. “Desculpe eu chegar assim de repente, tio Louis. Me mandaram pra Monmouth na semana passada e o papai disse que eu devia passar aqui pra ver vocês. Estou de licença este fim de semana e a tia Goldie disse que eu devia ficar...” Ele esperou.

“Olha só pra ele”, dizia Goldie. “Um príncipe!”

“Claro”, disse Epstein por fim, “fica, sim. Como está seu pai?” Epstein não falava com Sol desde 1945, quando comprou a parte da firma que pertencia ao irmão e este se mudou para Detroit, após um bate-boca.

“O papai está bem”, disse Michael. “Ele manda um abraço.”

“Eu mando também. Diz a ele.”

Michael sentou-se, e Epstein pensou que o garoto provavelmente pensava tal como o pai: que Lou Epstein era um homem rude cujo coração só batia mais depressa quando ele pensava na Sacos de Papel Epstein.

Quando Sheila chegou em casa, todos se sentaram para jantar, e eram quatro à mesa, como antigamente. Goldie Epstein se levantava o tempo todo, sem parar, enfiando um prato novo debaixo do nariz de cada um assim que terminava o anterior. “Michael”, disse ela, num tom histórico, “Michael, quando você era pequeno, você comia muito mal. A sua irmã Ruthie, que Deus a abençoe, essa comia bem. Não muito, mas bem.”

Pela primeira vez Epstein lembrou-se de sua sobrinha, a pequena Ruthie, uma moreninha linda, uma Ruth bíblica. Olhou para sua filha e ouviu a mulher falando, falando. “Não, a Ruthie não comia muito, não. Mas também não era luxenta. O nosso Herbie, que Deus o tenha, era luxento...” Goldie olhou para o marido como se ele se lembrasse exatamente de que modo seu filho amado comia; Epstein ficou olhando para seu prato de carne assada.

“Mas”, prosseguia Goldie Epstein, “você vai viver e vai ficar bem,

Michael, você que aprendeu a comer direito...” Aahh! Aahh!

Os ruídos partiram ao meio a recordação de Epstein.

Aahh!

Era demais. Levantou-se, verificou que estava de pijama e saiu em direção à sala. Ele ia lhes dizer poucas e boas. Diria a eles que... que 1927 não era 1957! Não, isso era o que eles lhe diriam.

Mas na sala não estavam Sheila e o cantor de música folk. Epstein sentiu o frio do assoalho subir pelas pernas frouxas de seu pijama e gelar sua virilha, arrepiando a pele das coxas. Eles não o viram. Deu um passo para trás, colocando-se atrás da porta em arco da sala de visitas. Seus olhos, porém, permaneceram fixos no chão da sala, no filho de Sol e na garota que morava em frente.

A garota chegara de short e suéter. Agora as duas peças estavam jogadas sobre o braço do sofá. A luz das velas era suficiente para Epstein ver que ela estava nua. Michael, a seu lado, debatendo-se, potente, só não tinha retirado os coturnos e as meias cáquis. Os seios da garota eram como duas xícaras brancas pequenas. Michael beijou-os, e continuou beijando. Epstein sentiu um formigamento; não ousava se mexer, não queria se mexer, até que os dois, como vagões num pátio de manobras, chocaram-se um contra o outro, com ferocidade, acoplados, estremeceram. No meio daquele barulho, na ponta dos pés, trêmulo, Epstein recuou, subiu a escada e voltou para a cama da esposa.

Não conseguiu se obrigar a dormir durante horas, ou assim lhe pareceu; só poderia adormecer depois que a porta da rua se abrisse e os dois jovens saíssem. Quando, cerca de um minuto depois, ouviu outra chave abrir a fechadura, Epstein não sabia se era Michael voltando para dormir ou...

Zip!

Agora era Sheila com o cantor folk! O mundo inteiro, pensou ele, todo o mundo jovem, os feios e os belos, os gordos e os magros, abrindo e fechando zíperes! Ele agarrou os abundantes cabelos grisalhos e puxou-os até doer o couro cabeludo. Sua mulher mudou de posição e emitiu um ruído. “Mmtê... mmtê...” Ela agarrou as cobertas e cobriu-se. “Mmtê...”

