segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A ORGIA DOS DUENDES, de Bernardo Guimarães

 

     

I

Meia-noite soou na floresta

No relógio de sino de pau;

E a velhinha, rainha da festa,

Se assentou sobre o grande jirau.

Lobisome apanhava os gravetos

E a fogueira no chão acendia,

Revirando os compridos espetos,

Para a ceia da grande folia.

Junto dele um vermelho diabo

Que saíra do antro das focas,

Pendurado num pau pelo rabo,

No borralho torrava pipocas.

Taturana, uma bruxa amarela,

Resmungando com ar carrancudo,

Se ocupava em frigir na panela

Um menino com tripas e tudo.

Getirana com todo o sossego

A caldeira da sopa adubava

Com o sangue de um velho morcego,

Que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas

Que tirou do cachaço de um frade

Adubado com pernas de aranha,

Fresco lombo de um frei dom abade.

Vento sul sobiou na cumbuca,

Galo-Preto na cinza espojou;

Por três vezes zumbiu a mutuca,

No cupim o macuco piou.

E a rainha co’as mãos ressequidas

O sinal por três vezes foi dando,

A corte das almas perdidas

Desta sorte ao batuque chamando:

"Vinde, ó filhas do oco do pau,

Lagartixas do rabo vermelho,

Vinde, vinde tocar marimbau,

Que hoje é festa de grande aparelho.

Raparigas do monte das cobras,

Que fazeis lá no fundo da brenha?

Do sepulcro trazei-me as abobras,

E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra

Que me deu minha tia Marselha,

E que aos ventos da noite sussura,

Pendurada no arco-da-velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,

Esqueleto gamenho e gentil?

Eu quisera acordar-te c’um beijo ]

Lá no teu tenebroso covil.

Galo-preto da torre da morte,

Que te aninhas em leito de brasas,

Vem agora esquecer tua sorte,

Vem-me em torno arrastar tuas asas.

Sapo-inchado, que moras na cova

Onde a mão do defunto enterrei,

Tu não sabes que hoje é lua nova,

Que é o dia das danças da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,

Não deplores o suco das uvas;

Vem beber excelente restilo

Que eu do pranto extraí das viúvas.

Lobisome, que fazes, meu bem

Que não vens ao sagrado batuque?

Como tratas com tanto desdém,

Quem a c’roa te deu de grão-duque?”

 

 

II

Mil duendes dos antros saíram

Batucando e batendo matracas,

E mil bruxas uivando surgiram,

Cavalgando em compridas estacas.

Três diabos vestidos de roxo

Se assentaram aos pés da rainha,

E um deles, que tinha o pé coxo,

Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira

Com badalo de casco de burro,

Que no meio da selva agoureira

Vai fazendo medonho sussurro.

Capetinhas, trepados nos galhos

Com o rabo enrolado no pau,

Uns agitam sonoros chocalhos,

Outros põem-se a tocar marimbau.

Crocodilo roncava no papo

Com ruído de grande fragor:

E na inchada barriga de um sapo

Esqueleto tocava tambor.

Da carcaça de um seco defunto

E das tripas de um velho barão,

De uma bruxa engenhosa o bestunto

Armou logo feroz rabecão.

Assentado nos pés da rainha

Lobisome batia a batuta

Co’a canela de um frade, que tinha

Inda um pouco de carne corruta.

Já ressoam timbales e rufos,

Ferve a dança do cateretê;

Taturana, batendo os adufos,

Sapateia cantando — o le rê!

Getirana, bruxinha tarasca,

Arranhando fanhosa bandurra,

Com tremenda embigada descasca

A barriga do velho Caturra.

O Caturra era um sapo papudo

Com dous chifres vermelhos na testa,

E era ele, a despeito de tudo,

O rapaz mais patusco da festa.

Já no meio da roda zurrando

Aparece a mula-sem-cabeça,

Bate palmas, a súcia berrando

— Viva, viva a Sra. Condessa!...

E dançando em redor da fogueira

vão girando, girando sem fim;

Cada qual uma estrofe agoureira

Vão cantando alternados assim:

 

III

TATURANA

Dos prazeres de amor as primícias,

De meu pai entre os braços gozei;

E de amor as extremas delícias

Deu-me um filho, que dele gerei.

Mas se minha fraqueza foi tanta,

De um convento fui freira professa;

Onde morte morri de uma santa;

Vejam lá, que tal foi esta peça.

   

GETIRANA

Por conselhos de um cônego abade

Dous maridos na cova soquei;

E depois por amores de um frade

Ao suplício o abade arrastei.

Os amantes, a quem despojei,

Conduzi das desgraças ao cúmulo,

E alguns filhos, por artes que sei,

Me caíram do ventre no túmulo.

