E há tempos nem os santos
Têm ao certo a medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem
E há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
Só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Legião Urbana, Há Tempos (1989)
Existem no mundo, segundo pesquisas de 2017, cerca de 345 milhões de migrantes, representando 3% da população mundial. O Brasil sempre foi historicamente uma meta dos fluxos migratórios, mas recentemente está se tornando também um dos países que mais exporta migrantes no planeta. O Itamaraty estimou, em 2017, que cerca de três milhões de brasileiros vivem no exterior, a maioria no Estados Unidos, Europa e América do Sul. Ao mesmo tempo, o número estimado de estrangeiros que moram no Brasil é 700 mil, cerca de 0,3% da população. Pesquisas recentes mostram que 62% dos jovens brasileiros querem deixar o país, e que cresceu em 19% a migração brasileira para Portugal em 2017. Simultaneamente, somos informados que oficialmente 1336 compatriotas foram barrados e devolvidos ao país pelas autoridades lusitanas e, finalmente, que cresceu em 20% o número de brasileiros desencantados com o eldorado ibérico, a ponto de solicitar ajuda estatal para poder voltar para casa. Dentro desse contexto, é com tristeza e revolta que assistimos às recentes imagens de brasileiros em Roraima expulsando migrantes venezuelanos com extrema violência ao som do hino nacional, ao mesmo tempo em que somos informados de que o relatório da ONU, com dados de 2017, indica que havia, pelo menos até a crise se acentuar, mais brasileiros vivendo na Venezuela do que venezuelanos no Brasil.
A situação de Roraima é complexa, envolvendo uma equação delicada entre poderes locais, crises econômicas e éticas; contextos históricos de disputas territoriais, típicos de regiões de fronteira. Mas não tem como não deixar explodir diante de nós a questão: como é possível que um povo constituído por filhos e/ou pais de migrantes ouse não ser hospitaleiro e solidário com outros povos em condições similares ou ainda piores? O fato é que o lado mais sombrio do patriotismo, a xenofobia, está de volta aos noticiários e talvez seja uma boa hora para conversar de novo sobre a questão da migração do ponto de vista da filosofia.
Nada melhor nessa oportunidade do que fazer ecoar novamente a voz de alguém como Vilém Flusser, que foi filósofo, brasileiro (por opção) e migrante. Flusser nasceu em 1920 em Praga, estudou filosofia na universidade de Praga a partir de 1939, mas teve que interromper os estudos com a invasão de Hitler à república tcheca. Emigrou então para Londres e depois para o Brasil. Sua família foi toda dizimada em campos de concentração. No Brasil, durante a década de 1940 realizou diversos trabalhos para sobreviver, continuando seus estudos de filosofia de maneira informal e autodidata. Nos anos 1950, apareceram as primeiras publicações em jornais e revistas sobre problemas de filosofia da linguagem e fenomenologia do cotidiano. De 1965 a 1972, divide a tarefa de lecionar filosofia na faculdade humanística do ITA, de São José dos Campos, com a publicação de diversos artigos em jornais e revistas, além de palestras como professor visitante em Yale, Barcelona e Berlim. Em 1972, começa a enfrentar problemas com o regime militar e decide emigrar novamente, dessa vez para a França. A partir de 1975, torna-se professor da escola nacional de fotografia de Aix-en-Provence, onde prosseguirá suas pesquisas sobre novas mídias e cultura até sua morte, em 1991, em um acidente automobilístico.
Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua “filosofia da migração” nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes, a partir da sua própria experiência de vida. Em primeiro lugar, o filósofo afirma que a dificuldade dos enraizados em lidar com os migrantes é sintoma não apenas de limitações ético-políticas, mas também de um adoecimento estético. A boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tudo que parece familiar reflete nossa própria face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio. O que vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. O patriotismo exacerbado é, portanto, uma incapacidade de perceber a beleza diferente do outro. Por isso o migrante é, para o enraizado, alguém ameaçador, que expõe a banalidade e a fragilidade do lar tido como sagrado.
O problema não é do migrante, mas daqueles que acreditam que têm raízes fixas em algum lugar. As “raízes” do homem representam uma ilusão sem futuro, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes para Flusser faz o homem parecer um legume: fixado inexoravelmente à terra. Ao contrário, a filosofia da migração flusseriana defendia que precisamos reconquistar o desenraizamento como nossa condição humana fundamental. A dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, sempre a cada vez diferente dos outros, um outro com os outros: “A pátria do apátrida é o outro”. Por isso, só quem se sente estrangeiro na sua própria pátria é capaz de desenvolver também responsabilidade pelos que chegam à nossa casa, igualmente em processo de “despatriação”.
É obvio que dá trabalho não ceder ao mito das “raízes a serem fincadas e defendidas a qualquer preço”, e é por isso que Flusser considera a chegada dos migrantes enriquecedora para os moradores originais. Os migrantes são os desenraizados, que procuram desenraizar tudo a sua volta. Os migrantes nos obrigam a rever nossos hábitos, que são como um cobertor de algodão que cobre todos os cantos e abafa os sons, é anestésico, esconde informações. O hábito faz tudo ficar bonito e tranquilo. Tira-se o cobertor e tudo fica monstruoso, inabitual, entsetzlich (deslocado/apavorante em alemão). Através dos migrantes surge a oportunidade de reaprender a própria casa com outros olhos, vislumbrando outras e melhores perspectivas para o viver em comum.
A migração é um tema filosófico por excelência, porque fazer filosofia também é uma espécie de migração interior. Pensar é se exilar em si mesmo, elevando a cobertura do habitual que repousa sobre as coisas. É sintomático que a maioria dos textos, anotações e projetos de livros de Flusser que tinham como tema a migração tenham sido escritos em meados da década de 1970, depois do seu banimento por causa da ditadura militar. É também sintomático que o tema da xenofobia reapareça agora, em tempos em que a volta do regime militar é reivindicada em nome da instalação da ordem e do progresso.
Pode parecer um pouco utópico, mas a hipótese flusseriana carrega uma proposta alternativa para o futuro e vale tanto para os brasileiros autoexilados nos EUA ou em Portugal, como para os sírios e venezuelanos refugiados no Brasil. E vai ainda além, na medida em que considera a migração não apenas um processo geopolítico, mas o próprio modo de ser do humano. Todos nós temos que aprender a migrar da infância para a vida adulta; todos nós teremos que aprender a migrar, se tivermos sorte, da vida adulta para a terceira idade. E todos nós, vivendo na pós-modernidade, estamos tendo que migrar dos textos lineares para a hipertextualidade da era digital. Enfim, viver consiste em ser constantemente expulso de algum território (geográfico ou simbólico) e reaprender a morar em terras novas. Como vamos esperar que acolham a nós ou a nossos filhos nos novos continentes do futuro, quaisquer que sejam, se nós mesmos não formos capazes de estender os braços a quem procura abrigo e proteção?
(Ilustração: António Pereira - mulheres de Cabo Verde)
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