Manteiga! Ela está sonhando com manteiga. Sonha com receitas enquanto o mundo abre e fecha zíperes. Epstein fechou os olhos e afundou à força, mais e mais, num sono de velho.



(Adeus, Columbus e cinco contos; tradução de Paulo Henriques Britto)



(Ilustração: Lucian Freud (Berlim, 8.12.1922 - Londres, 20.7.2011) - Ib and her husband)







terça-feira, 21 de junho de 2022

IN GALLERIA / NA GALERIA, de Giuseppe Ungaretti

 




Un occhio di stelle

ci spia da quello stagno

e filtra la sua benedizione ghiacciata

su quest’acquario

di sonnambula noia



Tradução Haroldo de Campos:



Um olho de estrela

nos espia daquele tanque

e filtra sua bênção gelada

sobre este aquário

de tédio sonâmbulo



(Daquela estrela à outra)



(Ilustração: Manabu Mabe, 1994)



sábado, 18 de junho de 2022

ARTE, MÚSICA, POEMAS E HISTÓRIAS: CRIANÇAS PRECISAM DISSO?, de Philip Pullman

 


As crianças precisam de arte, histórias, poemas e música tanto quanto precisam de amor, comida, ar fresco e brinquedos. Prive uma criança de alimento e os danos rapidamente se tornarão visíveis. Prive uma criança de ar fresco e brinquedos e os danos se tornarão também visíveis, mas não tão rapidamente. Prive uma criança de amor e os danos, embora possam permanecer ocultos por alguns anos, serão permanentes.

Mas prive uma criança de arte, histórias, poemas e música e os danos não serão vistos facilmente. Entretanto, eles estarão lá. Essas crianças, com seus corpos saudáveis, podem correr, pular, nadar e comer vorazmente e fazer muito barulho, como as crianças sempre fizeram – mas algo lhes falta.

É verdade que algumas pessoas crescem sem nenhum contato com arte de qualquer tipo e são perfeitamente felizes, vivem vidas boas e preciosas; pessoas em cujas casas não há livros, e que não ligam muito para pinturas, e não entendem para que serve música. Tudo bem. Conheço pessoas assim. São bons vizinhos e bons cidadãos.

Mas outras pessoas, em algum ponto de sua infância, ou na juventude, ou talvez em seus anos de maturidade, deparam-se com algo com que jamais sonharam – algo que lhes é tão estranho quanto o lado oculto da lua. Um dia, elas são surpreendidas por uma voz no rádio declamando um poema; ou passam por uma casa de janelas abertas e escutam alguém tocando piano; ou veem a reprodução de uma certa pintura pendurada na parede de alguém e aquilo lhes atinge como uma pancada tão forte e tão gentil, que elas sentem como que uma vertigem. Nada as havia preparado para aquilo. Elas de repente se dão conta de uma fome enorme que existia por dentro, embora não tivessem ideia disso um minuto atrás; fome de alguma coisa tão doce e saborosa que chega a doer-lhes o coração.

Quase choram. Sentem-se tristes e felizes, sozinhas e acolhidas por conta desta experiência sumamente estranha e nova – e anseiam avidamente por ouvir aquela voz do rádio mais de perto, demoram-se ali ao pé da janela, não conseguem desgrudar os olhos da pintura. É isso que queriam, é disso que precisavam – como um homem faminto precisa de alimento –, e não o sabiam. Nem imaginavam.

É isso que acontece a uma criança que precisa de música, pinturas ou poesia, ao se deparar com essas coisas por acaso. Não fosse esse acaso, talvez o encontro jamais ocorresse, e ela passaria a vida inteira num estado de inanição cultural da qual nem teria ideia.

Os efeitos da inanição cultural não fazem alarde, nem são passageiros. Não são facilmente visíveis.

