De Erzincã a Ercis a viagem correu na monotonia da planície. Em lentas ondas, rebanhos de carneiros vogavam sobre uma relva farta. A caravana não entrou pelo longo desvio que a faria passar diante do monte Ararat e a legítima curiosidade de Vartan de conhecer o berço de seus ancestrais não foi satisfeita. Montefoschi havia explicado a ele que tomar o caminho do Ararat comprometeria a travessia do maciço de Pamir que tinha de ser feita obrigatoriamente antes do inverno. Além do mais, para evitar o excesso de emoções que enfraquece a vigilância necessária durante uma viagem, não seria recomendável visitar um lugar grato desde a infância ao mais profundo do coração pelas lendas e as lembranças dos antigos. Você não sabe o que é o frio que grassa no Pamir, acrescentou Montefoschi para dissuadir definitivamente Vartan de ver de passagem o antigo reino de Urartu. Por trás das sedas de sua liteira, o jovem criou para si uma visão da arca célebre, que seria uma grande massa negra projetando-se sobre a memória de civilizações desaparecidas, como um olho afogado de ironia sobre os homens e sua necessidade de guerrear. Também nessa visão, aquela massa, soberana e indestrutível, surgia aureolada de brumas. Era como um monstro marinho encalhado no cume de um gigantesco rochedo. Vartan submeteu-se à decisão de Montefoschi e esperava agora ver o inverno na cadeia de montanhas de Pamir e conhecer, apesar de tudo, emoções extremas.
A cada parada nos caravançarás, Hovsep continuava a dividir o quarto com Montefoschi. Aceitava as tentativas e as carícias de seu amante com desenvoltura desinteressada.
Nessas noites tornadas tumultuosas pela paixão crescente que lhe votava aquele homem ele se aplicava, afinal, a adquirir a ciência do amor para exercê-la mais tarde na cama de Arnaud de Roanne. Mas eram noites em que ressoava apenas o ronco de um Montefoschi vencido pelo cansaço das estradas. Hovsep deixava então o leito quase conjugal trocando-o pelo pátio do caravançará. Lá, triturava ervas e raízes num pilão ou misturava drogas em um vaso. Trabalhava penosamente como um boticário sem perceber que às vezes o outro, despertado por sua ausência, o observava. Claro, o veneziano considerou a hipótese de que ligações estavam sendo urdidas, ali, entre seu amante e o médico, mas essa suposição ainda não despertou nele o menor ciúme. Dizia a si mesmo, simplesmente, que Arnaud, por bondade, tinha cedido a uma mania de Hovsep. Sabia que o eunuco era invejoso. Seria então provável que tivesse nascido nele a vontade de rivalizar um dia com Arnaud de Roanne na manipulação de beberagens.
Essa ideia fazia Montefoschi sorrir maldosamente: achava seu amigo ridículo.
A um comerciante de panos de Ercis, Hovsep pediu que lhe recortasse de uma peça de seda vermelha uma túnica cujo modelo copiava a de Arnaud, porque ele imitava Arnaud em tudo. Afetava um modo de falar lento e suave, empregava um vocabulário elegante, gabava-se de uma sabedoria milenar. E, nas lojas ou nas ruas, mexia nas dobras de seu traje, como que a mostrar preocupação. A ondulações de fogo correspondiam ondulações de um azul de safira, quando os dois homens passeavam na cidade ou presidiam com Montefoschi a um conciliábulo de mercadores. Mas Arnaud de Roanne o obrigava incessantemente a substituir antigos hábitos por novos. Desde Erzincã, não tratava mais de doentes e agonizantes e não mais manipulava xaropes. Hovsep também abandonava pomadas e unguentos. Arnaud voltava pouco a pouco ao anonimato, e era isso que ele queria. Desejava esse estado para observar melhor o mundo sem ser solicitado a todo momento por doentes. E, afinal, sabia que esse desejo logo seria realizado, pois seu prestígio de médico não tinha atingido as cidades da Ásia. Desfez-se de sua túnica com um comerciante de artigos de segunda mão e recebeu em troca um punhado de rebarbas de cobre que não lhe serviriam de nada… Foi roubado, caçoavam dele. Hovsep, na esteira de Arnaud, também se desfez de sua túnica sem tirar proveito de seu valor. Só o que lhe interessava era a alegria de ter alguma coisa semelhante à de Arnaud. Contentava-se simplesmente em ser a sombra de um homem cuja aparência de repente se tornou tão comum. Era, entretanto, mais facilmente notado do que Arnaud, porque andava com a boca aberta e os braços cruzados sobre o peito. Na intimidade de seus passeios, Arnaud o chamava de Papa Moscas, ao mesmo tempo que se perguntava por que suportava a presença dele. Lembrava-se, porém, de ter feito voto de sondar todo rosto humano. E Hovsep se revelava um bom campo de observação.
