sábado, 9 de outubro de 2021

A COLÔNIA CECÍLIA, de Zélia Gattai

 



A viagem da família Gattai começara, em realidade, dois anos antes de embarcarem no "Città di Roma", em Gênova. Meu avô tivera a oportunidade de ler um livreto intitulado: "I Comune in Riva ai Maré", escrito por um certo Dr. Giovanni Rossi - que assinava com o pseudônimo de Cárdias -, misto de cientista, botânico e músico. No folheto que tanto fascinara meu avô, Cárdias idealizava a fundação de uma "Colônia Socialista Experimental", num país da América Latina - não especificava qual -, uma sociedade sem leis, sem religião, sem propriedade privada, onde a família fosse constituída de forma mais humana, assegurando às mulheres os mesmos direitos civis e políticos que aos homens.

Cárdias ainda ia mais adiante: nas últimas páginas de seu estudo, de seu plano, fazia um apelo às pessoas que estivessem de acordo com suas teorias e quisessem acompanhá-lo a qualquer parte da Terra, por mais distante, desde que pudessem levar à prática todas as experiências e as ideias contidas no livro, para se apresentarem.

Por fim, Francisco Arnaldo Gattai encontrava alguém com dinamismo e inteligência, disposto a tornar realidade um sonho, seu e de outros camaradas, também discípulos dos ensinamentos de Bakunin e Kropotkin, à procura de um "caminho novo para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada, talvez esquecida de Deus".

Buscaria uma oportunidade de encontrar-se com Cárdias. Começava a divisar perspectivas para o futuro de sua família.

Enquanto Argía, sua mulher, amamentava o filho, leu-lhe o precioso documento. Que pensava ela desses planos? Queria saber sua opinião. Deviam aceitar o convite do Dr. Giovanni Rossi? Tinham quatro filhos, um ainda a sugar o peito da mãe.

Com palavras simples e acessíveis, papai nos explicou quem era o Dr. Giovanni Rossi, mais conhecido por Cárdias, o homem que idealizara todo o plano da colônia experimental em terras distantes. Nascera poeta e herdara da família incontestável vocação musical. Mas, deixando de lado poesia e música, inquieto, preocupado com os problemas sociais, preferiu os estudos práticos, formando-se em Agronomia, dedicando-se ao jornalismo e aos problemas sociais e filosóficos. Em suas idas a Milão, costumava hospedar-se com um parente, músico, o Maestro Rossi, cuja casa era frequentada por músicos de renome, entre eles um certo Carlos Gomes, brasileiro, autor de óperas. Encontraram-se os dois, Giovanni Rossi e Carlos Gomes, na ocasião em que o músico brasileiro se entregava com entusiasmo à partitura de mais uma ópera, "Lo Schiavo", que pretendia tocar para o Imperador do Brasil, cuja chegada a Milão estava sendo aguardada.

Carlos Gomes falou a Giovanni Rossi de sua terra, do outro lado do mar, cheia de belezas naturais e de suas riquezas. O músico falava da grandeza de seu país com emoção e saudade.

Cárdias o escutou fascinado! Essa era a terra que buscava, ideal para sua experiência. Não havia dúvidas. Pôs de lado imediatamente o projeto, ainda embrionário, de tentar o Uruguai. O Brasil o chamava.

Entusiasmou-se ainda mais ao saber da próxima chegada de D. Pedro II a Milão. Carlos Gomes seu protegido, o conhecia bem, e o admirava muito. Fez-lhe os maiores elogios: "um rei sábio, um pai para o nosso povo, amigo dos inventores, dos músicos, dos poetas..."

Cheio de esperanças, Cárdias resolveu escrever uma carta ao Imperador do Brasil. Não tinha nem nunca tivera admiração por imperadores, mas se aquele quisesse se interessar por seu projeto... Na longa carta explicou com detalhes seus planos a D. Pedro II, pedindo que lhe permitisse provar a seriedade da experiência e solicitando terras e apoio para a ida dos idealistas para o Brasil.

Essa carta, levada por ele mesmo, foi entregue, em mãos, ao Conde da Mota Maia, médico do Imperador, no hotel onde a comitiva real se hospedava.