E, como eu sempre digo, algumas pessoas, pessoas boas, bons amigos e bons cidadãos, jamais chegam a viver essa experiência. Estão perfeitamente bem sem isso. Se todos os livros e toda a música e todas as pinturas do mundo desaparecessem da noite para o dia, elas não sentiriam falta; elas nem notariam.

Mas essa fome existe em muitas crianças e, muitas vezes, jamais chega a ser satisfeita, porque jamais foi despertada. Muitas crianças em todos os cantos do mundo estão passando fome pela falta de algo que alimenta e nutre suas almas de uma maneira que nada mais no mundo poderia.

Dizemos, e com razão, que toda criança tem direito a alimentação, a abrigo, a educação, a assistência médica e assim por diante. Mas temos de entender que toda criança tem direito a vivenciar a cultura. Temos de entender verdadeiramente que sem histórias, poemas, pinturas e música, as crianças também passarão fome.






(Tradutor não identificado)



(Ilustração: Franz Eybl 1850 - jeunne fille lisant)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

BEER / CERVEJA, de Charles Bukowski

 



I don’t know how many bottles of beer

I have consumed while waiting for things

to get better

I don’t know how much wine and whisky

and beer

mostly beer

I have consumed after

splits with women—

waiting for the phone to ring

waiting for the sound of footsteps,

and the phone to ring

waiting for the sounds of footsteps,

and the phone never rings

until much later

and the footsteps never arrive

until much later

when my stomach is coming up

out of my mouth

they arrive as fresh as spring flowers:

“what the hell have you done to yourself?

it will be 3 days before you can fuck me!”



the female is durable

she lives seven and one half years longer

than the male, and she drinks very little beer

because she knows it’s bad for the figure.



while we are going mad

they are out

dancing and laughing

with horny cowboys.



well, there’s beer

sacks and sacks of empty beer bottles

and when you pick one up

the bottle fall through the wet bottom

of the paper sack

rolling

clanking

spilling gray wet ash

and stale beer,

or the sacks fall over at 4 a.m.

in the morning

making the only sound in your life.



beer

rivers and seas of beer

the radio singing love songs

as the phone remains silent

and the walls stand

straight up and down

and beer is all there is.



Tradução de Raphael Soares:



Eu não sei quantas garrafas de cerveja

bebia enquanto aguardava as coisas

ficarem melhor

Eu não sei quanto vinho e whisky

e quantas cervejas

principalmente cerveja

bebia após

me trocar com mulheres—

aguardando o telefone tocar

aguardando o som dos passos,

e o telefone tocar

aguardando o som dos passos,

e o telefone nunca toca

até bem depois

e os passos nunca chegam ao destino

até bem depois

quando meu estômago pula para

fora da minha boca

elas chegam frescas como as flores da primavera:

“que porra fizeste contigo mesmo?

faltam 3 dias antes que possas me fuder!”



a fêmea é durável

ela vive sete anos e meio mais

que homens, e bebe menos cerveja

porque ela sabe que faz mal às aparências.



Enquanto ficamos doidos

elas estão fora

dançando e rindo

com cowboys tarados.



bem, aqui há cerveja

sacos e sacos de garrafas vazias de cerveja

e quando sacas uma

a garrafa cai pelo fundo molhado

do saco de papel

rolando

tilintando

derramando cinzas úmidas

e cerveja choca,

ou os sacos caem às 4:00

da manhã

fazendo o único som em sua vida.



cerveja

rios e mares de cerveja

a rádio cantando canções de amor

enquanto o telefone permanece silente

e as paredes permanecem

subindo e descendo

e a cerveja é tudo o que há.



(Ilustração: Edouard Manet - Women drinking beer)

domingo, 12 de junho de 2022

TOMAI A RESOLUÇÃO DE NÃO MAIS SERVIRDES E SEREIS LIVRES, de Étienne de la Boétie

 

 





Muita gente a mandar não me parece bem;

Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.

Assim proclamava publicamente Ulisses em Homero. [Homero, Ilíada, cap. II] Teria toda a razão se tivesse dito apenas:

Muita gente a mandar não me parece bem.