 

GALO-PRETO

Como frade de um santo convento

Este gordo toutiço criei;

E de lindas donzelas um cento

No altar da luxúria imolei.

Mas na vida beata de ascético

Mui contrito rezei, jejuei,

Té que um dia de ataque apoplético

Nos abismos do inferno estourei.

  

ESQUELETO

Por fazer aos mortais crua guerra

Mil fogueiras no mundo ateei;

Quantos vivos queimei sobre a terra,

Já eu mesmo contá-los não sei.

Das severas virtudes monásticas

Dei no entanto piedosos exemplos;

E por isso cabeças fantásticas

Inda me erguem altares e templos.

  

MULA-SEM-CABEÇA

Por um bispo eu morria de amores,

Que afinal meus extremos pagou;

Meu marido, fervendo em furores

De ciúmes, o bispo matou.

Do consórcio enjoei-me dos laços,

E ansiosa quis vê-los quebrados,

Meu marido piquei em pedaços,

E depois o comi aos bocados.

Entre galas, veludo e damasco

Eu vivi, bela e nobre condessa;

E por fim entre as mãos do carrasco

Sobre um cepo perdi a cabeça.

  

CROCODILO

Eu fui papa; e aos meus inimigos

Para o inferno mandei c’um aceno;

E também por servir aos amigos

té nas hóstias botava veneno.

De princesas cruéis e devassas

Fui na terra constante patrono;

Por gozar de seus mimos e graças

Opiei aos maridos sem sono.

Eu na terra vigário de Cristo,

Que nas mãos tinha a chave do céu,

Eis que um dia de um golpe imprevisto

Nos infernos caí de boléu.

  

LOBISOME

Eu fui rei, e aos vassalos fiéis

Por chalaça mandava enforcar;

E sabia por modos cruéis

As esposas e filhas roubar.

Do meu reino e de minhas cidades

O talento e a virtude enxotei;

De michelas, carrascos e frades

Do meu trono os degraus rodeei.

Com o sangue e suor de meus povos

Diverti-me e criei esta pança,

Para enfim, urros dando e corcovos,

Vir ao demo servir de pitança.

  

RAINHA

Já no ventre materno fui boa;

Minha mãe, ao nascer, eu matei;

E a meu pai, por herdar-lhe a coroa

Eu seu leito co’as mãos esganei.

Um irmão mais idoso que eu,

C’uma pedra amarrada ao pescoço,

Atirado às ocultas morreu

Afogado no fundo de um poço.

Em marido nenhum achei jeito;

Ao primeiro, o qual tinha ciúmes,

Uma noite co’as colchas do leito

Abafei para sempre os queixumes.

Ao segundo, da torre do paço

Despenhei por me ser desleal;

Ao terceiro por fim num abraço

pelas costas cravei-lhe um punhal.

Entre a turba de meus servidores

Recrutei meus amantes de um dia;

Quem gozava meus régios favores

Nos abismos do mar se sumia.

No banquete infernal da luxúria

Quantos vasos aos lábios chegava,

Satisfeita aos desejos a fúria,

Sem piedade depois os quebrava.

Quem pratica proezas tamanhas

Cá não veio por fraca e mesquinha,

E merece por suas façanhas

Inda mesmo entre vós ser rainha.

  

IV

Do batuque infernal, que não finda,

Turbilhona o fatal rodopio;

Mais veloz, mais veloz, mais ainda

Ferve a dança como um corrupio.

Mas eis que no mais quente da festa

Um rebenque estalando se ouviu,

Galopando através da floresta

Magro espectro sinistro surgiu

Hediondo esqueleto aos arrancos

Chocalhava nas abas da sela;

Era a Morte, que vinha de tranco

Amontada numa égua amarela.

O terrível rebenque zunindo

A nojenta canalha enxotava;

E à esquerda e à direita zurzindo

Com voz rouca desta arte bradava:

"Fora, fora! esqueletos poentos,

Lobisomes, e bruxas mirradas!

Para a cova esses ossos nojentos!

Para o inferno essas almas danadas!”

Um estouro rebenta nas selvas,

Que recendem com cheiro de enxofre;

E na terra por baixo das relvas

Toda a súcia sumiu-se de chofre.

  

V

E aos primeiros albores do dia

Nem ao menos se viam vestígios

Da nefanda, asquerosa folia,

Dessa noite de horrendos prodígios.

E nos ramos saltavam as aves

Gorjeando canoros queixumes,

E brincavam as auras suaves

Entre as flores colhendo perfumes.

E na sombra daquele arvoredo,

Que inda há pouco viu tantos horrores,

Passeando sozinha e sem medo

Linda virgem cismava de amores.

 

(Ilustração: Francisco de Goya - Le Sabbat)

 

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