Algum tempo depois, já no Brasil, D. Pedro leu por acaso o pequeno livro de Cárdias. Interessou-se pelas ideias e pelo arrojo do autor. Mostrou o pequeno tomo ao Conde da Mota Maia que então se recordou do jovem que havia procurado o Imperador no "Hotel Milão", levando-lhe uma carta. O pseudônimo era o mesmo. D. Pedro lembrou-se vagamente do fato.

Impressionado com o apelo das últimas páginas do livro, convocando voluntários para a experiência e dando seu nome completo e endereço, Pedro II não teve dúvidas, mandou que respondessem à sua carta: felicitava-o por seu trabalho e oferecia-lhe a terra solicitada para a colônia experimental.

Estabeleceu-se, então, uma correspondência entre o jovem idealista e o Imperador. Depois de várias démarches, Cárdias recebeu de D. Pedro II a posse de 300 alqueires de terras, incultas e desertas, num local entre Palmeira e Santa Bárbara, no Paraná, e, ainda, a promessa de ajuda e apoio para o empreendimento.

Tudo acertado, a doação das terras já feita, Cárdias botou mãos à obra dando início ao recrutamento dos voluntários, através dos jornais e em reuniões públicas. Frisava bem que aquela era uma aventura somente para idealistas endurecidos na luta, dispostos a realizar uma grande experiência social, sem medir sacrifícios.

Os candidatos foram surgindo e seu número aumentou rapidamente.

Entre os primeiros que se apresentaram estava Francisco Arnaldo Gattai, meu avô, que entrara em contato havia muito com Cárdias. Agora, já nascera o quinto filho do casal, a menina Hiena. Com a mulher, estudara a situação: não seria arriscado partirem para a aventura, carregando cinco crianças?

Argía Fagnoni Gattai, minha avó, não era mulher de recuar diante de obstáculos. Aos trinta anos de idade, carregada de filhos, não teve medo de enfrentar o desconhecido. Amava o marido, sabia o que representava para ele aquela viagem. Não iria desapontá-lo. Costumava amamentar os filhos até seus dois anos de idade - esse era o intervalo matemático entre um filho e outro -, criando-os fortes e sadios. Jamais lhe faltara leite; por Hiena não precisavam temer. A mãe lhe garantiria a alimentação, pelo menos durante a travessia marítima.

Entre os 150 - talvez um pouco mais - pioneiros que integravam o grupo, havia gente de várias profissões e classes sociais: médicos, engenheiros, artistas, professores, camponeses e operários - em meio a esses últimos, meu avô. Mas havia também outros que conseguiram se infiltrar, alguns criminosos condenados por diversos delitos.

O grupo de idealistas embarcou no navio "Città di Roma" em fevereiro de 1890; o regime imperial no Brasil havia sido derrubado a 15 de novembro de 1889. D. Pedro II fora deposto e desterrado, a República proclamada. Os fundadores da "Colônia Socialista Experimental" não podiam mais contar com a ajuda e o apoio prometido pelo Imperador. Contariam apenas com seus próprios esforços, com a vontade de vencer, mas nada os faria recuar.

No porão do "Città di Roma", junto às caldeiras, viram-se amontoados os pioneiros que, em breve, estariam integrando uma comunidade de princípios puros: a "Colônia Cecília". Iam cheios de esperanças, suportariam corajosamente as condições infames da viagem.

Uma luz artificial, fraca, era tudo o que havia para iluminar o porão; nem a mais leve brisa do mar chegava até ali para atenuar o calor sufocante.

As crianças, inquietas, inconformadas com a escura prisão, tentavam a toda hora, burlando a vigilância dos mais velhos, subir a escada escorregadia e íngreme que as conduziria ao sol.

No segundo dia de viagem já não havia onde pisar. Poças de vômitos espalhavam-se por todo lado. O navio jogava demais e a maioria dos passageiros enjoava. Argía Gattai estava entre os que mais sofriam. Não conseguia alimentar-se, vomitava o que já não trazia no estômago. Com o correr dos dias a situação dos Gattai foi se agravando: grudada aos peitos da mãe - ora num, ora noutro -, Hiena só os largava para reclamar, chorando desesperadamente. Onde estariam aquelas tetas fartas, transbordantes? Elas iam diminuindo, murchando, cada vez menos a quantidade de leite para saciar sua fome... Ninguém dormia com o pranto doloroso da menina mas ninguém reclamava.