Deveria, para ser mais claro, ter explicado que o domínio de muitos nunca poderia ser boa coisa pela razão de o domínio de um só que usurpe o título de soberano ser já assaz duro e pouco razoável; em vez disso, porém, acrescentou:

Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.

Uma única desculpa terá Ulisses e é a necessidade que teve de recorrer a tais palavras para apaziguar as tropas amotinadas, adaptando (julgo) o discurso às circunstâncias mais do que à verdade.

Vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver.

Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado.

Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia. A minha intenção é antes interrogar-me sobre o lugar que à monarquia cabe, se algum lhe cabe, entre as mais formas de governar. Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública.

É melhor, todavia, que esse problema seja discutido separadamente, em tratado próprio, pois é daqueles que traz consigo toda a casta de disputas políticas.

Quero para já, se possível, esclarecer tão somente o fato de tantos homens, tantas vilas, cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicá-los enquanto eles quiserem suportá-lo; que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem aguentá-lo a contrariá-lo.

Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.

Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes.

Se, portanto, uma nação é pela força da guerra obrigada a servir a um só, como a cidade de Atenas aos trinta tiranos, não nos espanta que ela se submeta; devemos antes lamentá-la; ou então, não nos espantarmos nem lamentarmos mas sofrermos com paciência e esperarmos que o futuro traga dias mais felizes.

Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida. É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem.

Assim também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; é uma prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo da prática do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem.

Mas o que vem a ser isto, afinal?

Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua?

Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um só indivíduo, que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação, acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios, menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres?

Chamaremos a isto covardia? Temos o direito de afirmar que todos os que assim servem são uns míseros covardes?

É estranho que dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é possível; poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo. Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiá-lo.

Como não é covardia, poderá ser desprezo, poderá ser desdém? Quando vemos não já cem, não já mil homens, mas cem países, mil cidades e um milhão de homens submeterem-se a um só, todos eles servos e escravos, mesmo os mais favorecidos, que nome é que isto merece? Covardia?

Ora todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar. Dois podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles, se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia.

A covardia não vai tão longe, da mesma forma que a valentia também tem os seus limites: um só não escala uma fortaleza, não defronta um exército, não conquista um reino.

Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia? Que a natureza nega ter criado, a que a língua se recusa nomear?

Disponham-se de um lado cinquenta homens armados e outros tantos de outro lado; ponham-se em ordem de batalha, prontos para o combate, sendo uns livres e lutando pela liberdade, enquanto os outros tentam arrebatá-la dos primeiros: a quais deles, por conjectura, se atribui a vitória? Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo: os que, em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que, dos golpes que derem ou receberem, esperam tão-somente a servidão?

Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada, a esperança de no porvir a poderem conservar. Preocupa-os menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles, os filhos e toda a posteridade. Os outros nada têm que os anime, a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê-los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguir-se logo que derramem as primeiras gotas de sangue.

Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios?

É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez.

Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem!

Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias?

Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade?

Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura?

Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.

Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.

Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.

Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.

São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.

É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.

Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?

Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.

Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?

Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil?

Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar?

Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.

Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

Os audazes, para que obtenham o que procuram, não receiam perigo algum, os avisados não recusam passar por problemas e privações. Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem. Deixam de desejá-lo e a força para o conseguirem lhes é tirada pela covardia, mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem. Esse desejo, essa vontade, são comuns aos sábios e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes; todos eles, ao atingirem o desejado, ficam felizes e contentes.

Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.

A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter.

Gentes miserandas, povos insensatos, nações apegadas ao mal e cegas para o bem!

Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas iquezas, que devastem os vossos campos, roubem as vossas casas e vo-las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais!

A vida que levais é tal que (podeis afirmá-lo) nada tendes de vosso.

Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas.

Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.

Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?

Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas?

Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?

Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha?

Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?

Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?

Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés. Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueá-las, criais as vossas filhas para que ele tenha em quem cevar sua luxúria.