Na verdade, na companhia de Arnaud, Hovsep mantinha aparentemente o mesmo ar de admiração a seu respeito, sempre. Mas, sob essa máscara, era possível adivinhar, às vezes, a inquietude, o medo, o desespero.
Arnaud não suportava a falta do que fazer, por se ter acostumado durante muito tempo a manipular seus intermináveis preparados medicinais. Por isso não tinha parada em Ercis, que percorria em todos os sentidos, incessantemente. Em poucas horas, nenhum dos costumes da população lhe era estranho, sabia das especialidades do artesanato local, sabia da cultura do lugar. Infiltrava-se nas grandes aglomerações, ou, numa casa particular a que o tivesse levado o acaso, informava-se sobre as histórias locais.
Estava aqui e ali, sempre se movimentando. De seu passado de estudioso não restava mais do que uma indomável energia. A tudo seu interesse se voltava: fachadas batidas pelo sol, um pedregulho que a luz do dia tornasse brilhante, bestas de carga cansadas e ovelhas pastando, mulheres depenando uma galinha ou mexendo uma sopa. Em companhia de Arnaud de Roanne, a menor aldeota se tornava um labirinto, o menor dos acontecimentos ganhava sentido.
Em Ercis, certa tarde, um homem de voz veludosa o abordou. Com modos de conspirador, o desconhecido fez ao médico uma proposta que o espantou, perturbou-o, deixou-o perplexo. Convidava-o para prazeres que havia muito ele abandonara porque precisara se afastar das tentações da carne a fim de melhor se consagrar a suas pesquisas.
Em resumo, sua ignorância e seu distanciamento das coisas do amor o tornavam, nesse ponto, parecido com um monge. Mas desde que renunciara à atividade de ensinar e à prática da arte de curar, passara a cobiçar frequentemente as moças. O alcoviteiro sem dúvida ganhou disposição para lhe falar depois de ter observado os olhares significativos que ele dirigia às moças que passavam. Arnaud ensaiou o gesto de juntar as pregas de sua túnica, mas se lembrou de que a tinha trocado. Sentiu-se indefeso diante da oferta de seu interlocutor e acabou por balançar a cabeça em sinal de aceitação.
Hovsep, como de costume, estava a alguns passos dali. Sem ter percebido com clareza as palavras, tinha entendido o sentido da conversa. Imaginar Arnaud com uma mulher era para ele coisa totalmente insuportável. De modo que sem refletir ele empurrou violentamente o homem que, num reflexo defensivo, estalou um chicote cujo cabo desaparecia totalmente em seu punho, um chicote que poderia ser um brinquedo de criança. Hovsep apalpou seu estilete. O homem deu uma risada. Então Arnaud se interpôs entre eles e acalmou os espíritos.
Quando viu o médico e o misterioso desconhecido se afastarem, Hovsep mandou-se atrás deles, dizendo a si próprio que era capaz de rolar na cama com uma prostituta.