Um médico do grupo chegou-se, aproximou-se e sem examinar a criança diagnosticou: fome.

E se conseguissem um pouco de leite em cima? O médico desaconselhou: o leite de bordo não era bom, nas condições de fraqueza em que a criança se encontrava poderia provocar-lhe diarreia A única providência a tomar, urgentemente, era conseguir com o comandante do navio permissão para remover mãe e filha para cima, onde pudessem respirar ar puro. Talvez, quem sabe, seu leite voltasse?

Estirada numa espreguiçadeira, na popa do navio, com a criança grudada ao peito - perninhas e braços finos, olheiras fundas -, a mulher passava o dia. Havia quanto tempo viajavam? Quando chegariam? Deviam ter decorrido muitos dias desde a partida de Gênova. Inda bem que as quatro crianças continuavam com saúde. Guerrando, o mais velho dos filhos, beirando os dez anos, fora encarregado de cuidar dos menores, o pai ocupado com a mulher e a filha doente.

À noite, a mãe e a menina voltavam para a fornalha e o choro recomeçava. Hiena já não mamava com tanta avidez. O leite quase secara, sugava em vão.

Tio Guerrando jamais se esquecera dos tormentos da terrível viagem; quando era ele a narrar a odisseia dos pais, o fazia com tanto sentimento que, sem me dar conta, comparei aquele porão quente e escuro ao Inferno de Dante. 

No porto de Santos formou-se a maior confusão na hora do desembarque. Homens para um lado, mulheres para o outro. Em salas separadas os imigrantes foram despidos, as roupas do corpo e as que traziam nas trouxas levadas para a rotineira desinfecção. Ali permaneceram durante horas a fio, nus, à espera de que lhe devolvessem os pertences, que os liberassem.

Ninguém reclamava, nem havia a quem reclamar. O jeito era esperar com paciência e resignação.

Por fim, depois de infinita demora, roupas e pertences foram devolvidos, devidamente carimbados pelo posto. Apertados em seus trajes encolhidos pelo banho de desinfecção, cheirando a remédio, amarfanhados, os imigrantes, conduzidos em fila, passaram pelo departamento médico, numa última vistoria antes de serem liberados.

Dali mesmo, foram encaminhados e embarcados novamente num pequeno navio que os conduziria ao Paraná. (Tio Guerrando não estava muito certo do novo porto de desembarque, mas achava que era o de Paranaguá.)

O estado da menina não melhorara, o leite materno acabou inteiramente, deram-lhe então leite de vaca. Como prevenira o médico, manifestou-se em seguida violenta diarreia acompanhada de vômitos.

Os pioneiros partiram rumo às terras que os esperavam, a família Gattai permaneceu na cidade. Companheiros compadecidos ofereceram-se para levar as quatro crianças; facilitaria a vida dos pais, às voltas com a menina doente.

- Ficaremos juntos. Não suportaríamos nossos filhos, morreríamos de preocupação... - explicou nono Gattai, agradecendo o oferecimento.

E lá ficaram eles, naquele porto estranho, buscando por todos os meios salvar a vida da filha.

Num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupa e alguns pertences, passou a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos.

Ao verem passar a carroça, algumas crianças gritaram chamando pelas mães: "Venham ver que estão chegando mais ciganos!..." Havia pouco mais de um mês passara por lá grande leva de homens, nas mesmas condições que esses. Ciganos, certamente, pensaram os moradores do pequeno vilarejo, trancando as portas das modestas casas cobertas com folhas de zinco, no medo de serem roubados.

Ao alto de uma colina, por entre os pinheirais, divisava-se, hasteada ao alto de uma palmeira, enorme bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da "Colônia Cecília", saudando a chegada dos novos pioneiros.

Ao divisar a bandeira da "Colônia", nono Gattai olhou mais abaixo e exclamou: "Lá estão eles!" Ali estava o acampamento: um grande barracão erguido junto a um córrego, pequenas barracas em construção, homens movimentando-se para cima e para baixo, um pedaço de terra já limpa para o cultivo ao lado de um pequeno bosque.