Criais filhos a fim de que ele, quando lhe apetecer, venha recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro, fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças.

Matai-vos a trabalhar para que ele possa regalar-se e refestelar-se em prazeres vis e imundos.

Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos.

E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo.

Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.



(Discurso da servidão voluntária; tradutor não identificado)



(Ilustração: Alexandre Lepage - La liberté guidant le peuple d'après E. Delacroix – 2018)

quinta-feira, 9 de junho de 2022

ODI ET AMO / ODEIO E AMO (POEMA 85), de Catulo

 


 

Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.

Nescio, sed fieri sentio et excrucior.

 

Tradução de João Ângelo Oliva Neto:


Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"

Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.

 

(O livro de Catulo)

 

Tradução de  Pedro Mohallem:

 

Amodeio. Da causa não me valho:

Só sei que dói ― e, ai, dói pra c******.

 

Tradução de  Wagner Schadeck:


Odeio e amo. Perguntas-me a razão.

Não sei. Mas sinto aflito o coração.

 

Tradução de Décio Pignatari:


Odeio e amo. Como assim?

Não sei: só sinto e me-torturo-me

 

(31 poetas, 314 poemas)

 

 

Tradução de Guilherme Gontijo Flores:


odeio

    e

amo

          por quê?

                        você pergunta

não sei ― só sinto acontecer

                        e crucifico-me

 

(Revista Germina, Catulices)

 

Tradução de Guilherme Gontijo Flores:

 

Amo, odeio. Por que o faço? você me pergunta.

Nunca sei e se faz: sinto me crucificar.

 

(Terceira Margem, v. 21, n. 35, 2017)

 

 

Tradução de Leonardo Antunes:

 

Amo e odeio. Por que faço assim tu talvez me perguntes.

Eu desconheço. Porém, sinto fazer-se e excrucio-me.


Tradução (intradução) de Augusto de Campos:

 




(Outro)


Traduções de Nelson Ascher:


[maio/2015]

 

Odeio e amo. Dentro é uma batalha.

Por quê? Sei lá. Mas dói. E me estraçalha.

 

Odeio e amo. E nada há que me valha.

Sinto o que sinto. Dói. E me estraçalha.

 

Odeio e amo. Como assim? Mistério.

Cravado em minha cruz me dilacero.

 

Odeio e amo. Como assim? Sei lá!

Sinto o que sinto. E a dor me dilacera.

 

Odeio e amo. Quanto ao porquê disso –

sei lá. Sinto o que sinto. E é só suplício.

 

Odeio e amo. E ignoro o porquê disso.

Sei o que sinto. E sinto que é um suplício.

 

Odeio e amo. — Indagam como posso.

Sei lá. Sinto o que sinto. E sei que sofro.

 

[set. 2016]

 

Odeio e amo. -- É pior do que navalha

na carne. Dói demais e me estraçalha.

 

Odeio e amo. -- Dói que nem navalha

na carne, sei lá como, e me estraçalha.

 

[fev. 2018]

 

Odeio e amo. — Dentro é uma batalha.

Sei lá. Sinto o que sinto e me estraçalha.

 

[fev. 2018]

 

Odeio e amo. — Dói. — É uma navalha

na carne que eu só sei que me estraçalha.

 

*

 

[jan. 2019]

 

Amo e odeio. — Aqui dentro é uma batalha.

Sei lá como ou por que, mas me estraçalha.

 

Tradução de  António Feliciano de Castilho:


Amo e odeio ao mesmo tempo.

Como pode ser? (perguntas)

Duas coisas tão opostas

Ao mesmo tempo tão juntas?

 

Como pode ser ignoro;

Sei o que sinto, a causa és tu,

E sei que é tão cru o tormento,

Que o não pode haver mais cru.

 

(O livro de Catulo)

 

Tradução de José Paulo Paes:


Odeio e amo. Quiçá queiras saber por quê:

ignoro, mas sinto que acontece, e sofro.

 

(Gaveta de tradutor)

 


(Ilustração: Paul Bond - The Ilusion Of Love Disturbance)