Hovsep era incompetente para julgar sobre a beleza ou a feiúra das moças que iam e vinham nessa enorme sala de bordel. A quase nudez delas o incomodava. Teria oferecido uma fortuna, que não possuía, a um mago para devolvê-lo à época de suas ladroagens, àquela adolescência em que seus desejos eram unicamente os desejos de derramar sangue, na qual seu destino não estivesse marcado por um médico que lhe dava menos atenção do que à própria sombra. Mas esse milagre não se realizaria nunca. Insanos, para fugir de um tormento ou dos perigos em que a realidade é pródiga, não conseguiam dos bruxos mais do que uma viagem de alguns instantes ao país do esquecimento.
Quando Hovsep se achou num quarto, impediu que a moça que lhe coubera o tocasse. Apesar disso, ela propôs que ele se deitasse na cama. Ele não respondeu. Aparentemente ela adormeceu, fechando os olhos. Mas era só fingimento, logo ele a ouviu renovando com voz clara o convite. Confessou-lhe então ser vítima de um mal que lhe impedia qualquer aproximação. Diante dessa confissão, ela sorriu de modo enigmático. Na companhia dela ele se sentia — e isso era estranho — em paz. Disse isso a ela. Não houve qualquer reação por parte dela, que deu a impressão de não ter escutado suas palavras. Mas a sensação de calma não durou muito. Murmúrios chegavam do quarto vizinho, o que imediatamente pôs Hovsep na defensiva. A moça pulou da cama, caminhou até o tabique que servia de parede e mostrou-lhe uma abertura gradeada que ali era utilizada.
Hovsep pôde então observar dois corpos nus que se confundiam. Enquanto ele observava as brincadeiras dos dois, a mão da sua prostituta segurou-lhe o sexo. Ele se voltou para a moça e a esbofeteou. Bateu outra vez, e ela berrou. Quando ela berrou de novo, a porta do quarto se abriu, Hovsep foi agarrado pelos ombros e foi jogado na rua, indesejável que era.
Aos primeiros gritos agudos que repercutiram no quarto, a companheira efêmera de Arnaud empurrou o corpo que a possuía. Pulou para baixo da cama, depois se enrolou num véu e se precipitou pelo corredor para não mais reaparecer. Sobre a cama que ela tinha abandonado, Arnaud de Roanne maldisse a curiosidade das mulheres e aquela barulheira que tinha ousado interromper um ato incrível e afinal inacabado — voltar a praticá-lo de agora em diante seria para ele mais importante do que tudo, fosse num estábulo, debaixo de uma tenda ou num quarto idêntico àquele. A timidez de um homem virgem, que tinha sido sua atitude no prelúdio daquele ato, cederia lugar pouco a pouco à brutalidade de um veterano grosseiro. Um rosto, por belo que fosse, teria menos atração do que a carne oferecida. A umidade dos lençóis favorecia os pensamentos sensuais.
O homem misterioso irrompeu no quarto e o informou sobre a conduta inqualificável de Hovsep. Entre duas imprecações cuspidas com virulência teatral, aconselhou-o a escolher melhor, dali em diante, seus amigos ou seus criados. Não era homem dado a gentilezas. Brutamontes furibundo, expulsou Arnaud de Roanne do quarto debaixo de pancadas.
E foi sob vaias e um ulular raivoso que o acompanharam até a rua que Arnaud deixou o bordel. Levantando-se penosamente, Hovsep o esperava. Diante do comportamento servil de Hovsep, já inteiramente entregue ao castigo que não deixaria de vir, Arnaud sentiu asco. Até então, esse sentimento lhe era estranho. Assim como não existia nele o espírito de vingança. Mas ele se recusou a partir para a violência contra um homem agora agitado por tremores, porque tinha decidido encarnar aquele que prefere a indulgência ao ódio. Envolveu com o braço o ombro de Hovsep, garantindo-lhe não dar maior importância ao escândalo havido entre as paredes de uma casa que se condenava de ter frequentado. De volta ao caravançará, Arnaud lavou com cuidado o rosto inchado de Hovsep e aplicou um emplastro que rapidamente curaria as equimoses. Essa escrupulosa solicitude deixou impressionado o eunuco, que aceitou tudo como um presente e um testemunho de amizade, ousando enfim se declarar.
(A província das trevas; tradução de Marcos de Castro)
(Ilustração: Guang Ye)
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