Nona Argía voltou a cabeça em direção ao dedo estirado do marido. Seus olhos distantes não divisaram nada. Sua alegria, sua esperança, seu entusiasmo ainda permaneciam lá longe, enterrados ao lado do corpinho da filha. Durante toda a viagem não dera uma única palavra, nem para amaldiçoar, nem para acusar. Não derramou uma única lágrima, completamente apática. O marido, disfarçando a tristeza pela morte da filha, procurara distrair a mulher chamando-lhe a atenção para mil e uma coisas durante a longa e dura viagem pela estrada. Sem obter resultados.

Avistando a carroça da família Gattai, os homens do acampamento partiram ao seu encontro. Os Gattai foram alojados provisoriamente no barracão construído pela primeira leva. À chegada todos trabalharam para levantar o galpão onde se abrigarem. Nos dias que se seguiram cada família tratou de construir a sua própria morada. O barracão ficara para depósito e emergências como aquela.

As quatro crianças, ao se verem livres da incômoda carroça, correram em disparada para o regato de águas cristalinas. Ninguém as impediu de se banharem de roupa e tudo. Estavam necessitadas de ar puro, de água e, sobretudo, de liberdade.

- E foi assim que a família Gattai chegou ao Brasil. - Com essa frase papai dava por encerrada sua história.

Estávamos, no entanto, tão impressionados com o relato, que desejávamos ouvir mais. Papai, percebendo nossa emoção, buscou desanuviar o ambiente:

- Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes?

Pois, para que vocês estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do Maestro Carlos Gomes e de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Que tal? - riu do nosso espanto.

Mas eu não estava ainda satisfeita, queria saber mais. O que havia acontecido à "Colônia Cecília"?

- Manteve-se ainda durante alguns anos, com grandes esforços e muito trabalho, mas resultou em nada, não pôde manter-se.

Era difícil a papai explicar detalhes de fatos que ele mesmo ignorava. Titio Guerrando, que vivera esses episódios e ainda se lembrava de muita coisa, também pouco sabia sobre os motivos que levaram ao fracasso da experiência. De positivo mesmo, sabiam que muita gente desistira ao aparecerem as primeiras dificuldades. Outros idealistas, que foram chegando no correr do tempo para se incorporar à "Colônia", tampouco resistiram às péssimas condições nela reinantes. Alguns mais teimosos tiveram que arranjar emprego fora das terras, nas construções de estradas de ferro, para não morrer de fome. Mas tudo culminou com a intimação das autoridades republicanas que, não estando de acordo com a doação feita pelo Imperador deposto, exigiam dos colonos que, ou comprassem as terras que ocupavam e pagassem os impostos atrasados ou as abandonassem. Havia ainda a versão anticlerical de tio Guerrando: ele contava que, bem próximo à "Colônia", fora construída uma igreja católica com o objetivo exclusivo de hostilizar e boicotar os anarquistas, e que, já na época da colheita, o padre vizinho soltou suas vacas, que rapidamente destruíram todas as plantações, liquidando assim a última esperança dos remanescentes da "Colônia Cecília".

Os Gattai lá permaneceram dois anos, mais ou menos. O último a abandonar o barco, tempos depois, foi o comandante Cárdias, ao ver-se impossibilitado de prosseguir sozinho na sua experiência.

Aprendi muita coisa sobre a "Colônia Cecília", mais com tio Guerrando do que com papai. Tio Guerrando, menino crescido durante a aventura, lembrava-se de detalhes vividos pela família.

Foi no livro do escritor Afonso Schmidt, "Colônia Cecília", publicado em 1942 em São Paulo, que encontrei algumas respostas às minhas indagações, inteirei-me da extensão da aventura anarquista. A família Gattai é citada entre os sonhadores que acompanharam o Dr. Giovanni Rossi ao Brasil, no livro de Schmidt: "Na casa dos Gattai ardia fogo, uma fumaça azul saía alegremente pela única janela."



(Anarquistas, graças a Deus)



(Ilustração: Colônia Cecília - "Uma das raras fotos da Colônia Cecília, experiência anarquista idealizada no século 19, no interior do Paraná, pelo italiano Giovanni Rossi ")

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